História admin 4 de novembro de 2014 (0) (248)

São Silvestre: a metamorfose

Sem dúvida que ela é a prova mais discutida do Brasil. Afinal, quem já não se viu em uma roda de corredores debatendo sobre o percurso, o horário ou a organização da Corrida Internacional de São Silvestre? E, nos últimos anos, a pauta nessas conversas tem sido as recentes mudanças: em 2010, a polêmica das medalhas entregues já no kit; em 2011, a chegada no Ibirapuera; e, em 2012, o retorno do pórtico de chegada na Avenida Paulista, mais a competição ocorrendo pelo turno da manhã, modelo que irá se repetir este ano. No centro dessas alterações, o grande questionamento era: a São Silvestre estaria deixando a tradição de lado?
Um olhar mais afoito pode afirmar que sim, afinal, o legado da SS é de uma prova competitiva de 15 km, no período da tarde e com largada e chegada na Avenida Paulista. Contudo, o conceito de "tradição" não deve ser entendido apenas como algo que tem permanecido por um par de anos, como estabelecido no senso comum. Apesar de significar um conjunto de práticas enraizadas nos costumes de uma sociedade, não é um conceito imóvel: as tradições evoluem e se transformam com as novas necessidades de cada sociedade. Logo, beira a inocência crer que a herança de uma corrida, que chega à ininterrupta 89ª edição, se faça com base apenas nos seus últimos 20 anos.
Analisando as informações sobre a São Silvestre em seu site oficial (www.saosilvestre.com.br) e comparando criticamente com os jornais da época, podemos constatar que houve pelo menos 33 grandes alterações na prova, seja no percurso, no horário de largada, no local de saída ou de chegada, ou mesmo na distância percorrida. Isso sem falar das idas e vindas nas alterações. Ou seja, média de uma alteração a cada três anos. Assim, a coluna deste mês pretende mostrar historicamente que, se há tradição na São Silvestre, é a de estar em constante transformação.

O COMEÇO EM 1925. Como é conhecido, a São Silvestre foi realizada pela primeira vez em 31 de dezembro de 1925. Idealização de Cásper Líbero, embora tenha encontrado apoio fundamental dos também jornalistas Hermano Arruda e Leopoldo Sant'Anna. O dono do jornal A Gazeta quis realizar no Brasil algo que ele tinha visto no ano anterior, em sua visita a Paris: uma corrida noturna. Não se sabe exatamente que competição foi essa: alguns dizem que era uma na qual seus participantes chegavam com tochas, mas é mais provável que tenha sido a Maratona Olímpica de Paris, cuja prova terminou à noite, à luz de archotes, como informou Caetano Carlos Paiolli, que trabalhou mais de 50 anos na A Gazeta Esportiva.
Essa primeira edição contou com 60 atletas saindo do Parque Trianon às 23h40, percorrendo 6,2 km pelas ruas do centro de São Paulo, tais como a famosa Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, o Largo do Riachuelo, a Avenida São João, e terminando não na Avenida Paulista, mas em frente à Associação Atlética São Paulo, na zona norte da cidade.
Em seus primórdios, era exclusivamente nacional, masculina, seletiva e que não contava com a adesão do público, pelo contrário. O mesmo Caetano Paiolli informa que a sociedade reagiu à realização da corrida com um misto de espanto e repulsa, "porque o evento representava uma ameaça ao tradicional clima emotivo de 1° de janeiro". É lendária a história que o vencedor da segunda edição da São Silvestre, Jorge Mancebo, não participou da primeira edição, pois a família o proibiu. Mas, apesar de tal desconfiança, ela continuou sendo realizada, e os jornais, com notas tímidas, começavam a elogiá-la, vendo a distribuição de medalhas de bronze àqueles que chegassem até 5 minutos depois do vencedor, uma ação que poderia influir grandemente na prática do atletismo.
Em 1928, a prova começa a crescer não somente na quantidade de inscritos, mas também na distância: passou a ter 8,8 km, saindo do Monumento Olavo Bilac, na Avenida Paulista, e chegando ora em frente ao Portão do Clube de Regatas Tietê ou mesmo dentro da pista de atletismo do Clube Espéria, tradicionais agremiações paulistanas localizadas às margens do Rio Tietê. Esse percurso sofreu algumas variações ao longo da década de 1930, sendo o ponto de largada alterado algumas vezes, e a distância de 8,8 km para 7,6 km, de 1933 a 1941. Entre 1942 a 1945, mais uma metamorfose: a corrida passaria a ter 5,5 km, largando do Túnel 9 de Julho e chegando entre os portões do CR Tietê e da A.A. São Paulo. Ou seja, de seu surgimento até o final de sua fase "nacional", a única coisa inalterável na São Silvestre era o turno em que ocorria: sempre à noite, entre 23h30 e 23h45.

INTERNACIONAL. Em 1945, começa a contar com a participação de atletas estrangeiros, passando a ser denominada "Corrida Internacional de São Silvestre" e orgulha-se em propagar que fora um dos poucos eventos mundiais que não tiveram as atividades paralisadas em virtude da Segunda Guerra Mundial. Mudanças no status, mudanças no percurso novamente. Agora tendo 7 km, teve a largada, entre 1945 a 1948, em frente ao Estádio do Pacaembu, chegando, como de costume, no CR Tietê.
Mas em 1950 a organização da São Silvestre chegou a um modelo que permaneceria por 16 anos: o tiro inicial seria dado às 23h45, na Rua Conceição (posteriormente, se chamaria Avenida Cásper Líbero), em frente ao antigo prédio do jornal A Gazeta, e passando por ruas conhecidas do centro paulistano, como a Avenida São João, o Largo do Arouche, a Praça da República, e completaria o percurso de 7,3 km (em algumas edições, 7,4 km), retornando ao prédio da principal patrocinadora e organizadora da competição.
Foi nesse percurso, que não passava pela "tradicional" Avenida Paulista, que participou da SS o lendário Emil Zatopek, em 1953. A "Locomotiva Humana", que no ano anterior tinha conquistado a madalha de ouro nos 5.000 m, 10.000 m e na Maratona da Olimpíada de Helsinque, foi recebido com grande entusiasmo pelos meios de comunicação. E trouxe mais do que recorde do percurso, completados em 20:30, mas também a importância e a visibilidade midiática que faltavam ao espetáculo.
Os jornais naquele ano passaram a colocar a prova em suas capas, fizeram cobertura dos treinos não somente de Zatopek, mas de toda a elite. Ademais, anunciavam as alterações que a cidade sofreria para a realização do evento e cogitavam a possibilidade de que mais de meio milhão de pessoas fossem levadas para as ruas. Nos anos seguintes, a competição passaria a ter uma cobertura mais constante e interessada pela imprensa.

AS SELETIVAS. Em 1954, os jornais anunciavam a 30ª edição da corrida e, com ela, uma "nova" fase: a implantação de preliminares que selecionariam os 300 melhores corredores do Brasil que, segundo a Folha da Manhã de 30 de dezembro de 1954, enfrentariam "os grandes fundistas que viriam da Europa e da Ásia para a maior prova pedestre do mundo". Logo, considerando que o método anterior, aberto a qualquer atleta, era contraproducente, delimitaram a competição a menos de 400 homens, o que daria um novo feitio e melhor aspecto técnico.
Tal inovação buscava trazer melhores atletas brasileiros para vencer o evento e acabar com o jejum de vitórias, que se estendia desde 1947. E também visava dar um caráter mais sério à disputa, que sofria com problemas recorrentes de uma competição desorganizada. Exemplo notório foi que a largada de 1953 não fora dada pela organização, mas sim por um foguete queimado por um popular, fazendo com que centenas de atletas (inclusive Zatopek) partissem um minuto antes da hora marcada.
A São Silvestre chegou a ter 9,7 km por um ano, o de 1966, com largada e chegada na Praça Oswaldo Cruz, em um itinerário onde se corria nos dois lados da Avenida Paulista: o lado par na ida, em direção à Praça dos Expedicionários; o lado ímpar, no retorno. Contudo, apesar dos vários elogios a essa prova, considerada até então "a mais rápida desde a sua fundação", em 1967 a organização estabeleceu o percurso que ficaria até 1979.
Ainda largando à noite do dia 31, as duas únicas características inalteradas até então, o percurso sairia do novo Edifício da Fundação Cásper Líbero, no número 900 da Avenida Paulista, e desceria a Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, seguindo pelo Largo São Francisco e Rua Libero Badaró, e passando pelas poéticas avenidas São João e Ipiranga, até subir a Avenida da Consolação, chegando no mesmo ponto da largada, completando os 8,5 km de distância.

DESORGANIZAÇÃO. Embora os números oficiais deem conta de que a São Silvestre ainda tinha um teor seletivo, com não mais de 320 inscrições até 1971, a sua organização ainda apresentava problemas estruturais: em uma época pré-chip, em que apenas os dez primeiros tinham o tempo contabilizado, a única forma de saber seu rendimento era colocando papéis nos funis pós-corrida, que marcavam a ordem de chegada. O problema é que, muitas vezes, os funis se estendiam para antes do pórtico de chegada, com grandes filas. Na Folha de S. Paulo de 1° de janeiro de 1967, em uma brincadeira de previsão para o ano, uma delas era que "o brasileiro continuará na fila da São Silvestre".
Outra previsão bem humorada, feita em 1969, era de que, naquele ano, "será mais fácil um americano (ou russo) descer na Lua que um brasileiro ganhar a São Silvestre": uma piada que acabou acontecendo: os americanos chegaram à Lua e o Brasil amargava ainda o jejum de vitórias na competição. A presença vitoriosa do campeão da maratona olímpica Frank Shorter em 1970 e a supremacia nos anos 1970 do colombiano Victor Mora, que venceu em 1972, 1973 e 1975, colaboraram para que o jejum se perpetuasse.

TAMBÉM MULHERES. Em 1975, apesar de o percurso ser o mesmo, a SS passaria por uma nova e relevante mudança: as mulheres agora também poderiam participar. Dentro do contexto da emancipação do papel feminino na sociedade, as corridas pelo mundo afora começaram a aceitar a participação das mulheres e, pelo fato de aquele ano ser considerado como "Ano Internacional da Mulher", a organização criou a versão feminina.
Em 1979, a chegada foi dentro do Estádio Pacaembu. Mais uma alteração e, provavelmente, uma das mais criticadas pelos atletas de elite e pela mídia. Sedentos pelo fim do jejum de vitórias que se prolongava já havia mais de 30 anos, esses dois grupos viam com maus olhos a retirada da subida da Consolação; a prova, agora de 9 km, seguia em direção à Avenida Pacaembu, terminando com uma volta olímpica dentro do Estádio. Assim, não tinha uma subida sequer, o que era visto como algo que seria vantajoso apenas para os europeus. Os brasileiros com melhores chances, como Elói Schleder, Aloisio Araújo e José João da Silva, afirmavam que a São Silvestre, que outrora privilegiava a resistência, agora passaria a ser uma disputa de velocidade, beneficiando os europeus.

VITÓRIA BRASILEIRA. Embora muito elogiada pelos jornais nos dias seguintes quanto à organização, a vitória fácil do americano Herby Lindsay talvez tenha pesado para que a São Silvestre retornasse ao percurso anterior em 1980. Nesse ano, a organização voltou a incentivar a inscrição do que eles chamavam de "atletas-turistas", e a prova recomeçou uma fase de crescimento quantitativo: foram, oficialmente, 4.839 inscrições, quase 7 vezes mais que no ano anterior. Foi neste ano que, enfim, o Brasil encerrou seu jejum de vitórias, com a espetacular chegada de José João da Silva, que ultrapassou o português Fernando Mamede a poucos metros do pórtico.
Ao mesmo tempo em que na década de 1980 a Corrida Internacional de São Silvestre começava a se interessar também pelo aspecto quantitativo, fomentando crescimento de inscrições (chegando a ter mais de 10 mil em alguns anos), mas também de público assistindo, tanto presencialmente quanto pela TV (a prova era transmitida pela TV Gazeta e pela Rede Globo), a organizadora pensava em ampliar sua distância. E foi em 1982 que a corrida ganhou mais um percurso: agora eram 13,548 km, ampliando o itinerário que já existia, passando por baixo e por cima do Elevado Costa e Silva, o famoso Minhocão.
Os jornais estampavam com orgulho aquela que seria "a mais longa corrida de São Silvestre", que agora teria a largada às 23h05, para que os primeiros colocados chegassem juntos com os fogos de ano-novo. Até 1988, o percurso reduziu 900 metros, passando a ser estender por 12.600 metros, mas continuando a largar no mesmo horário e passando por lugares históricos do centro paulistano como o Largo Payssandu, o Viaduto do Chá e a Avenida Rio Branco.

INVERSÃO DO PERCURSO. Para surpresa de muitos, a prova de 1988 vinha com uma novidade: o percurso seria mantido, contudo corrido em direção inversa. Passaria a sair da Avenida Paulista, desceria a Rua da Consolação e no final subiria a Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, mas não em sua totalidade: na altura da Rua 13 de Maio, desviava em direção à Rua Carlos Sampaio, paralela à Brigadeiro, para enfim chegar à Paulista.
A maioria dos atletas aprovou a medida e acreditava que, assim, a corrida se tornaria mais rápida. A organização, em entrevista aos jornais, afirmava que a mudança se dava não apenas para tornar a competição mais veloz, mas por questão de segurança: se correria cerca de 1,6 km antes de fazer a curva da Rua da Consolação, evitando um súbito afunilamento e, logo, acidentes. Além disso, outra inovação: as largadas masculina e feminina seriam separadas: elas largariam às 20h30 e eles às 23h05. As vozes discordantes já realçavam a constante mudança de percurso, o que descaracterizaria a essência da prova. Mal sabiam o que lhes esperava no ano seguinte.

DA NOITE PARA O DIA. Quem acompanhou pela TV Globo os gritos de Galvão Bueno anunciando a vitória do equatoriano Rolando Vera na virada de 1988, nunca sonharia que estavam assistindo à última edição noturna. Em 1989, a única característica original intacta foi alterada para o final da tarde. Era a "nova" São Silvestre, como anunciavam os organizadores e os meios de comunicação: mais moderna e cada vez maior. A organização previa 1 milhão de pessoas nas ruas de São Paulo para aplaudir os corredores, que largariam às 14h30 (elite feminina), e às 17h (elite masculina e pelotão geral).
A imprensa divulgava quadros de prós e contras da mudança de turno. Entre os prós estavam a transmissão pela TV com mais recursos; o maior número de pessoas que poderiam assistir pessoalmente; com show prometido pelos organizadores, corredores e espectadores poderiam comemorar a passagem de ano com a prova já encerrada. E o calor da tarde também era contado a favor, posto que daria uma vantagem aos sul-americanos em relação aos europeus. Mas o mesmo calor também era lembrado como fator contrário à mudança, pois poderia atrapalhar o desempenho da prova.
Além disso, as críticas iam para o caos que se tornaria a cidade, com alteração de trajetos de 89 linhas de ônibus e a perda da atração televisiva. Mas a principal e justa crítica era a respeito da quebra de uma tradição da prova noturna. A tradição aqui não é somente no sentido de permanência, mas no sentido de diferencial da São Silvestre em relação às outras provas no Brasil e no mundo.
O calor infernal no dia da prova, fazendo a vencedora da edição anterior, a portuguesa Aurora Cunha, desmaiar no final, e a constatação de que o índice técnico fora inferior a 1988, fez com que houvesse boatos de que a corrida voltaria ao seu turno original. Mas ficou nos boatos, pois isso não aconteceu: o então diretor-técnico da prova, Júlio Deodoro, tinha outra ambição além de fazer o evento crescer em números.

ENFIM, OS 15 KM. O interesse era colocar a SS no circuito internacional de provas de ruas da IAAF (Federação Internacional de Atletismo). Uma vez dentro, a disputa poderia se palco de recordes mundiais homologados. Para isso, precisava fazer mais alterações: de 12,6 km, passaria a ter 15 km, com saída em frente ao Museu de Arte de SP e chegada diante da Fundação Cásper Líbero. O percurso "tradicional" do imaginário popular estava estabelecido: a descida da Consolação, o "Minhocão" reaparecia, o tour pelo Centro velho de São Paulo e a temida subida da Avenida Brigadeiro agora era percorrida integralmente. A corrida passou a crescer anualmente, chegando ao recorde de 20.716 concluintes do ano passado e consolidondo-se como a principal e mais tradicional prova de rua no Brasil.
Esse percurso duraria até 2011, quando, por questões logísticas, a prova mudou novamente, com a exclusão da Consolação, do Elevado Costa e Silva e a chegada transferida para ao lado do Parque do Ibirapuera. O que levou a inúmeros protestos de que "São Silvestre é na Paulista" e vários embates entre grupos de corredores e a organizadora. Em 2012, a prova devolveu a largada e a chegada para a Paulista, para alegria dos que cobravam a permanência da "tradição". Mas a saída passou para o começo da manhã…
Fora toda crítica à organização, ao volume de participantes, à bagunça da largada e aos altos preços das inscrições, o fato é que pudemos acompanhar nestas páginas que a maior característica da Corrida de São Silvestre é seu dinamismo, metamórfico, que a acompanha desde 1925, sobretudo no que se refere ao seu percurso. Quanto às suas "tradições", ou melhor, as permanências, a única inalterada até agora é o dia da sua realização. Por enquanto…

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