20 de setembro de 2024

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Notícias admin 3 de setembro de 2012 (0) (95)

Sob o sol da Capadócia, 240 km em 6 etapas

Correr na região da Terra que tem uma paisagem única, inusitada e de contornos fantásticos faz até uma ultramaratona parecer menos dolorosa. E foi na Capadócia, na Turquia, que 56 privilegiados tiveram a oportunidade de participar da primeira edição da Runfire, uma prova de 240 km dividida em seis etapas entre 7 e 15 de julho. E eu estava lá. Como conhecia a região, já tinha uma boa ideia da maravilha que esperava os corredores.

Era possível também aos menos experientes se testarem em pequenos trechos diários na categoria chamada Discovery, em 4 ou 6 dias ou em equipes. A maioria era turca, mas havia outras nacionalidades: franceses, dinamarqueses, sul-africanos, russos e italianos.

A corrida não leva o nome à toa. A largada muitas vezes era ao meio dia e no quente verão da Capadócia, garantindo dificuldade extra à distância e às subidas intermináveis da área montanhosa. E como convém a uma região desértica, as noites eram tomadas pelo frio cortante no acampamento.

As etapas da ultra foram de 28 km, 41, 33, 27, 94 e 17 km. Os outros participantes faziam trechos de 14 a 20 km diários, e um dia completaram 20 km pela manhã e mais 20 durante a noite e madrugada. Mais detalhes no site www.runfirecappadocia.com

 

SÓ ÁGUA DE SUPORTE.  A engenheira Elif Tepeli, 41, da capital Ankara, estava na prova de 4D. "Fui voluntária na outra prova dos mesmos organizadores, o Lycian Way, uma ultra bastante famosa aqui, e fiz muitos e bons amigos; por isso resolvi vir para cá. A corrida noturna foi a melhor parte, pois eu não estava preparada e fiquei muito feliz em conseguir – e também porque estava fresco", contou ela, que já participou da Maratona de Berlim e da Avenue of the Giants Marathon, nos Estados Unidos. "Decidi participar porque a Capadócia é única. Já viajei muito e sei que há belíssimos lugares mundo afora, mas aqui tem a história da humanidade, da religião, e a paisagem encantadora", contou a corredora turca, que inclusive já esteve na Amazônia.

A Runfire, que é classificatória para a famosa Ultra Trail du Mont Blanc, seguiu os padrões internacionais: os atletas deveriam carregar tudo que precisassem durante o período e o único suprimento fornecido era água a cada 10 km. Também deveriam prestar atenção durante a reunião da noite, quando eram passadas as "pegadinhas" e coordenadas do trajeto e inserir em seus GPS os mapas do dia seguinte.

E não era fácil. Akın Yeniceli, 26, campeão nacional em várias distâncias de atletismo ficou por várias vezes perdido. Ele estava participando da ultra, mas machucou o joelho e continuou na prova de 4 dias, na qual foi campeão. "Queria correr tão forte que esquecia de olhar o GPS e quando percebia estava muito longe", explicou. Todos os corredores andavam com um dispositivo para serem encontrados via satélite e se saíssem muito da rota era acionada a equipe de resgate.

Já os corredores das provas menores contavam com regalias: café da manhã e jantar no acampamento e lanche para almoço, além do transporte da bagagem. A comida era farta e boa, com arroz, feijão branco, carnes, sopas, massas, saladas, pães e iogurte. O acampamento era formado por uma grande tenda para refeições e reuniões e outras menores para dormir. Rústico, mas muito aconchegante e bem organizado, considerando que era transferido a cada dia para um novo lugar. 

 

MELHOR QUE A DO SAHARA. À noite, entre pés enfaixados, colchões e bandagens, o jogo de cartas para distrair ou uma fogueira ao redor da qual se cantavam músicas típicas turcas. O banho com água quente e as tendas organizadas eram motivo de comemoração. "Isso é quase um hotel com tantas facilidades", elogiava o italiano Dino Sarpi, comparando com a ultra do Sahara – a Marathon des Sables, que completou no ano passado. O funcionário público, que mora em Londres, também aprovou a Runfire por haver maior organização e variação de paisagem e terrenos, além de o preço ser mais atrativo. As inscrições variavam de 350 a 1000 euros, dependendo da categoria e data. A única reclamação foi sobre os cachorros selvagens soltos que o atormentaram durante a etapa noturna. Sarpi não lembrou, mas poderia ter pedido uma ‘ajudinha' a São Jorge. Acredita-se que o lendário soldado aniquilador de dragões tenha nascido na Capadócia…

Para todos, porém, um primeiro dia de gala: jantar e cerimônia de abertura em um dos hotéis mais charmosos da região, o Argos, ao lado do castelo de Uchisar, onde seria o final da prova, garantindo uma das vistas mais impressionantes após, claro, uma longa subida. A altimetria total acumulada foi de aproximadamente 2000 metros e medalha só para os primeiros colocados, entregue na cerimônia final.

SOLIDARIEDADE TURCA. Minha intenção era participar da prova de 4 dias, mas com os vôos lotados devido às férias brasileiras, só consegui chegar após a largada, infelizmente. Percorri, então, o plano B: um trecho de 12 km em uma lagoa de sal que lembrava a paisagem do Atacama, no dia mais longo (de 94 km), e o último dia completo, já que passava pela cidade mais bonita da região, Goreme, e terminava no interessantíssimo castelo de Uchisar, percorrendo os pontos turísticos mais destacados da Capadócia.

O primeiro dia foi tranquilo, eu tinha apenas que contornar o grande lago, tomando cuidado para estar suficientemente à distância de suas margens de areia movediça.

O último dia, com largada às 10h45, exigia habilidades, além de pernas e pulmões. Como não tenho uma relação muito próxima às tecnologias para me garantir com o GPS em meio àquela infinidade de caminhos e o medo de me perder era grande, decidi acompanhar duas corredoras. Só não sabia que elas eram mais rápidas do que eu, que estou há um tempo sem treinamento.

A professora de química Bakiye Duran, de 52 anos e um coração enorme, não se conformou. No pouco inglês que sabia, apenas falava: não vou te abandonar. E se desdobrava para me empurrar nos primeiros 5 km rapidamente morro abaixo e acima até o ponto de checagem. Mal pude piscar os olhos e quando abri ela havia amarrado uma corda em minha cintura (não sei como ela tinha isso!) e estava me carregando morro acima. Era profundamente tocante e extremamente engraçado. Clamava a ela que continuasse sem mim, mas ela não arredava pé. Quando chegamos ao posto de água, eu disse que ficaria lá e só assim ela seguiu adiante e eu pude continuar no meu ritmo.

Durante a cerimônia de encerramento quem ganhou o prêmio foi a outra companheira, Elif. Estranhei e perguntei por que ela não havia vencido, já que era mais rápida e mais forte. A resposta foi igualmente tocante: "Eu já tenho muitos prêmios, então deixo para os mais jovens; temos que incentivar os que estão começando". Só depois fui descobrir que Bakiye é uma celebridade no país. A primeira mulher a representar a Turquia em ultras internacionais, detentora de recordes e diversos prêmios, tendo até mesmo sua biografia publicada, com o título "A história de uma corredora de ultramaratonas – a coragem é solitária". Enfim, para apaziguar minha frustração com meu desempenho pífio, eu havia sido carregada por um fenômeno. Ufa!

Uma das particularidades dos corredores turcos é que eles levam a corrida de uma forma mais simples. Não há revistas especializadas no país e por isso pouca informação sobre acessórios e suplementos. Minha viagem foi realizada às pressas e só foi confirmada um dia antes do embarque – mal tive tempo de colocar o tênis na mala. Perguntando a alguns corredores se eles tinham carboidrato em gel sobrando para que eu fizesse a etapa de 17 km, nenhum havia levado. "Prefiro comida", respondiam. Peguei um pão do café da manhã com creme de chocolate e coloquei na bolsa, mas no caminho, para minha imensa sorte, pés e mais pés carregados de damascos deliciosamente maduros e doces.

 

MUSEU AO AR LIVRE. O primeiro e o último dia foram os mais interessantes, pois passavam por Goreme e arredores. A paisagem insólita vislumbrada é fruto da ação vulcânica, cujas lavas deram origem às rochas porosas, que foram moldadas pelo capricho e criatividade de vento e água. Assim se formaram as imensas esculturas em formatos conhecidos por "chaminés de fadas". E cada setor tem sua característica própria: em alguns as rochas são extremamente interativas, formando um playground natural, em outras tomaram forma de cogumelo ou animais. Para os corredores isso significava um sobe e desce até divertido e muito desafiador.

Dos 30 participantes da ultra, 23 finalizaram e 3 foram desclassificados por receber ajuda externa. O campeão Mahmut Yavuz é soldado e estava em sua segunda ultramaratona. Entre as mulheres, o primeiro lugar ficou com a bela russa Elena Polyakova, que parecia correr sem cansar. "É minha quinta ultra e aqui é demais. Chamo de ultra de boutique, pois temos banheiro, água quente e o staff é super atencioso, se desdobrando para lhe ajudar em tudo, fora que em outros países é mais caro e não tem nada disso", contou. 

De fato, tanto os voluntários quanto a organização eram extremamente simpáticos e eficientes, com gentilezas constantes e um sorriso cordial. Apesar de ser a primeira edição, eles tem a experiência de outra prova que realizam há três anos e passa pelo litoral da Turquia, a ultra Lycian Way, que segue os mesmos moldes.

A professora francesa e ultramaratonista Veronique Magny, 51 anos, estava elétrica. "É a prova mais bonita que já fiz, e olha que corri em vários lugares, como Iugoslávia, África, Espanha, Tailândia, França… e também a mais organizada. Não sei se teria como melhorar alguma coisa para o próximo ano", finalizou.

O dinamarquês Soeren Lilleoere foi mais um entusiasta. "Todos os aspectos organizacionais funcionaram muito bem, a equipe fez um trabalho incrível. Tendas e chuveiros sempre prontos, o que é um prazer absoluto depois de uma longa corrida. Na Marathon des Sables os campos são horríveis, fornecimento de água racionalizada, sem chuveiros, sem banheiros, sem água quente, barracas abarrotadas e equipe não amigável. Correr com diabetes não é fácil e erros da minha parte podem ter sérios resultados. No entanto, com o nível de segurança e vigilância de GPS nunca me senti inseguro. Eu nunca havia corrido exclusivamente seguindo um GPS, o que acrescentou algo extra para o conceito de corrida extrema. Mas sempre que estava muito fora da rota, a equipe respondeu imediatamente com um telefonema e me colocou no caminho certo. Um dos aspectos que mais apreciei foi a linha de chegada. Era um local fantástico e garantia nossos mais profundos desejos: cerveja, coca-cola, pizza e sorvete. O jantar na véspera, no hotel Argos, foi também memorável, até porque você nunca espera uma grande experiência gastronômica quando se inscreve em uma ultramaratona", completou o dinamarquês.

POR QUE IR PARA LÁ?

A 700 km de Istambul e 300 km da capital Ankara, a Capadócia foi terra dos hititas (cerca de 2 mil anos antes de Cristo), frígios, assírios, medos, cimérios e persas. Foi assediada por Alexandre, o Grande, e província do Império Romano. Depois respondeu aos impérios bizantino e otomano. Guerras, intrigas e perseguições moldaram sua história, assim como a ação do vento e a atividade vulcânica. A região era ponto comum de rotas comerciais e sofria constantes invasões, por isso os habitantes criaram mais de 150 cidades subterrâneas, e algumas abrigaram até 30 mil pessoas. Duas podem ser visitadas: Derinkuyu (a mais profunda, com 8 andares) e Kaymali (a mais larga, com 4 pavimentos abertos ao público).

Após se encantar com o mundo abaixo do solo, hora de subir. A Capadócia é uma dos melhores lugares para voar de balão, e diariamente são cerca de 100 deles colorindo o céu e permitindo que se vislumbre a exótica paisagem de outro ângulo, em um belo passeio de contemplação.

Por fim, o Museu ao Ar Livre de Goreme, um complexo declarado patrimônio da humanidade pela Unesco, com as primeiras igrejas da história, escavadas nas rochas com seus afrescos bem preservados.

COMO CHEGAR. A Turkish Airlines é a única companhia com vôos diretos do Brasil para a Turquia, com duração de 13 horas, e brasileiros não precisam de visto. O vôo de Istambul à Capadócia dura 1h20, até os aeroportos de Nevsherir ou Kayseri.

ONDE FICAR. Escolha um hotel feito nas rochas, uma experiência única. Se puder investir, há hotéis luxuosos, como o Argos (www.argosincappadocia.com) e de preços médios, como o excelente Canyon View (www.canyonviewhotel.com). Há ainda pensões mais em conta, como o Anatolia Cave (www.anatoliacave.com).

 

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