Existem corredores que deixam a mente fugir durante a corrida: pensam no jantar, no trabalho, no que fazer durante as férias, enfim, qualquer coisa que lhes distraia e permita esquecer o sofrimento imposto ao corpo. Mas há também os que fazem questão de passar o tempo todo monitorando e analisando cada aspecto do seu organismo durante a corrida ou calculando incessantemente as projeções de tempo final, com base em cada passagem. Há anos que psicólogos e fisiologistas do esporte tentam entender como estas duas formas de lidar com a dor e a monotonia da corrida afetam a performance dos corredores.
Os tipos de pensamentos durante o exercício são geralmente classificados em associativos e dissociativos. Os primeiros são os que têm relação direta com a atividade, sejam eles internos, como o monitoramento de partes de corpo (como está meu coração, dor aqui ou ali) ou externos, como o acompanhamento da performance (parciais de ritmo, tempo para cumprir uma volta). Já os pensamentos dissociativos são aqueles que "fogem" da atividade, e também podem ser internos (pensar na família, trabalho, férias etc) ou externos (interagir com os espectadores em uma prova, conversar com outro corredor).
Já se sabe, por exemplo, que em intensidades mais baixas a proporção de pensamento dissociativo é mais elevada, e conforme cresce a velocidade de corrida aumenta também a quantidade de pensamentos associativos. Ao mesmo tempo, corredores que se apoiam na dissociação durante provas tendem a ser menos competitivos e também mais lentos. Em conjunto, estes e outros achados levam-nos a acreditar que o ideal é manter o corredor focado em sua performance durante todo o tempo, treinando sua mente para não se distrair durante as partes mais monótonas de treinos e competições.
Levando em conta, entre outras coisas, as possíveis influências do "foco" mental sobre a performance física, um pesquisador italiano propôs recentemente a criação de séries de "treino mental". Estes exercícios consistem basicamente em realizar atividades cognitivas extremamente monótonas, que devem ser feitas de forma progressiva ao longo do ciclo de treino, iniciando com cerca de 10 minutos e estendendo-se para próximo de duas horas.
Estas séries são atividades como, por exemplo, apertar uma determinada tecla do computador sempre que surgir um quadrado na tela, e outra tecla quando aparece um círculo. O ritmo dos exercícios é extremamente lento, sem música, em "cenário" de uma estrada que nunca acaba.
Segundo o proponente da ideia, estes exercícios serviriam de treino para o aspecto mental da corrida e favoreceriam o aumento da performance. Na CR do mês de março falamos sobre este treino mental e lançamos um convite para que alguns corredores incluíssem em seus treinos. Os detalhes dos experimentos você pode conferir no box da página ao lado.
Obviamente que é prematuro afirmar terem as séries de treinamento mental sido responsáveis (mesmo que parcialmente) pela melhora de rendimento dos dois assinantes. No entanto, é preciso ressaltar a semelhança da percepção em ambos os casos, frente aos exercícios. Corredores amadores costumam ter dificuldades em manter a concentração ao longo de toda uma prova longa, e o estresse causado pela monotonia do percurso, aliado ao desconforto da atividade, pode levar a quedas de desempenho, que estão mais relacionadas à nossa "fraqueza mental", por assim dizer, do que efetivamente à nossa limitação física.
Ao que tudo indica, estar com a mentalidade certa no dia da prova pode ser tão importante quanto contar com pernas treinadas.
Assinantes testaram
Caso 1: Maria Cláudia Cangussu, assinante de Marília-SP, onde treina com a Self.Run. Com a permissão dos treinadores, ela incluiu, durante cerca de 10 semanas, séries variando entre 10 e 30 minutos de exercícios mentais, imediatamente antes ou depois dos treinos. A prova alvo do período foi uma meia-maratona. A corredora, que classificou os jogos como de nível 6, em uma escala de monotonia de 1 a 10, percebeu que quando realizava as séries mentais, antes do treino, sentia-se mais focada durante a corrida. Já quando os exercícios eram realizados imediatamente após, o cansaço físico prejudicava a concentração, exigindo maior esforço.
Na prova alvo, Maria Cláudia conseguiu reduzir seu melhor tempo em cerca de 6 minutos, obtendo 1h47 nos 21 km. Nas palavras dela "O treinamento mental me ajudou durante toda a Mizuno Half Marathon, em São Paulo. No km 17 percebi que valeu muito a pena ter feito todas as sessões, pois este é um momento nesse tipo de prova em que já estou bem cansada e ansiosa, querendo terminar logo, mas neste dia a concentração me fez chegar ao final com muita tranquilidade". Além disso, os exercícios lhe ensinaram a importância do aspecto mental para a performance, e ela afirma ter aprendido a se concentrar mais em seu objetivo final, acreditando que podia sempre fazer melhor nos treinos e provas.
Caso 2: Felipe Pimenta, assinante de Belo Horizonte, onde treina com a Heleno Fortes Treinamento Esportivo. Felipe iniciou o projeto com séries de 5 minutos de exercícios mentais, mas chegou a realizar até 50 minutos. Já no segundo dia (10 minutos pré-treino), o corredor constatou uma mudança de sua concentração, citando que mesmo as rodagens mais monótonas pareciam passar um pouco mais rápido nos quilômetros iniciais. O corredor relatou ainda que passou a buscar "pontos fixos" em seu caminho, que se tornavam seu próximo objetivo imediato.
A sensação de Felipe com relação aos exercícios pré e pós treinos foi semelhante com a de Maria Cláudia, pois ele também sentiu que as séries pós-treinos eram mais difíceis de realizar. O corredor relatou a sensação de ansiedade ao longo delas, ficando com vontade de acelerar o jogo. Apesar de não ter realizado uma prova ao fim do período de 8 semanas de treinos mentais, Felipe correu uma meia maratona ao final da quarta semana, em que conseguiu reduzir seu melhor tempo, obtido um mês antes, em cerca de 3 minutos, fechando a prova em 1h35.