Notícias Redação 29 de julho de 2011 (0) (129)

Recorde de brasileiros na Comrades

O sentimento de desafio, somado ao orgulho de assistir ao coroamento com o Green Number do Nato Amaral, levaram-me a enfrentá-la e completá-la pela terceira vez, junto com outros 73 corredores do país. Os que não conhecem o percurso e suas dificuldades podem concluir que tendo sido a pessoa exitosa uma vez, as outras serão meras repetições. Nada disso ocorre.

São tantas as variáveis que é impossível prever o que irá ocorrer ao longo das 12 horas permitidas para término do percurso de 87 km, quando se sobe de Durban para Pietermaritzburg, como agora, ou 89 km no sentido inverso, variação de cada ano.

Pretendia diminuir meu melhor tempo na Comrades de 2007, que foi de 10h59, ao menos um pouquinho. Na pior das hipóteses, repeti-lo, para fazer jus aos longos e extenuantes treinamentos de vários meses. Parentes e amigos são testemunhas do tempo dedicado a este evento – todos os treinos de corrida e musculação, e cuidados com a saúde, através de acompanhamento médico e nutricional.

Na tarde anterior à prova, Nato organizou uma reunião exclusiva dos brasileiros com o nove vezes campeão Bruce Fordyce. Depois da descrição minudente do percurso, o palestrante respondeu a  perguntas da platéia. Numa das suas vitórias, Bruce atingiu o final da corrida todo torto, num esforço aparente fora do comum para um atleta da excelência dele. Questionado a respeito, ele explicou ter sido pouco antes da chegada acometido por câibras fortíssimas, daí sua expressão de dor e contorções corporais. Aconselhou a todos que por pior que fosse a contração muscular, o atleta jamais deveria parar – que mudasse o ritmo ou a passada, mas nunca estancasse, pois fatalmente pararia.

Mais adiante, discorreu sobre os marcadores de ritmo, os chamados "ônibus", principalmente sobre o último, empenhado em finalizar a prova "sub 12h" e que por congregar sempre o maior número de corredores era o mais animado. Avisou que enquanto enxergássemos a bandeirinha do líder deste grupo, havia esperança de chegar ao final a tempo, pois sempre havia uns cinco minutos a mais de cálculo para permitir que todos os integrantes pisassem na linha de chegada antes das últimas badaladas do relógio.

Apesar de minhas pretensões de finalizar com uma hora de antecedência do término, não deixei de ouvir todos os conselhos da voz da experiência, mesmo porque naquele momento não tinha a menor consciência de como estas informações seriam cruciais para mim. Por mais que se deite cedo, poucos conseguem dormir direito na véspera da Comrades. Respira-se ansiedade no café tomado às 3h30.

Dia 29 de maio, ao som de Carruagens de Fogo, Shosholoza, o hino nacional da África do Sul, o canto do galo e finalmente o tiro, às 5h30 da manhã foi dada a largada. Seis minutos depois, pela distância da minha baia, eu pisava efetivamente no tapete do chip e durante os primeiros quilômetros corri feliz em meio à multidão de quase 15 mil corredores, em direção a Pietermaritzburg.

Alcancei o "ônibus" das sub 11h. Nas duas corridas anteriores, havia seguido minha intuição, não tendo nem mesmo atentado para estes marcadores, mas já que estava no meio do grupo, resolvi acompanhá-lo. Corriam, caminhavam, num ritmo bom para mim, sem problemas. À margem do caminho, a organização da prova sempre coloca cartazes informando a quilometragem que falta para atingir a linha de chegada.

A câibra chegou e forte. Fui muito bem até o km 40 quando uma câibra começou a morder o músculo posterior da coxa. Nunca tivera câibras antes em provas. A reação normal é parar, pois a perna trava. Pensei imediatamente no conselho do Bruce: mude a abordagem da passada e continue. Procurei na minha pochete uma drágea de analgésico que sempre levo, tomei e fui em frente, como podia, pé ante pé, com as pernas duras como um soldado alemão marchando miudinho. É claro que o ônibus sub 11h perdeu-se na distância e com ele minha esperança de terminar naquele prazo, mas minha maior preocupação era continuar. Quinze, vinte minutos depois, conseguia trotar, com o músculo ardido, mas funcionando.

Mas aí veio o repeteco, ainda pior, pois os músculos da região atingida já estavam doloridos. Dane-se o mundo e ingeri outro comprimido. Vi então o "ônibus" das sub 12h me alcançando. É neste que eu vou, pensei, e pus-me a segui-lo, fixada na bandeirinha erguida pelo líder. Não era fácil – por vezes ficava na rabada, desesperada. Vi as vans recolhendo os desistentes, bem ao meu lado. Por pouco não entrei numa delas, para terminar a agonia… Foi quando mentalizei que não deveria cair na armadilha do desânimo.

Tinha que pegar minha medalha ou ao menos tentar até o fim. Consegui passar pelas linhas de corte e faltando 11 km para o término já corria e caminhava, vinte minutos à frente do último ônibus. A esperança estava quase se tornando realidade e a torcida da platéia é tudo que se precisa naquele momento de angústia e dor. Depois de 11h44 pisei gloriosa o tapete do estádio de cricket de Pietermaritzburg, para alívio dos que me aguardavam.  Quem sabe na próxima eu melhoro? 

ELA MERECE TODO SACRIFÍCIO

A ultra-maratona mais famosa do mundo, a Comrades, na África do Sul, nasceu do determinismo de Vic Clapham, combatente voluntário na 1a Guerra Mundial, na Campanha do Leste da África. Em função do clima e de condições sanitárias inacreditáveis, causadoras de baixas tão significativas quanto o combate em si, este maquinista da South African Railway contraiu peste negra, malária e disenteria, só não morrendo porque um camarada carregou-o nas costas por mais de 50 km, vencendo terrenos pedregosos, afundando em areias, subindo e descendo morros, atravessando florestas, até chegar ao local de socorro médico, onde o amigo foi salvo.

Terminada a guerra, Clapham imaginou uma corrida entre as cidades de Pietermaritzburg e Durban que homenageasse a bravura dos companheiros sul-africanos mortos em ação e em especial do que lhe salvara a vida. Para tanto, de 1918 até 1921, insistiu junto à Liga dos Companheiros da Grande Guerra para que patrocinasse o evento que teria como cerne, a amizade e o companheirismo. Após anos de insistência, a Liga deu-lhe permissão para realizar o evento em nome da entidade. A perseverança e dedicação de Vic Clapham deram origem àquela que se tornaria a rainha das ultra-maratonas.

Por que pessoas dos mais diversos lugares do mundo se apaixonam por um evento que consiste em atravessar correndo e andando, do raiar do sol ao poente, no tempo limite de 12 horas, um percurso que varia de 87 a 89 km a cada ano, mais que o dobro de uma maratona, numa região montanhosa, que tanto controle exige do corpo e da mente? Indo além, porque tantas se submetem mais de uma vez a este desafio (como eu…)?

A determinação e o altruísmo do criador da Comrades fizeram-na nascer já importante, com uma personalidade própria. Famílias inteiras das cidades que margeiam o trajeto postam-se ao longo do caminho, incentivando com entusiasmo e carinho os corredores e são tão participantes da prova quanto eles. Atualmente, é o evento esportivo transmitido ao vivo com maior audiência na África. No dia subseqüente, os jornais que noticiam os resultados esgotam-se em todas as bancas.

 A FESTA BRASILEIRA – Este ano, como todos os que se interessam por corridas de rua sabem e que foi objeto de uma matéria na Contra-Relógio de maio, Nato Amaral, primeiro brasileiro e sul-americano, recebeu o Green Number – com honrarias e privilégios que a organização concede aos que conseguem participar com êxito da prova por dez anos. É dele agora, e para sempre, o número verde 4818.

Presentes à comemoração de Nato na noite de domingo, no hotel que estava a maioria dos brasileiros,  sua mãe, sogra e esposa, às quais agradeceu terem suportado por tantos anos seus treinos pesados, horários puxados, sacrificando programas, mudando os esquemas familiares, fazendo concessões de forma a permitir a realização deste título sonhado. Agradeceu igualmente àquele que tecnicamente permitiu-lhe chegar onde queria, ministrando-lhe o treinamento necessário às suas conquistas: Vanderley Severiano, o Branca.

Pelo fascínio que exerce nos que já participaram da prova, é provável que muitos outros Green Numbers vão ser comemorados no Brasil, daqui para frente. (M.E.C.)

 

CALÓI, O MELHOR BRASILEIRO

Dos treinos previstos, Edvaldo Souza, o Calói, de 52 anos, só completou um, desanimou, mas concluiu os 87 km na África do Sul em 6:48:15

 

"Duas semanas antes da prova, falei ao meu técnico que queria desistir". Foi assim que começou a conversa com o porteiro Edvaldo Souza, o Calói, de 52 anos, o melhor brasileiro na Comrades 2011, com 6:48:15, média de 4:41/km, 4º na categoria, 113º no geral. "A preparação psicológica com o Branca (Vanderlei Severiano, seu técnico há nove anos) foi muito boa", disse Souza.

Dos treinos previstos, só completou um de 53 km na serra de Alphaville, na Grande São Paulo. Nos outros, parou antes do final. "Tentei três vezes, por exemplo, correr de Ferraz de Vasconcelos, onde moro, a Ribeirão Pires, num trajeto de 54 km, mas parei com 32, 45 e 39 km. Isso me desanimou", disse Souza. Os treinamentos que valeram foram feitos do prédio em que trabalha, na Vila Mariana, bairro de São Paulo, até Ferraz de Vasconcelos: 39 km com a mochila e a marmita nas costas. "Daí, não tinha como parar, tinha de chegar em casa", contou, rindo.

Assim, Calói foi para a Comrades com o plano A e o B traçados com Branca. O A era terminar. O B, antes de 8 horas. Porém, na medida em que os quilômetros iam sendo percorridos, a confiança melhorava. "Passei a primeira metade bem, tranquilo, e fui seguindo, com a meta de não andar em nenhuma subida. E não andei. Caminhei apenas nas descidas fortes, que são mais difíceis para mim", disse o porteiro. Durante o percurso, Souza parou quatro vezes para fazer massagem ("como prevenção, porque sempre sofri com as câibras, mas não senti nenhuma na África") e outras quatro para ir ao banheiro. "Em todo percurso, havia pessoas incentivando, o que ajudou muito."

Souza chegou ao final sem dores, sem perder unhas ou formar calos, como descreve. Mas quem acha que ele ficou 100% feliz com o desempenho, está enganado. "Agora, pensando, acho que faltou coragem, podia ter ido mais forte". Vai voltar em 2012? "Eu quero, para fazer a descida (nos anos pares, o percurso é para baixo e a distância aumenta para 89 km)". Neste ano, contou com a ajuda dos companheiros de treinos e de empresários, que custearam a viagem. Assim, a parte financeira é a incerteza para retornar à África do Sul.

O porteiro corre há 26 anos, desde 1985. Sua prova é a maratona. Os melhores tempos são de 2002: 2:19:44 em Blumenau, 2:19:23 em Dourados e 2:19:48 em Florianópolis. Neste primeiro semestre, só teve a preparação para a Comrades. Agora, tem como foco os 42 km em Foz do Iguaçu e Curitiba. Pode ainda fazer os 75 km de Bertioga-Maresias e a Maratona de Londrina. (André Savazoni)

MUZHINGI VENCE DE NOVO!

Desde que o sul-africano Bruce Fordyce terminou sua incrível série de 8 vitórias consecutivas há 23 anos (1981-88), nenhum homem havia conseguido ganhar a Comrades 3 vezes consecutivas. Essa escrita foi quebrada por Stephen Muzhingi, do Zimbábue, que venceu a prova de 87 km, com 5:32:45. Entre as mulheres, pela sexta vez, a primeira e segunda colocação ficaram com as gêmeas russas Elena e Olesya Nurgalieva.

 

 

 

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