Como funciona – por Márcio Dederich – março 2011
Tem corredor que ainda hoje continua travando só de ouvir falar nele. Entende-se. A verdade é que durante muito tempo o ácido lático foi apontado como responsável por uma série de problemas e até acusado de culpado por muitos fracassos. Só que essa explicação, simples e única para tantos e tão variados males fisiológicos, perdeu sentido nos dias atuais.
E se levarmos em conta que basta comermos alguma coisa para que os níveis de ácido lático no sangue subam, e que, portanto, é impossível a vida sem ele, tal mito jamais deveria ter criado raizes.
Atletas ou não, em maior ou menor escala, todos nós produzimos ácido lático. Nessa condição, muito mais inteligente que culpá-lo pela eventual quebra em uma prova, é entender melhor seus mecanismos de atuação, e assim passar a tê-lo não como inimigo, mas como um aliado.
Este é justamente o propósito desta nova seção da CR: esclarecer o leitor sobre temas de difícil compreensão ou sobre assuntos que foram ao longo do tempo sendo distorcidos por “verdades” sem comprovação.
Sejam elas de pura sobrevivência (funções biológicas, como respirar e digerir) ou de simples movimentação (trabalho, exercício, lazer), para realizar tarefas o corpo humano precisa de energia, que é fornecida por uma molécula chamada ATP (adenosina trifosfato), fabricada em todas as células vivas, com o objetivo de capturar e armazenar energia.
À medida que o corpo executa suas atividades, o ATP vai sendo progressivamente consumido e, logo a seguir, é restaurado por outra fonte de energia. Conforme as necessidades energéticas avançam, e por fim todo o ATP acaba, o organismo solicita outro macronutriente para sintetizá-lo novamente. Neste momento o corpo precisa fazer uma escolha. Terá de definir qual base energética irá utilizar, se gordura ou se carboidrato. Ele fará essa escolha analisando dois fatores principais: a velocidade com que precisa repor o ATP e a existência ou não de oxigênio durante o processo de transformação.
No caso da presença de oxigênio (aeróbio) e da baixa necessidade de ATP, o organismo opta pela gordura, que gera mais ATP e é mais abundante no corpo. Por outro lado, na necessidade de uma ressíntese rápida do ATP e na ausência de oxigênio durante o processo de transformação (anaeróbio), o organismo parte para os carboidratos, fato que ocorre nas situações de exercícios físicos muito intensos.
No segundo caso, o processo é capaz de gerar energia suficiente para a ressintese do ATP, mas tem um efeito que pode ser esportivamente indesejável: produz ácido lático.
Como o organismo reage ao ácido lático
Subproduto do ciclo de ressintese do ATP, o ácido lático tem a inconveniente propriedade de afetar negativamente a atividade física. Seu acúmulo no sangue e no músculo pode interferir no estímulo nervoso, no processo de contração e na produção de energia necessária para a ação muscular.
A via anaeróbia para fornecimento de energia extra continua sendo temporária, pois os níveis sangüíneos e musculares de lactato aumentam e a regeneração do ATP não consegue mais acompanhar seu ritmo de utilização. Após exercícios extenuantes, nos quais se acumularam quantidades máximas de ácido lático, a fadiga então se instala, diminuindo o desempenho nos exercícios. Em muitos casos significa dar adeus à prova.
A recuperação plena implica na remoção desse ácido tanto do sangue como dos músculos. Em geral são necessários 25 minutos de repouso-recuperação após um exercício máximo para remover metade do volume acumulado. Significa que cerca de 95% do ácido lático serão removidos em pouco mais de uma hora de repouso-recuperação.
Para onde vai
Processado no organismo, existem quatro destinos possíveis para o ácido lático:
Como bem se vê, embora possa contribuir para a fadiga muscular, o ácido lático não é apenas um produto inútil do metabolismo. Serve também como fonte de energia, como forma de eliminação de carboidrato dietético e como base para a formação de glicose do sangue e de glicogênio no fígado.
É importante lembrar que a concentração de um metabólico como o ácido lático, que entra e sai do sangue rápida e continuamente, é tão somente o resultado da diferença entre os índices de entrada e de saída no sangue. Portanto, um aumento da concentração não significa necessariamente que sua produção tenha aumentado – a diminuição na velocidade de eliminação também pode fazer subir a concentração no organismo.
Seja como for, sabe-se hoje que o ácido lático é metabolizado muito velozmente, e que sua quantidade no sangue ou no músculo, a qualquer instante, é extremamente menor em comparação com a grande quantidade que é continuamente produzida e eliminada.
Na prática, fazer o quê?
Técnicos e atletas devem aprender a lidar com o ácido lático de forma eficaz. Programas de treinamento podem ser elaborados para reduzir a produção e aumentar a eliminação. Isso geralmente é conseguido através de uma combinação de treinamentos de alta intensidade com treinamentos prolongados submáximos. No entanto, é importante não perder de vista que tanto a formação como a rapidez na eliminação do ácido lático são funções diretas da velocidade metabólica do indivíduo.
O treinamento de alta intensidade irá maximizar as adaptações necessárias para aumentar a utilização de oxigênio (VO2 max.). Esse tipo de treinamento é importante, pois quanto maior for a liberação de oxigênio nos músculos, menor será a dependência da quebra de carboidratos em ácido lático. Além disso, o aumento da capacidade circulatória irá acelerar sua eliminação através dos tecidos.
O treinamento prolongado submáximo tem a vantagem de induzir as adaptações periféricas (musculares), que por sua vez reduzirão a velocidade de formação do lactato, além de aumentar sua velocidade de eliminação. Treinamentos que envolvem corrida, natação ou ciclismo por muitos quilômetros parecem causar um aumento máximo na capilaridade e na capacidade funcional do músculo esquelético.
Em termos nutricionais, a alimentação de um atleta sob treinamento extenuante, que consome as reservas de glicogênio e fica exposto aos riscos de desbalanceamento sistemático do ácido lático, deve dar prioridade aos carboidratos. Sendo mais claro: como é difícil alterar a velocidade do metabolismo, seu “remédio” contra o indesejado ácido lático talvez esteja num belo prato de macarrão. Experimente.
ORIGEM
O ácido lático foi descoberto em 1780 pelo químico sueco Carl Wilhelm Scheele, identificando-o pela primeira vez no leite coalhado, razão pela qual seu nome possui origem na palavra leite (do latim: lac / lactis). Além de ser produzido pelo corpo humano, pode também ocorrer na fermentação de alguns alimentos ou mesmo ser produzido sinteticamente.
USOS E APLICAÇÕES
O ácido lático é usado em uma grande variedade de alimentos industrializados, entre eles pães, bebidas, carnes e laticínios. Sua aplicação nessa área tem como objetivo aumentar o prazo de validade dos produtos, controlando o desenvolvimento de bactérias patogênicas. No entanto, o ácido lático utilizado pela indústria alimentícia é obtido do açúcar da cana, sendo um produto de origem 100% vegetal.
FORA COM ELE
Especialistas em esportes da Escola Paulista de Medicina garantem: o melhor remédio para combater o excesso de ácido lático é… mais exercício! Só que em doses menores.
O melhor procedimento para eliminá-lo é, depois de fazer um exercício exaustivo, realizar por alguns minutos algum outro exercício (correr, pedalar, nadar) em menor intensidade. Isso ajuda a desintoxicar a musculatura, já que uma parte do ácido lático, que também serve como fonte de energia, passa a ser queimada.
Outro procedimento é massagear o local dolorido, aumentando a irrigação sanguínea da região e facilitando a eliminação do ácido. Mas lembre-se: o ácido lático pode não ser o único responsável pelas dores que surgem após exercícios mais puxados. Elas podem também ser causadas por microlesões no músculo, aliás na maior parte das vezes.
FADIGA MUSCULAR
Os cientistas já tinham noção de que o músculo humano fosse capaz de deflagrar um mecanismo para adiar a fadiga das fibras musculares. O que eles não sabiam é que esse processo usa o próprio ácido lático, principal substância responsável pelo cansaço muscular.
Segundo o australiano Graham Lamb, um dos quatro autores do artigo, a pesquisa verificou que o músculo acaba usando a acidose – causada pelo ácido lático – para manter a resposta correta das fibras musculares ao estímulo dado para elas agirem. A acidose seria, então, responsável por manter o músculo apto para responder aos estímulos nervosos.
Essa excitação é fundamental para que a contração muscular ocorra. Em uma situação de forte atividade física, íons de potássio são liberados pelos tecidos musculares para fazer com que a membrana das células seja menos estimulada. O papel do ácido é exatamente neutralizar a presença dos íons e permitir que o músculo continue trabalhando.
Apesar de a pesquisa ter sido feita com o objetivo de estudar a fadiga muscular em atletas de alto nível, os cientistas acreditam que os resultados poderão ser úteis para a fisiologia humana em geral.