Sempre que se inicia um planejamento de treinos, o primeiro passo é contar quanto tempo existe entre hoje e o objetivo final do treinamento. Isto é verdade tanto para iniciantes, que visam correr 5 km pela primeira vez daqui a três meses, quanto corredores de elite que buscam baixar seu tempo de maratona em um minuto ao longo de um ano inteiro.
Para planejar o treinamento, será necessário dividir o período de preparação em fases, de forma que cada período dentro do planejamento global funcione como um bloco a mais de uma construção. Se, ao final do ciclo de treinos, cada bloco tiver sido construído com a duração e intensidade certas, o resultado tende a ser o esperado, caso contrário o treinamento se torna muito intenso, e o corredor invariavelmente se lesiona ou desiste do objetivo primário.
Muitas das variáveis que influenciam essa equação, no entanto, são impossíveis de prever. Disfunções anatômicas internas, maior predisposição a lesões e outros fatores simplesmente não são aparentes quando se trabalha com corredores, até que resultem em algum problema. Da mesma forma, o grau de resposta que uma pessoa apresenta diante de um determinado exercício também pode variar muito, tendo inclusive um forte componente genético.
Felizmente, boa parte das adaptações metabólicas e estruturais que acontecem como resultado do treino de corrida já possuem um curso de adaptação conhecidos, o que permite que treinadores elaborem seus planos com uma margem de erro pequena para o tempo de duração de cada período. Assim, é possível ao mesmo tempo otimizar as respostas ao treinamento e diminuir o risco de lesões com o exercício.
INSEGURANÇA. Para começar, nada melhor do que falar de iniciantes em corrida. Eles formam um grupo especial porque sua performance não está limitada por reações fisiológicas, de modo literal. O maior obstáculo de quem começa a correr é a própria percepção de sua capacidade física. Na verdade, é possível que a perfomance de corredores de todos os níveis esteja limitada pela percepção, e não pela fisiologia. Esta hipótese contudo é muito mais evidente em iniciantes do que em atletas mais experientes, que possuem uma diferença muito menor entre sua capacidade fisiológica e a percebida.
Para quem inicia um prática nova, acredita-se que cerca de quatro sessões, semelhantes em duração e tipo de série, é a quantidade necessária para que esta barreira causada pela percepção se aproxime de forma condizente da barreira fisiológica. Esta barreira criada pela percepção de esforço da qual estamos falando existe por um motivo muito simples: proteção.
Para entender melhor como o sistema funciona, pense num elevador com um aviso de que a carga máxima permitida é de 500 kg. Isto não quer dizer que com 501 kg de peso os cabos irão se romper e o elevador despencará. Ele pode até se recusar a trabalhar com mais de 500 kg, mas isso não quer dizer que ele não consegue levar mais do que o peso anunciado. O que existe é uma barreira imposta pelo fabricante (ou pelo cérebro, no caso da corrida), que tem por objetivo evitar cargas próximas de onde os cabos realmente arrebentarão (ou um grau de esforço que seja perigoso para o organismo, de qualquer forma).
Quando um iniciante passa a treinar, é como se ele não soubesse ao certo quanto peso o elevador pode aguentar, então sua percepção de esforço está aumentada, e ele se sente cansado com cargas que não necessariamente são máximas para a sua capacidade fisiológica. Como vimos, este efeito é breve e em cerca de duas semanas a performance do iniciante já estará muito próxima de seu potencial fisiológico.
Assim, é importante saber que é incorreto prescrever um treino para um iniciante baseado em um único dia de treino ou avaliação, ou caso contrário é preciso fazer uma reavaliação muito em breve. Apesar de sabermos que poucas alterações fisiológicas significativas acontecerão de um dia para outro, sabemos que estas outras adaptações "psicológicas" por assim dizer, ocorrerão, e qualquer treinamento baseado apenas na primeira sessão ficará leve muito rápido. Estudos sérios sobre treinamento, por exemplo, costumam fazer uma ou até duas semanas de adaptação em participantes destreinados antes de realizar as avaliações pré treinamento, a fim de que os testes não sejam influenciados pela simples falta de familiaridade dos participantes com a tarefa.
ADAPTAÇÕES FISIOLÓGICAS. Uma das adaptações mais evidentes do treinamento aeróbico é a redução da frequência cardíaca durante a corrida. Com a popularização do uso dos frequencímetros, esta é hoje uma das principais ferramentas para se medir adaptações ao treinamento. Existem dois sistemas que determinam a frequência cardíaca, de forma simplificada. O sistema nervoso simpático e o parassimpático.
O sistema nervoso simpático, quando estimulado, aumenta os batimentos do coração (entre outras coisas), enquanto o parassimpático faz justamente o contrário. Como os dois atuam ao mesmo tempo, a frequência cardíaca é na verdade o resultado da interação entre os dois. A prática de exercícios aumenta a atividade parassimpática e diminui a simpática durante a corrida, conforme a atividade se torna menos agressiva frente à capacidade do organismo.
Estas adaptações acontecem na medida em que o coração fica mais forte, e consegue bombear mais sangue para os músculos a cada batimento, sem precisar bater tantas vezes. Programas de treinamento envolvendo 30 a 50 minutos de atividades físicas diárias, de intensidade moderada a alta, mostraram que já a partir de 3 semanas se observa um pico na queda da atividade simpática, ao passo que a frequência cardíaca continuou caindo ao longo de todas as sete semanas do treinamento estudado.
A queda dos batimentos para uma mesma velocidade de corrida acompanha os corredores durante um longo período de suas carreiras, muito além das sete semanas do estudo, mas já deve estar presente a partir de três semanas de treino. Se não estiverem, já é sinal de que alguma coisa não começou bem!
Seguindo a cadeia de entrega de oxigênio e combustível para os músculos, a próxima questão seria saber quanto tempo os vasos sanguíneos levam para se adaptar ao maior volume de sangue bombeado pelo coração. Estudos com ratos mostram que uma única sessão de exercícios já aumenta a resposta de vasodilatação, que dura por até cerca de dois dias. Com o acúmulo de sessões, a duração da adaptação também se estende. Seis semanas consecutivas de exercício, por exemplo, mantiveram as adaptações por até oito dias de destreino.
Com um coração mais eficiente, e um sistema de distribuição de oxigênio e energia também aprimorado, é preciso que os músculos trabalhem de maneira mais eficiente também. Estudos genéticos demonstraram que cerca de 4-8h após uma sessão única de exercício já existe uma maior ativação de genes responsáveis por adaptações metabólicas dentro das células musculares.
FIBRAS LENTAS E RÁPIDAS. No entanto, as fibras lentas e rápidas que existem dentro de todos os músculos parecem obedecer a regras diferentes no que diz respeito ao seu grau de adaptação, e para se obter um resultado homogêneo entre as diferentes fibras ao mesmo tempo é recomendado que se utilize diferentes tipos de séries (intervaladas mais intensas junto com séries longas em ritmos menos intensos). Estudo em ratos demonstraram que em duas semanas de treinamento já é possível perceber alterações na massa muscular cardíaca, evidenciando adaptações deste orgão.
Como o leitor já pode ter percebido, todas as adaptações de que tratamos aqui parecem ocorrer super-rápido, sem grandes diferenças entre elas. Então qual o problema? O problema é o seguinte: todas estas adaptações parecem ter o seu pico em cerca de 3-5 semanas. Assim, para cada novo nível de condicionamento físico de um corredor, um período desta magnitude com uma nova carga de treinos parece ser o ideal para trazer as melhoras desejadas. Claro que, com o passar dos anos e aumento do condicionamento, este período aumenta consideravelmente, até que seja preciso meses e meses para um pequeno ganho de performance.
A principal preocupação de treinadores, no entanto, diz respeito à estrutura muscular, tendínea e óssea dos corredores. Estes três levam muito mais tempo, nesta ordem respectiva, para se adaptar a uma carga do que o sistema cardiovascular. Assim, não são raras as situações em que os corredores sofrem lesões por estresse repetitivo. A musculatura leva cerca de 6-8 semanas em uma carga de treino para apresentar mudanças estruturais, como a hipertrofia celular, por exemplo, apesar de evidências de respostas já serem visíveis desde a primeira sessão de treinamento.
Como estas estruturas são as responsáveis por absorver as cargas de impacto geradas pela corrida, é fundamental que o corredor esteja treinando sempre de acordo com elas e não de acordo com o que o coração permite. É fundamental que se esteja sempre atento a sinais como dores que surgem como um "incômodo" e vão crescendo até que o corredor seja obrigado a se preocupar com ela.
É justamente para respeitar este diferença no tempo de adaptação que muitos treinadores recomendam um espaço maior durante o ano para o período de preparação de base, com cerca de até três meses, no início do ciclo de treinos, onde o volume total aumenta e a intensidade diminui, para permitir que nosso sistema estrutural se apronte para as cargas maiores que virão a seguir.