Blog do Corredor Redação 8 de janeiro de 2020 (6) (181)

PARA REFLETIR ENQUANTO SE CORRE

Por Thiago Gonçalves

O ano é 2050 e o mundo parou para assistir o Desafio 1:29 – a primeira tentativa humana de correr os 42 km em menos de 1h30, considerada a última barreira do atletismo. Para alcançar esta proeza, toda uma estrutura foi montada de modo a controlar as condições o máximo possível, com uma pista 100% plana, protegida de vento, chuva e calor ou frio extremos.

Entre tantos aparatos tecnológicos, contudo, nada se comparava ao atleta, um queniano que detinha o atual recorde mundial na maratona (1:31:42). O chip-GPS instalado diretamente em seu cérebro exibia no canto da visão o ritmo, a frequência cardíaca, a cadência, a distância percorrida e ainda tocava os gritos eufóricos e aplausos da plateia virtual que assistia ao espetáculo pela internet. A roupa, uma espécie de segunda pele, favorecia a aerodinâmica e mantinha o corpo do atleta na temperatura ideal. Sem contar os nano-robôs, que fortaleciam seus ossos e músculos, e corrigiam em segundos qualquer lesão que o corredor pudesse sofrer.

É claro que, embora se tratasse de equipamentos de ponta, eram apetrechos que mal ou bem qualquer corredor de elite possuía. A grande novidade estava no tênis. O cabedal foi impresso diretamente sobre os pés do atleta, por uma impressora 3D, tão fino que chegava a ser translúcido. Como tinha o formato dos pés, não carecia de cadarços. O solado, com seus 15 mm de drop, levava em seu interior as já famosas pastilhas anti-gravitacionais, não apenas uma, mas quatro, o que dispensava por completo a necessidade das dez placas de carbono do modelo anterior.

Com as quatro pastilhas conseguia-se eliminar totalmente o impacto da corrida, porque o tênis não chegava a tocar o chão; a pisada e o impulso aconteciam em pleno ar, a inversão da força gravitacional causada pelas pastilhas permitia uma amplitude de passada de quase 3 m e uma cadência de 250 passos por minuto. Tudo isto para que o campeão escolhido sustentasse o pace de 2:07 (min/km) ao longo dos 42.195 metros.

Ao chegar o tão esperado dia, entretanto, um fenômeno inusitado aconteceu: após a largada, o atleta correu tão rápido, mas tão rápido, que viajou no tempo e foi parar na maratona dos Jogos Olímpicos de 1960, em Roma, mais ou menos ali pelo km 25, quando o etíope Abebe Bikila e o marroquino Rhadi Abdesselam (FOTO) se destacavam do grupo, liderando a prova.

Assim que nosso queniano do futuro surgiu, o chip-GPS parou de funcionar, já que nos anos 60 os satélites que o controlam sequer haviam sido lançados ainda. Os nano-robôs, fora do alcance de seus computadores, interromperam suas atividades. As pastilhas anti-gravitacionais também pifaram e imediatamente o queniano tocou o chão, porventura pela primeira vez em uma corrida. Somente a aerodinâmica da roupa teria alguma serventia contra a resistência do ar, mas o atleta, acostumado a correr em condições climáticas perfeitas, viu-se paralisado por uma brisa. E, naturalmente, foi ultrapassado, sem entender como aquilo era possível, já que era o mais rápido do mundo.

Talvez os espectadores da época estranhassem aquele homem com roupas e acessórios esquisitos, se tivessem prestado atenção nele. Mas como? Os olhares de todos estavam adiante. Alguns quilômetros à frente, Abebe Bikila vencia a prova, estabelecendo um novo recorde mundial na maratona: 2:15:16. E tudo isso com pés descalços, um feito que jamais se repetiria. Já o nosso queniano futurista, confuso, perguntava-se quem patrocinava Bikila, quem eram seus engenheiros, que tecnologia usara em seus membros. “Seria um ciborgue?”, pensava, enquanto deixava o evento… caminhando.

Texto de THIAGO GONÇALVES, de 34 anos, carioca, ciclista e agora também maratonista; ele é formado em Letras e tem uma empresa de entregas por bicicleta no Rio de Janeiro. Esta é sua primeira crônica no site da CR, à espera dos comentários dos leitores.

gozthiago@gmail.com

@virgo.runner

 

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6 Comments on “PARA REFLETIR ENQUANTO SE CORRE

  1. excelente texto. quando a tecnologia se torna a protagonista do evento, o esporte fica em segundo plano.

  2. Adorei o texto, me prendeu bem! É algo mesmo a se pensar: valorizar o corpo humano cheio de potências e limitações!

  3. MUITO BOM, ADOREI

  4. Imaginei as cenas vindo como um clipe em traços de anime/animatrix. Mt bom.

  5. Que viagem! Da pra correr uma maratona pensando nisso tudo!

  6. Excelente texto, parabéns!

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