Releitura Redação 8 de outubro de 2018 (0) (201)

Os bastidores da vitória de Marilson em Nova York – dez/2006

Marcio Carrilho – dezembro 2006

A grande notícia todos os corredores brasileiros já sabem: Marilson Gomes dos Santos venceu a Maratona de Nova York, dia 5 de novembro, a primeira de um atleta sul-americano na mais famosa prova do mundo.

Quem corre (maratona ou não) sabe que ao contrário de boa parte dos outros esportes, em corrida não existe a possibilidade de azarão. Ou seja, é impossível alguém vencer uma prova importante, contando com a sorte; os resultados são decorrentes basicamente apenas de uma coisa: treino, muito treino, por muitos anos.

E a vitória de Marilson em Nova York não fugiu a essa regra. Nosso fundista de marcas mais expressivas nos últimos anos (junto com Vanderlei Cordeiro de Lima) teve um 2006 muito especial. Vindo do bicampeonato na Corrida de São Silvestre, Marilson no primeiro semestre pouco apareceu, em função de problemas familiares, mas em junho batia o recorde brasileiro dos 10.000 m (27:48.49) e logo depois o dos 5.000 m (13:19.64).

Aliado a um treinamento cientificamente planejado por seu técnico de muitos anos, Adauto Domingues, Marilson recorreu também a um detalhe importante para vencer em Nova York: a tática previamente acertada com Adauto. Por não ter uma chegada rápida, o atleta iria procurar escapar do pelotão lá pelo km 35, 36; mas acabou saindo antes (km 30), apenas para testar os concorrentes, que não acreditaram na fuga, se acomodaram e o resultado é o que se sabe: uma vitória categórica em 2:09:58.

Tudo começou em Ceilândia

Marilson, hoje com 29 anos, é um corredor que foge ao padrão dos atletas de elite que vemos por nossas provas de rua e maratonas. Desde sempre ele teve um pé nas pistas e outro nas ruas, ou quase isso, conforme nos contou em entrevista publicada em fevereiro de 2004, edição que trazia sua primeira vitória na Corrida de São Silvestre (2003), depois de chegar em 4º em 1999 e 2001 e 2º em 2002.

Na ocasião Marilson comentou que morava em Ceilândia e via seu irmão e um primo treinarem e competirem em provas de rua. Um dia, pediu para acompanhá-los no treino e eles ironizaram, dizendo que ficaria pelo caminho chorando (tinha então uns 10 anos). Ele acabou chegando na frente deles, e o técnico Albenes de Souza viu a cena, convidando-o imediatamente a passar a treinar com ele.

Rapidamente Marilson evoluiu, sendo que uma vez chegou a fazer um 10 mil em pista em 39 minutos, com 11 anos, conforme comentou Adauto, na entrevista que concedeu à CR, na sede da revista, enquanto assistia ao vídeo da prova americana.

O atleta então seguiu para São Caetano, para treinar no Sesi, onde passou a treinar exclusivamente para provas de pista (800, 1.500 e 3.000 m), na categoria Menores. As corridas de rua, que fazia em Brasília e região, foram deixadas para trás, e só ao passar para Juvenil, quando então corria 5.000 e 10.000 m, ele voltou a disputar algumas poucas provas por ano, apenas como complemento ao seu foco principal: a pista de atletismo.

Mas apesar desse enfoque, o trabalho nas pistas acabava dando resultados nas ruas e já em 1998 ele tem sua primeira grande vitória, na Corrida dos Carteiros em Brasília, superando os principais nomes daquela época. A partir desse ponto, o atleta e seu técnico mantiveram uma rotina de priorizar os eventos de pista, com inúmeras vitórias e recordes, ingressando apenas esporadicamente nas corridas, geralmente para chegar em primeiro lugar.

Na primeira maratona, em Paris, frustração

Assim foi por vários anos, até que em 2003 Marilson e Adauto estabeleceram que a grande meta para o ano seguinte seria correr a maratona nas Olimpíadas de Atenas, uma vez que nas provas de pista (5 e 10 mil) suas chances eram nulas, dado o exército africano que domina as duas competições (entre outras).

Então, eles trabalharam para Paris, onde Marilson iria buscar o índice A (abaixo de 2h15) para ser convocado para os Jogos Olímpicos, marca absolutamente viável para ele, mesmo estreando na distância, conforme nos relatou Adauto, dando mais detalhes do que aconteceu lá. Marilson corria muito bem, exatamente como previsto, sendo o único não africano no pelotão dianteiro, na altura do km 38, quando passou a sofrer as conseqüências de não ter conseguido pegar ou achar suas garrafinhas dispostas no percurso, com isotônico e carboidrato, nas mesas preparadas especialmente para a elite.

Adauto lembra que Marilson depois comentou que sua grande preocupação era não ser deixado para trás pelo pelotão e dessa forma preferiu não correr o risco de se atrapalhar na hora de pegar as garrafinhas (de plástico) e se abasteceu exclusivamente com água. O resultado foi que zerou seu estoque de energia e o ritmo despencou, fazendo os últimos 2 km em 8:50, quando vinha correndo a 3:03/3:04/km.

De qualquer forma, completou em 2:12:22, conseguindo a terceira vaga para Atenas (as outras eram de Vanderlei Cordeiro – 2:09:39 em Hamburgo 2004 e de André Ramos – 2:09:58 em Berlim 2003), mas seu sonho de ir para a primeira Olimpíada durou muito pouco. No mesmo dia 4 de abril, Rômulo Wagner fechava na Maratona de Roterdã em 2:11:28 e assim completava a equipe brasileira.

A frustração foi grande, recorda Adauto, e Marilson acabou “dando o troco” em Chicago no mesmo ano, ao terminar na 6ª posição com o excelente tempo de 2:08:48, o melhor do ano e o 4º melhor resultado brasileiro na distância. Mas tudo isso, após o sensacional desfecho da maratona olímpica em Atenas, em que Vanderlei Cordeiro foi a grande estrela.

Em 2005, abandono e 10º no Mundial

Após Chicago, Marilson já podia se considerar pertencente à elite mundial de maratonistas e assim o “mercado” de maratonas passou a tratá-lo. Desde Paris Marilson tinha todas as despesas de viagem pagas (também para seu técnico), além de cachê de participação, acertado por seu agente Felipe Posso. Em Chicago eles já foram com valores um pouco mais altos e o mesmo aconteceu quando o atleta foi convidado a correr a Maratona de Lake Biwa, no Japão, em março 2005, junto com Vanderlei Cordeiro.

Os dois foram para Otsu em busca de marcas (além da premiação oferecida pela prova), mas ambos acabaram passando mal no percurso e abandonaram, sem nenhuma razão específica para o problema dos dois. De qualquer forma, já estavam classificados para o Mundial de Atletismo de Helsinque, na Finlândia, onde Marilson conseguiu um excelente 10º lugar (Vanderlei parou), confirmando seu novo status de maratonista de primeira linha.

 

Antes de Nova York, dois recordes

A participação nas quatro maratonas já dava a Marilson a bagagem necessária para encarar qualquer uma das grandes provas pelo mundo e assim foi a definição por Nova York, sempre com a intermediação de Felipe Posso, igualmente agente de outros brasileiros.

Antes porém, Posso, a pedido do treinador, acertou a participação de Marilson em meetings no exterior, em busca de grandes marcas nos 5 e 10 mil. O atleta venceu, dia 5 de junho, em Neerpelt, Bélgica, os 10 mil, estabelecendo o novo recorde brasileiro: 27:48.49. Superava, assim, a marca que já durava 10 anos, de Ronaldo da Costa (28:07.73).  Três dias depois, Marilson foi 3º nos 5.000 de Kassel, Alemanha, com 13:19.43, derrubando dois recordes: o brasileiro (de Adalberto Garcia – 13:28.99 em St. Denis, França – 1996) e o sul-americano (13:19.64, que pertencia ao argentino Antonio Sillio, desde 1991, em Roma).

Os dois recordes foram fundamentais para Marilson, que mora em Santo André, iniciar sua preparação para Nova York, em alto astral, após um primeiro semestre com problemas na família (doença de um irmão e uma cirurgia inesperada da mulher, a também atleta Juliana Azevedo, igualmente treinada por Adauto).

12 treinos por semana

Acertado o convite para correr a NYCM, treinador e atleta montaram seu quartel general em Campos do Jordão, lá permanecendo em setembro e outubro. O técnico explica que a opção por Campos tem pouco a ver com a altitude e mais pelo clima agradável, facilidade de locais para treinar, apesar de para os treinos de velocidade, descerem a serra para Taubaté, pela melhor pista dessa cidade e porque os trabalhos de qualidade não rendem bem em áreas mais altas.

Aliás, lembra Adauto, inicialmente se pensava em fazer essa preparação especial para Nova York na altitude da cidade colombiana de Paipa (onde Vanderlei e outros brasileiros costumam treinar), mas uma dor no pé causou preocupação e optaram então por ficar no Brasil, onde conseguiriam um eventual tratamento com mais facilidade.

Segundo Adauto, Marilson mesmo tendo um biótipo de maratonista, com grande capacidade aeróbica, apresenta uma certa deficiência no quesito força, fundamental para a quebra de ritmo em uma maratona, através de fugas, e naturalmente para enfrentar as eventuais subidas. Assim, Campos do Jordão, com suas muitas ladeiras, oferecia um bom ambiente para esse trabalho.

A quilometragem chegou a 205/210 no auge dos treinos, na antepenúltima semana antes da prova, compreendendo sempre 12 sessões semanais. Essa quilometragem não é muito diferente da que Marilson está acostumado a fazer, quando não está treinando para uma maratona, já que costuma ficar entre 160 e 170 km semanais. Mas em função de sua maior bagagem, o treino específico (polimento final) para NY foi até que rápido (2 meses), comenta Adauto, lembrando dos quase 6 meses para Paris e dos 3 para Chicago.

A estratégia: fugir bem antes da chegada

Na entrevista que concedeu à CR, acompanhando o desenrolar da prova, Adauto afirmou que a saída de Marilson no km 30 estava absolutamente planejada, apenas prevista para um pouco mais à frente. “Marilson não tem uma boa chegada e isso é uma característica que apesar de todos esses anos de treinamento não conseguimos melhorar grande coisa. Dessa forma, ele foi aprendendo a variar o ritmo durante o percurso e desfazendo grandes grupos, pois nem todos os atletas têm essa capacidade e acabam ficando. Para ter certeza da vitória, Marilson tem que chegar sozinho e foi isso que ele fez muito bem em Nova York”.

No caso específico dessa maratona, o treinador diz que os possíveis adversários diretos foram avaliados e vários apresentam chegadas fortes, como Paul Tergat, o italiano Stefano Baldini e o sul-africano Hendrick Ramaala, daí que essa preocupação em procurar fugir era fundamental. Para quem não se lembra, Tergat e Ramaala fizeram uma chegada sensacional em Nova York 2005, com vitória do queniano por menos de 1 segundo, enquanto Baldini foi o vitorioso em Atenas, forçando o ritmo no final e superando Vanderlei.

Com base nas conversas que teve com seu atleta, a saída antes do previsto aconteceu por acaso, afirma Adauto. A prova vinha em ritmo abaixo do esperado e Marilson decidiu dar uma arrancada, numa leve subida, apenas para desmanchar o pelotão (9 corredores) e sentir como os adversários responderiam. Acreditava que sua fuga seria neutralizada, mas tal não aconteceu, porque o grupo se acomodou, talvez por não acreditar que aquela saída era para valer, ou talvez porque Tergat não tomou a iniciativa, na opinião de Adauto.

Aí, ele continuou sozinho e foi se afastando, praticamente mantendo o ritmo de sua saída, na casa de pouco mais de 3 minutos / km, chegando a abrir 38 segundos entre o km 35 e o 36. Depois administrou a diferença, que foi caindo, pelo aumento de ritmo de Tergat e Kiogora, que foram em busca de Marilson, mas já era tarde. A primeira vitória de um sul-americano em Nova York vai ficar com certeza para a história.

Daqui para frente, vai ser diferente

Marilson e Adauto têm consciência de que nas próximas maratonas a tática usada em Nova York poderá não ter grandes chances de sucesso, mas por outro lado é possível evoluir para correr cada vez mais rápido, acreditando o técnico que seu atleta tem potencial para fechar os 42,2 km na casa de 2h06.

Em 2007 ainda não está definido se Marilson correrá Boston ou Londres, em abril. Tudo irá depender dos prêmios e cachês em jogo, agora em outro patamar, com certeza. Depois, as atenções do atleta e treinador se concentram em uma boa preparação o Pan-Americano do Rio, onde Marilson deverá disputar os 5.000 e os 10.000 m, com grande chance de ouro nas duas competições. Na maratona o Brasil também deverá chegar ao ponto mais alto do pódio, com Vanderlei e/ou Frank Caldeira.

Passado o Pan, tudo girará em torno da grande meta de 2008: a maratona olímpica em Pequim. O treinador comenta que a escolha pela maratona tem bases bem sólidas e uma perspectiva de pódio bastante real. Nos 5 e 10 mil não há qualquer possibilidade de se enfrentar os rápidos africanos, na opinião de Adauto, enquanto na maratona a história mostra que a prova dificilmente é rápida (o recorde olímpico continua sendo do português Carlos Lopes – 2:09:21, em Los Angeles 1984).

Por último, Adauto Domingues faz questão de destacar que Marilson conseguiu construir uma carreira de sucesso porque desde que veio para SP tem recebido apoio financeiro para poder se dedicar exclusivamente aos treinos e ter uma vida digna. Marilson é patrocinado pela BM&F (Bolsa Mercantil e de Futuros), com apoio do Pão de Açúcar, Nike e Prefeitura de São Caetano. Recebe também uma bolsa auxílio da Caixa.

Os três mais importantes feitos de maratonistas brasileiros

O recorde mundial de Ronaldo da Costa em Berlim 1998 (2:06:05)

A medalha de bronze de Vanderlei Cordeiro de Lima na Olimpíada de Atenas 2004

A vitória de Marilson Gomes dos Santos em Nova York 2006, a primeira de um atleta sul-americano

2 únicos pódios até então

Até a vitória de Marilson, apenas duas vezes atletas brasileiros tinham conseguido subir ao pódio na Maratona de Nova York. A primeira em 1978, com Eleonora Mendonça, em 5º lugar (2:48:45), e depois em 1993, com Márcia Narloch, na 4ª posição, com o tempo de 2:32:23. Destaque ainda para Angélica de Almeida, que em 1983 conseguiu o recorde da prova por idade (18 anos), com a marca de 2:49:39.

As maratonas de Marilson

Paris 2004 – 6º – 2:12:22

Chicago 2004 – 6º – 2:08:48

Lake Biwa 2005 – abandonou

Mundial Hensinque 2005 – 10º – 2:13:40

Nova York 2006 – 1º – 2:09:58

O treinador Adauto

Bicampeão pan-americano dos 3.000 m com obstáculos (Indianápolis 1987 e Havana 1991), entre outros importantes títulos, Adauto Domingues treina aproximadamente 20 atletas de elite, entre eles Clodoaldo Gomes da Silva, melhor brasileiro na Volta da Pampulha e na São Silvestre de 2004. Ele também orienta um grupo expressivo de corredores amadores.

Importante vitórias de Marilson nas ruas

Bicampeão da Corrida de São Silvestre – 2005/2003

Tricampeão dos 10 Km Tribuna FM – Santos 2006/2005/2003

Bicampeão da Dez Milhas Garoto – Vila Velha 2006/2004

130 mil dólares

Pela vitória em Nova York, Marilson ganhou um prêmio de 130 mil dólares (279 mil reais), compartilhado também por seu agente e seu treinador. Valor significativo, porém mais importante foi a mudança para o patamar mais alto na “bolsa” de maratonistas da elite mundial, que deverá lhe garantir ganhos ainda mais expressivos, desde que se mantenha nesse nível.

Veja também

Leave a comment