A comoção foi geral, por conta da notícia do falecimento da atleta e treinadora Cristina de Carvalho, de São Paulo, no dia 25 de dezembro. Mulher linda, forte, determinada, ótima profissional, gente boa… Difícil acreditar que tivesse ido assim, tão cedo, aos 46 anos. O Brasil perdia uma grande esportista, admirada e respeitada por todos, vencida por um câncer que teve início no seio quatro anos atrás e alastrou-se para os ossos.
Apaixonada pelo que fazia, Cris era polivalente e desconhecia limites. Tanto que ao longo da vida transitou e deixou sua marca pelos universos das corridas de rua, de aventura e de montanha, ultramaratonas, duatlos, triatlos, MTB e tudo que representasse endurance e adrenalina. Ainda nova, começou pegando onda de bodyboarding. Cursando a Faculdade de Educação Física na USP, migrou para o atletismo e depois foi para o triatlo. Nos anos 1990 dominou a cena como triatleta, com significativas conquistas nacionais, sul-americanas e no Ironman Havaí (onde foi top 15).
Seu nome era sinônimo de alta performance e pódio em provas como X-Terra, Ecomotion, Cruce de Los Andes (aliás, foi a mulher que mais venceu o Cruce) e UTMB. Diretora técnica do Núcleo Aventura e do Projeto Mulher, uma das primeiras especializadas no treinamento de corrida para mulheres de São Paulo, também colocou muita gente para correr e superar desafios com brilho nos olhos. "Um corpo em movimento amplia todas as nossas fronteiras e a nossa capacidade de realização", dizia.
Por onde passou, Cris fez a diferença. É o que você vai ver a seguir nos depoimentos e histórias de pessoas que conviveram com ela. E é assim também que prestamos nossa homenagem a essa mulher incrível, profissional de primeira, que sempre foi muito amável e solícita com a equipe da Contra-Relógio.
UM SONHO QUE CRESCEU. A administradora Adriana Salles, sócia de Cris Carvalho no Núcleo Aventura Projeto Mulher, começou a parceria 15 anos atrás. "Conheci a Cris por meio de uma amiga, a nutricionista Heloísa Guarita. Comecei a correr com ela e, alguns anos depois, viramos sócias. Eu era do mercado financeiro e ela queria fazer a assessoria crescer. Foi uma união incrível. Vínhamos de mundos muito diferentes e nos tornamos complementares – tínhamos cumplicidade e respeito uma pela outra. Dividimos um sonho e batalhamos juntas todos os dias!"
Adriana conta que o que mais admirava na amiga era sua força. "Ela dava conta de tudo de forma surpreendente. 2015 foi o ano que ganhamos de presente ao lado dela – porque no final de 2014 a situação de saúde já era delicada. Mas ela deu treino, trabalhou ativamente, participou de provas – e mesmo chegando depois de todo mundo, estava tudo bem. Nunca se colocou como doente, porque não tinha espaço para isso em sua vida. Ela deixa um legado como atleta e mulher muito forte, corajosa, perfeccionista, humilde e afetuosa. A Cris lutou muito por nossa empresa. E agora eu, nossa equipe e todos os nossos alunos temos a obrigação de continuar com a mesma garra, a mesma poesia, a mesma alegria e tentar de alguma forma a perfeição que ela tanto quis!"
SINCERIDADE ACIMA DE TUDO. José Caputo e Cris conviveram muito tempo como amigos antes de se tornarem marido e mulher. "No início da década de 90, eu fazia triatlo e ela era uma molecota, corredora de pista, forte. O esporte era visto e tratado de outra maneira. Naquela época não tinha essa coisa de treinar por qualidade de vida. Todo mundo tinha um diferencial físico. A Cris também era forte no ciclismo e gostava de estar entre os meninos, em treinos encabeçados pelo Butenas, pelo Arap… A única presença feminina em São Paulo era ela. Suas marcas eram a audácia, a energia e a felicidade em tudo o que fazia", lembra Caputo.
Em 30 anos que se conheceram, 15 destes casados, viveram muitas histórias especiais. "Tivemos momentos grandiosos e coisas singelas, do cotidiano. Ficamos 30 horas sem comida no mundial na Nova Zelândia, remamos infinitas horas na Patagônia, fizemos o Cruce de 2014, nossa última competição juntos, já com a doença avançando e mesmo assim chegamos em quinto ou sexto lugar… E teve uma prova de 10 quilômetros, ela no meu encalço, ‘incomodando', e eu lutando para manter o ‘título' lá em casa", lembra com alegria.
Dessa paixão, nasceu Luigi, hoje com 10 anos. "Ele é a Cris. Uma cópia da mãe. E pega onda igual a ela. Outro dia, estávamos na praia, mar agitado, e o orientei a ficar no raso. Mas quando vejo, o Luigi está lá na água, junto com a galera do surfe. Eis que entra uma série de ondas e ele vem. Quando o encontro, com aquela carinha assustada, já chamando sua atenção, perguntei se não teve medo. Ele responde: ‘sim, estava com medo, mas eu passei. E não foi legal, pai?' Tem a mesma coragem da Cris." Para Caputo, uma da maiores qualidades da mulher era a sinceridade. "Ela foi muito sincera em tudo o que fez. O ato de ser clara era a maneira mais pura de viver. E seu sorriso… que sorriso!"
AMIGAS DE PÓDIO. A amizade entre Cris Carvalho e a atleta Graça Moreira começou no final dos anos 1990. "Ela estava saindo do triatlo e indo para as corridas de rua e a gente acabava se encontrando nos pódios", lembra Graça. Até que surgiram oportunidades de correrem juntas, em provas de revezamento – e somando as forças, os resultados só poderiam ser ótimos. "A Cris sempre foi determinada, focada, muito tática. E também muito justa. O que combinou, tinha de ser feito. Por isso, quando era brava, era brava mesmo!"
O último encontro entre elas foi marcante. "No ano passado, ela me chamou para uma corridinha no Ibirapuera. E lá estava tendo uma ação do Outubro Rosa, que oferecia gratuitamente a mamografia e lembrava a importância dos exames para detectar precocemente o câncer de mama. Ela perguntou se eu fazia periodicamente a mamografia e insistiu que aproveitasse a oportunidade. Terminamos o treino, ela falou com segurança que tomava conta da fila do exame, contou que tinha câncer, que eu estava ali para acompanhá-la no treino e acabou conseguindo um lugar para mim. A Cris me contou que tinha um nódulo, mas que o médico disse que não era nada sério, só que no ano seguinte já estava com metástase. Por isso era para eu ficar atenta e me cuidar."
CORAGEM DEFINE. Eles se conheceram em 1991 em uma prova de triatlo, o Troféu Brasil de Santos. "Ela queria treinar comigo", conta Alexandre Ribeiro, treinador e hexacampeão do Ultraman do Havaí. Depois, namoraram por um ano. "Ela sempre teve um incrível brilho nos olhos, viveu intensamente e com energia. Conseguia surfar ondas de dois metros em Itamambuca, depois de varar uma noite inteira acordada nas festas de São Paulo, e ainda sair para pedalar 140 quilômetros na Rio-Santos. Ela fez a vida dela do jeito que planejou e foi feliz trabalhando no que mais gostava. Coragem define a Cris. Com ela nunca teve ‘não posso, não consigo'".
O namoro terminou, mas a amizade permaneceu. Tanto que até fizeram provas juntos depois. "Formamos uma dupla mista no Cruce de Los Andes. Lideramos no primeiro e no segundo dias, com uma pequena margem de vantagem. No terceiro dia, ela torceu pé no meio da competição, justamente quando tínhamos aberto distância. Mas enfaixou o pé e seguiu, fingindo que estava tudo bem para que os adversários não percebessem. Ela só deixou lindas recordações. Foi uma pessoa magnífica, de caráter exemplar, boa de coração. E tudo o que fez, fez bem. O mundo está precisando de mais Cristina Carvalho."
FADA MADRINHA. "Há 20 anos, quando comecei a fazer massagem e acupuntura, minha primeira paciente foi Cristina Carvalho, triatleta profissional. E ela foi uma ‘fada madrinha' para mim", revela, emocionada, Naomi Namekata. Isso porque Cris começou a indicá-la aos amigos, abrindo uma oportunidade no meio esportivo.
"Nunca fiz nenhum esporte e ela sempre me convidava para treinar, mas eu protelava. Há 10 anos, me deu uma dura: ‘somos profissionais liberais, se não dermos prioridade para nós mesmas, nunca conseguiremos. Vamos, Naomi!' Eu fui e nunca mais parei de correr. Parece que rejuvenesci uns 20 anos."
Graças à treinadora, Naomi participou de várias corridas de montanha, inclusive o Cruce de Los Andes algumas vezes. "Tenho certeza que, como eu, muitos devem sentir a mesma coisa: por onde a nossa ‘Fada Cristina Carvalho' passou, deixou o ‘pó mágico' de ensinamentos: garra, determinação, sabedoria, humildade, bondade, perseverança, superação e não desistir jamais! Ela conseguiu mudar o rumo da minha vida para melhor. Foi como uma filha para mim. Tudo o que consegui de bom foi por meio dela. Sem sua ajuda não estaria onde estou hoje, cheia de bons amigos e pacientes que confiam no meu trabalho."
MOTIVAÇÃO PARA TODOS. Diretor da Kailash Brasil e atleta, Tani Oreggia conheceu Cris na elaboração de um projeto dela para crianças e adolescentes chamado Acampamento de Aventura. A aproximação veio naturalmente pela paixão mútua pelo esporte, principalmente ao ar livre. "O que mais admirava nela como profissional era sua capacidade de liderança e sua capacidade de motivar os alunos – Cris me treinou para várias provas. Como atleta, admirava sua capacidade de concentração e sempre para vencer. Como pessoa, foram muitos momentos bacanas ao seu lado. Gostava demais de sua transparência e sua autenticidade", revela.
Tani diz que ficou sabendo da doença da amiga logo no inicio. "Apesar da gravidade, ela sempre tratou o assunto com muita leveza. E mais uma vez mostrou ser uma pessoa diferenciada. Sabemos que enfrentou momentos muito difíceis, mas nunca se abateu ou deixou que a gente se abatesse. Nos encontramos a última vez antes do Natal, durante uma palestra que ela deu para os atletas iniciantes inscritos no Cruce de Los Andes, como fazia todos os anos." Para ele, o legado que a treinadora deixou é gigante. "Todos que tiveram contato com a Cris vão levar muitos dos seus ensinamentos."
ILUMINADA. A treinadora e atleta Cilene Sophya Santos conhecia Cris, desde sua graduação na Faculdade de Educação Física. Mas seu primeiro contato aconteceu na corrida Nike 600K, em 2009, quando integrou uma das equipes comandadas por Cris. "Durante um dos meus trechos na prova, bem na divisa entre São Paulo e Rio de Janeiro, ela passou por mim no carro de apoio, colocou a cabeça para fora do carro e disse: ‘Ci já conheço seu currículo. Na segunda-feira te espero no meu escritório para compor minha equipe'. Eu apenas sinalizei com um ok e, a partir de então, nunca mais nos separamos." As corridas foram responsáveis por tudo. "Tínhamos algo em comum: ‘nunca largar o osso'. Ela sempre foi atleta de ponta e eu comecei a ser competitiva ‘quando já era velha' – era assim que ela dizia. Sempre nos comprometemos muito com os treinamentos e entramos nas competições com a cabeça erguida."
A garra de Cris Carvalho fascinava Cilene. "Ela possuía uma capacidade incrível de controlar seu ‘medo' (do que vem pela frente, do que vai acontecer). Como pessoa, tinha um coração doce, era muito amiga, parceira de verdade. Como profissional, era superexigente, odiava as atividades monótonas e malfeitas. Tudo devia ser perfeito, dinâmico e feito com muito entusiasmo. Além disso, exigia resultados."
Também viveu muitas histórias ao lado da amiga. A mais marcante foi no Cruce de 2013. "A Cris me convidou para ser sua dupla. Apesar de ter sido diagnosticada com câncer, ela decidiu competir naquele ano e me avisou que, mesmo com a doença, poderia ‘dar pau em mim'. No segundo dia, estávamos liderando nossa categoria e, na subida muito íngreme de um vulcão, ela pediu que diminuísse o ritmo. Eu disse que não iria aliviar, mas poderia levar seu camel back. Quando chegamos ao topo do vulcão, no meio do nada, em um ‘imenso deserto', ela voltou a dizer que não conseguia manter o ritmo. Respondi que deveria controlar a cabeça por um momento, pois não podíamos diminuir o ritmo. Ela então foi dura comigo: ‘você acha que não estou fazendo esforço? Você pensa que não estou dando meu melhor? Então vai sozinha, segue sozinha'. Tentei pedir para se acalmar e seguir firme, porém ela não me deu chance de falar nada… A partir daí, correu na minha frente por um tempo (impondo o ritmo) e depois voltei a comandar. Em algum momento, ela começou a falar do trabalho e diminuiu muito o passo, então voltei a falar para apertarmos o ritmo – isso foi como um tapa na cara. Ela parou e me xingou de todos os nomes que se possa imaginar. Eu apenas fiquei calada. Quando chegamos ao acampamento, ela pediu desculpas e depois brincou com a situação. Disse que, da mesma forma que me chamou no escritório para me admitir na equipe, poderia chamar para me demitir. Foi uma situação de muito estresse competitivo, mas também foi tudo muito lindo e intenso."
Com a parceira, Cilene diz que aprendeu principalmente a acreditar que pode ir muito além do que imagina. "A Cris tinha algo muito especial em suas palavras, elas eram fortes, capazes de nos transformar mesmo em situações de insegurança. Como profissional, era uma mestra. Todos os dias havia um ensinamento novo e, por mais simples que fosse, era algo que me fazia ser melhor. A Cris deixou muita luz. Tudo que ela falava e, principalmente, o que fazia, era de coração. Assim, suas ideias se concretizavam. Além de ser forte mentalmente, sua energia motivava. Ela tinha o dom de fazer acontecer o que parecia perdido."