Sem categoria André Savazoni 30 de março de 2016 (4) (152)

Rumo a Boston: Ibere de Castro Dias e a cidade que homenageia a corrida

Ibere de Castro Dias tem o mesmo dom para o ritmo forte nas provas como para escrever sobre as corridas. Os números e as palavras podem ser o assunto por horas. Talvez dias. Ou seriam meses? É um desses “loucos” por tudo o que envolve o esporte e, assim, envolto por essa paixão, estará, pela terceira vez (correu em 2009 e 2012), alinhado na baia 1 da linha de largada de Boston no dia 18 de abril. Conhece como poucos a prova norte-americana e, na crônica a seguir, descreve com propriedade o que faz da maratona norte-americana um evento único.

Ibere“Explicar em palavras a maratona de Boston é mais difícil que corrê-la. Rola um lance meio místico, de aura. Começa que, para se inscrever, é preciso qualificar-se em outra maratona, com índices que variam conforme sexo e faixa etária. E não são fáceis. Homens até 34 anos, por exemplo, precisam de sub 3h05; mulheres da mesma faixa etária, sub 3h35. Essa dificuldade do índice faz Boston ser tão desejada. Qualificar para Boston exige dedicação, mas está longe de ser impossível. É meio que um selo de excelência. “Aquele cara já correu Boston”. Tum! Carimbo na testa. “Boston qualified”. Ou BQ, como sintetizam os americanos.

Nenhuma maratona no mundo é realizada há tanto tempo, sem interrupções. Faz 119 anos que os corredores tomam as ruas das cidades da região – e os moradores adoram recebê-los. Boa parte dos 15 mil habitantes do vilarejo de Hopkinton, local da largada, acolhe os mais de 25 mil atletas com a hospitalidade típica do interior. A prova sempre acontece na terceira segunda-feira de abril, o Patriot’s Day, celebrado no estado de Massachusetts. As famílias aproveitam o feriado para fazer mais do que assistir. Não é raro ver pais e filhos colocarem, em frente à garagem das casas, mesas com comidas, bebidas e artigos de conveniência para serem usados e abusados pelos corredores.

Por 26,2 milhas (lá, km é raridade) há gente gritando para incentivar. Se os próprios americanos consideram o público da Maratona de Boston o mais entusiasmado dos EUA, que sou eu para negar. Qualquer referência ostentada pelo corredor é motivo. Escreva seu nome na camisa e você vai ouvi-lo um sem número de vezes durante as horas em que estiver correndo. Com sotaques diversos. Se quiser fazer populismo barato, embarque na rivalidade entre os times de beisebol de Boston e Nova York e corra com uma camisa branca, escrito em vermelho ‘Red Sox’. Ou, ainda melhor, ‘Yankees suck’. Capaz de você completar a prova nos braços de bostonianos mais exaltados.

A metade do percurso é em Wellesley, onde há o Wellesley College of Liberal Art, conceituado centro universitário para mulheres. As alunas (são cerca de 2500 matriculadas) se empilham na grade que ladeia o trajeto e ficam gritando tresloucadamente, como se estivessem vendo passar o ídolo pop da adolescência. É o ‘túnel do grito’ de Wellesley. Meio quilômetro antes já é possível ouvir os berros. Também faz parte da tradição que segurem cartazes pedindo beijos aos corredores. “Kiss Me” é o mais comum. Mas há outros impagáveis: “Será meu primeiro beijo”, “Beijo asiático” (há muitas estudantes orientais), “Beije-me. Sou veterana”, “Beije-me. Sou Democrata”. E não são poucos os corredores que, pulmão forte, carne fraca, atendem aos pedidos das moçoilas. Alguns, de várias delas.

Até então, a altimetria dá uma ajudada. Nas primeiras 6 milhas (cerca de 9,6 km), predominam as descidas. Entre a 6ª e a 16ª milha, o percurso parece que tenta tomar jeito e fica um pouco mais plano – com ênfase no “um pouco”. Nenhuma milha é “plana feito panqueca”, como dizem os americanos. Não se corre por cinco minutos sem que se passe por uma subida ou uma descida.

Mas a encrenca brava está entre as milhas 16 e 21. Por isso, é bom aproveitar o “túnel de Wellesley” para descontrair. Dez minutos mais tarde, suas pernas já estarão fazendo força para encarar a primeira das 4 “subidas de Newton”. Tem cerca de 1 km e inclinação de 2,5 graus. As duas seguintes têm pouco mais de 500 m, mas são bem mais acentuadas. A última delas é a pior. Tem cerca de 650 m, com inclinação média de 4,6 graus (chega a 5,2). É conhecida como Heartbreak Hill. Talvez não fosse grande problema se você estivesse no começo da prova, ou se fosse a última puxada logo antes da chegada. Porém, com 21 milhas nas pernas (cerca de 33 km), pode apostar que aquela será sua passagem mais lenta da prova. E ainda faltarão mais de 5 milhas (8 km) para o fim.

Em compensação, o “Heartbreak Hill” marca o ponto mais alto do percurso. A partir dali, voltam a predominar as leves descidas, com poucas e curtas subidas. Na milha 25 avista-se a placa com o logotipo da petrolífera “Citgo”. Está colocada no Fenway Park, estádio de beisebol do Red Sox. É o primeiro sinal de que falta pouco para a Rua Boylston e o pórtico de chegada.

Se o percurso dificilmente fará com aquele seja seu recorde pessoal pelo resto da vida, a organização do evento é impecável e compensa todos os esforços para participar da prova. Não há a menor hipótese de a comparar com a organização das corridas brasileiras.

Começa por haver transporte suficiente para levar os mais de 26 mil inscritos de Boston a Hopkinton, local da largada. A fila que se forma não impede que, em 20 minutos, esteja-se (os participantes estejam) dentro de um daqueles ônibus escolares amarelos, típicos de desenhos animados. Com um bando de corredores sentados lado a lado, os 45 minutos de viagem são preenchidos com conversas sobre… corrida (falta uma “é claro”).

A feira da maratona é enorme e faz lembrar o incomparável gosto dos americanos por consumir. Lá estão todos os fabricantes de material esportivo, nutrição esportiva e aparatos para corrida, sempre com lançamentos e bons descontos. Há salas destinadas a palestras e filmes sobre corrida. Não à toa, é acreditada como a melhor feira de maratona dos EUA. Na noite de domingo que antecede a prova, ocorre o jantar de massas, gratuito para os inscritos (US$ 25 para acompanhantes).

Se a maratona de Nova York é uma corrida que homenageia a cidade, a maratona de Boston é uma cidade que homenageia a corrida.”

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4 Comments on “Rumo a Boston: Ibere de Castro Dias e a cidade que homenageia a corrida

  1. Sensacional, Iberê. Viajei no tempo aqui, relembrando tudo que descreveu. Todo mundo deveria ter oportunidade de correr Boston um dia.

  2. Fantástico Iberê, após o atentado de 2013 se tornou a maratona que celebra a vida (para mim).

  3. Cleber, quanto à celebração da vida, depois de tudo o que acompanhamos lá no atentado, penso o mesmo! Abraços

  4. Relato muito bom e deu uma vontade louca de estar lá

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