Notícias admin 12 de outubro de 2014 (0) (117)

Os 7 pecados do corredor

Que atire o primeiro pacotinho de gel de carboidratos o corredor de rua que não tem pecados. Definidos pela Igreja Católica como atitudes humanas contrárias às leis divinas, os sete pecados capitais são quase tão antigos quanto o Cristianismo. Foram formalizados no século 6, quando o papa Gregório Magno, tomando por base as Epístolas de São Paulo, definiu aqueles que seriam conhecidos até hoje como os sete principais vícios de conduta – gula, luxúria, avareza, ira, soberba, preguiça e inveja -, lista que só se tornou "oficial" no século 13 com a publicação da Suma Teológica de São Tomás de Aquino. Do ponto de vista teológico, o pecado mais grave é a soberba. Qual seria, então, o pior deles no mundo das corridas?
O teólogo Tomás de Aquino explicou ao mundo o que os tais sete pecados têm que os outros não têm. Na CR, por coincidência ou capricho do destino, o xará do santo, o editor Tomaz Lourenço, foi quem burilou a ideia de traçar um paralelo bem-humorado e cheio de histórias entre os 7 pecados capitais que todos conhecem com os cometidos pelos corredores. "O ódio espuma. A preguiça se derrama. A gula engorda. A avareza acumula. A luxúria se oferece. O orgulho brilha. Só a inveja se esconde." O trecho citado é do livro Mal secreto, do escritor e jornalista Zuenir Ventura, que integra a coleção "Plenos Pecados" (Ed. Objetiva), e resume bem a experiência de buscar relatos: a inveja é inconfessável.
Como lidar com esse pecado traiçoeiro do qual poucos pecadores se libertam – especialmente num meio onde quem não compete com o outro, compete consigo mesmo? Cada um que descubra seu método, como fez o corredor Fernando de Oliveira Souto.

1 – INVEJA
Como acontece com muitos praticantes, Fernando Souto, de Petrópolis, começou a caminhar para perder peso, tomou gosto e já corre há oito anos. Lembra que no início ninguém acreditava que ele fosse capaz de se manter no esporte. Sabe como é, gordinhos são pecadores que atraem pecados: gulosos e preguiçosos, costumam ser bem invejados quando alcançam seus objetivos. "Minha primeira corrida oficial foi no Aterro do Flamengo, no Rio. Desceu uma caravana de parentes e amigos incrédulos para acompanhar a façanha. Diziam que era incentivo, mas eu sei que eles queriam mesmo é ver para crer", ri o hoje meio-maratonista.
Depois de várias provas de 5 km, muitos quilos deixados pelo caminho, Fernando decidiu dobrar o percurso. Quando os 10 km ficaram fáceis, apostou em uma prova de 10 milhas e, no mesmo ano, completou sua primeira São Silvestre. O sonho, no entanto, era cruzar a linha dos 21 km. O ex-gordinho tinha plena consciência de que para isso deveria ter ainda mais disciplina e organização do tempo para dividir-se entre trabalho, treinos e família. No primeiro ano, não deu.
"O esforço foi tanto que tive uma fratura por estresse a menos de um mês da Meia Internacional do Rio. Os 21 km tinham subido no telhado. Tratei, me recuperei e voltei a treinar com foco para a primeira Golden 4 Asics, mas aí foi o joelho que estourou. Não tive dúvidas, arrumei um amuleto contra mau olhado", disse o corredor que só sai de casa para treinos e provas com seu objeto da sorte, presenteado pela mãe: um pingente feito de sal grosso e pedacinhos de dente de alho. Deu certo, e a meia desencantou no ano passado.
Quem não imagina que precisasse de um amuleto desses é um corredor de certa assessoria esportiva do Rio de Janeiro. História contada no estilo "pode acontecer com qualquer um que corra rápido demais para o gosto de seus companheiros de equipe". O caso foi colhido junto a um treinador que pediu para não identificar nem ser identificado. Afinal, o pecado da inveja, repetimos, é inconfessável.
Assim como Fernando, nosso corredor não identificado tinha um sonho: completar uma maratona. Mas, por ser veloz, essa meta vinha acompanhada de dados numéricos, um tempo que os outros corredores "normais" não acreditavam ser concretizado. O treinador conta que o tal objetivo acabou criando um enorme mal-estar no grupo. "Percebia que, a cada fim de treino, formavam-se rodinhas de conversa, o que antes não havia. Passado um tempo, aquilo saiu do controle e ficou quase que todos contra um." Uma situação facilmente explicável sob a luz da psicanálise: a inveja é gerada por um mecanismo de comparação.
Tentando contornar aquele absurdo, o tal corredor começou a receber instruções para treinos separados do grupo. "Era minha responsabilidade proteger o lado psicológico do meu atleta, que tinha plena capacidade de atingir a meta estabelecida, bem abaixo daquela almejada pelos outros corredores. O que não dava era para controlar um grupo de 15, 20 pessoas", disse o treinador sobre o episódio. A estratégia deu certo e, dos treinos secretos, o corredor terminou seus 42 km estabelecendo um novo recorde pessoal e da assessoria para a distância.
"Continuamos amigos, mas hoje ele é assessorado por outro grupo, que trabalha com corredores tão velozes e dedicados ao esporte quanto ele. Fico satisfeito de acompanhar sua evolução e, de vez em quando, poder contribuir com uma dica ou outra, agora sem aquele fantasma da inveja rondando." Pé de pato, mangalô, três vezes.

2 – GULA
Naquelas rodinhas de corredores após uma prova ou treino, é comum o assunto ser os tempos alcançados ou a alimentação. Seja uma nova receita low-carb, aquele livro que ensina a banir o trigo do cardápio ou outra dieta-filosofia-de-vida que vai ajudar a aumentar a performance, invariavelmente, a conversa gira em torno da comida. Porque por trás do discurso de estilo de vida saudável do desportista, muitos admitem que correm mesmo é para poder comer. O geólogo Anderson Cerceau confessa que "paga" as calorias extras da irresistível dupla da feira livre – pastel com caldo de cana – com uma "corridinha" de 20 km.
"As pessoas que me conhecem sabem que sou muito disciplinado. Mas o pecado da gula está constantemente me assombrando. Para compensar, volto correndo do trabalho, em Ipanema, para casa, na Barra", disse o ultramaratonista, que gosta de cozinhar nos fins de semana e não se furta, depois dos longões, de saborear pratos dominicais caprichados, como leitão à pururuca, feijoada ou churrasco.
Para fugir desse tipo de tentação em casa, Fabio Namiuti adotou um método simples e eficaz: se ele não pode comer, não entra na sua despensa. Autor do livro Melhor que o caminho é o caminhar, no qual conta como deixou o tabagismo, o sedentarismo e mais de 30 kg para trás, o atual maratonista segue numa luta eterna contra a balança.
"Não sou canela seca. Sou portador, não oficialmente diagnosticado, de transtorno de compulsão alimentar. Faço a dieta da sopa: deu sopa, eu tô comendo. E o tal do carboloading, hein? Às vésperas de uma prova, principalmente as mais longas, tem corredor que pensa que pode tudo. Rodízio de pizza na noite de sábado, para quem vai encarar 42.195 metros na manhã de domingo, é o mais capital dos pecados. É pedir para fazer pit stop forçado no meio da maratona."
Mais ou menos o que aconteceu com o maratonista e estudante de Educação Física Eduardo Barbosa. Apesar de ter noções de nutrição esportiva por causa da faculdade e do tempo de prática do esporte, Eduardo disse que precisa fazer um esforço para controlar a alimentação. Mas a coisa complica quando a prova é longe e significa viagem com a família, hotel e todas as delícias e mordomias dessas ocasiões. A "dieta do corredor" seguida por Eduardo foi por água abaixo na última edição da Volta à Ilha, em Florianópolis.
Como treinador da 4any1, em São Paulo, Eduardo recomenda que no café da manhã pré-prova seja evitado o consumo de laticínios e alimentos de digestão rápida que possam incomodar o organismo na hora da corrida. Mesmo assim, no ano passado se empolgou com a grande variedade de alimentos no café da manhã no hotel, e mandou para dentro iogurte, leite, pudim e tudo mais posto à mesa, sem o tempo devido para digestão.
"Ainda na largada, sozinho, de madrugada, senti o famoso piriri chegando. Só tive uma alternativa no meu primeiro trecho: bati meu recorde mundial nos 7 km correndo o risco de vazar o nitrocombustível que perigava escapar a qualquer momento. Fui o terceiro lugar no trecho, direto para o pódio/trono do banheiro químico", diverte-se Eduardo.

3 – PREGUIÇA
A dopamina é um neurotransmissor liberado pelo cérebro que tem diversas funções no organismo, entre elas a de regular humor, sono e comportamento. Seu excesso desencadeia euforia e motivação – níveis que podem ser aumentados após o exercício vigoroso. Mas neurocientistas da Universidade Vanderbilt, no Tennessee (EUA), descobriram que o cérebro de pessoas desmotivadas também pode ter grandes quantidades desse neurotransmissor – só que no lugar "errado".
Talvez por isso treinar seja tão difícil para pessoas consideradas preguiçosas. Funciona assim com o jornalista Rafael Massadar: "Treino três dias por semana na aula de running de uma academia que fica a poucos metros do meu trabalho. Escolhi o local para não ter desculpas e fugir da preparação. No dia das corridas, demoro para entrar no ritmo porque são de manhã, em horários em que ainda não estou efetivamente acordado. Músicas agitadas no mp4 são o que me ajudam; se não fosse o ritmo acelerado delas, dificilmente conseguiria melhorar meus tempos."
Mas preguiçosos também podem ser aquelas pessoas que procuram a forma mais rápida de realizar suas tarefas. Não é o caso, talvez, de Márcio D´Ávila. Morador de Porto Alegre, Márcio começou a correr incentivado pela esposa corredora, mas vivia reclamando dos treinos, feitos sob orientação da Pulsação Assessoria Esportiva. Em poucas semanas recebeu sua primeira planilha, que tinha, junto com o treino do dia, a sigla "ABD".
"Ele não entendeu que eram abdominais, achou que fosse ‘Andar Bem Devagar'. Mas nem faz sentido, porque já tinha ‘caminhada' na planilha. Durante muitos treinos, se caminhasse 10 metros a mais na pista pedia para deixar esses 10 metros de crédito para o próximo treino, porque tinha feito ‘a mais'", disse sua treinadora, Giovana Kaupe, que já conseguiu dar um jeito no aluno.

4 – LUXÚRIA
Quando sentimos prazer intenso em fazer algo, somos capazes de despender grandes esforços e custos. Assim, muitos corredores se veem alimentando o pecado da luxúria. É dessa forma que funciona para o ultra Anderson Cerceau (sim, ele mesmo, o nosso corredor guloso) e para a fisioterapeuta e maratonista Marina Marinho, para quem o ano de 2013 teve um sabor especial de vitórias.
Uma das idealizadoras do projeto "Corra por uma causa", que faz arrecadações para instituições e projetos sociais do Rio de Janeiro entre os adeptos da corrida de rua, Marina sofreu um revés no fim de 2012 e resolveu homenagear o pai, um de seus maiores incentivadores na prática do esporte. Nove meses depois do falecimento do senhor Alexandre, Marina, virava, de verdade, uma maratonista.
"Eu não pensava em fazer uma maratona tão cedo. Mas quando minhas amigas falaram que iriam correr, decidi ir também, porque lembrei que esse era o desejo dele", disse Marina que, de quebra, ainda fechou o ano com novos recordes pessoais nos 5 e nos 10 km. "Foi 23:12 nos 5 km e 46:46 nos 10 km. Foi como fechar o ano correndo nas nuvens! Voando!", comemorou.
Mas ao contrário de Marina, Anderson não participa de provas de rua onde existe maior competitividade. Optou por manter uma ou duas corridas oficiais por ano no seu calendário. Agora, se treinar para uma maratona demanda ocupar boa parte da vida com toda a preparação, imagine para uma ultra. Ou, ainda, para uma ultraexótica, como correr 100 km no Grand Canyon ou 225 km no deserto do Saara. A próxima parada de Anderson, a Tor des Geants, não é diferente.
A prova de percurso com 330 km e altitude de 2.400 m nos Alpes Italianos será realizada de 7 a 14 de setembro. Os investimentos para encarar esse tipo de aventura são elevadíssimos. "E tudo para passar uma semana inteira sem dormir, num calor e/ou frio extremos, sem tomar banho, passando fome e sofrendo igual cachorro vira-lata. Se isso não for paixão desenfreada, não sei o que mais seria", definiu o geólogo.

5 – AVAREZA
São muitos os corredores que estão migrando para eventos menores, realizados em cidades do interior para fugir de multidões e taxas altas de inscrição. Quem conhece Fábio Namiuti das redes sociais sabe que há tempos ele levantou uma bandeira contra os valores cobrados pelas organizadoras de corridas de rua. Na opinião dele, a corrida de rua cresceu tanto nos últimos anos que caiu de vez no gosto das classes mais abastadas, causando um ‘boom' nos preços das provas, com kits cada vez mais luxuosos e serviços nem sempre indispensáveis.
"Bom por um lado, ao trazer ao ‘consumidor' uma experiência supostamente condizente com o montante investido por ela, ruim por outro, ao majorar em efeito dominó os preços da concorrência, nem sempre acompanhado de melhoria na qualidade dos eventos", avaliou o corredor, que é também terminantemente contra a solução mais fácil, aquela mesmo, que estoura na panela.
A verdade é que preços com três dígitos, puxados pelas provas mais famosas do país, vêm se tornando cada vez mais corriqueiros. Mesmo nas cidades do interior, como São José dos Campos, onde Fábio mora, era baratinho correr até um dia desses, e não tem sido mais. O remédio contra essa implacável carestia? Os famosos treinões. "Tem corrida cara por aqui? Boicote nela! Se tiver outra alternativa mais economicamente palatável por perto, tô dentro. Se não, chamo os amigos e vou correr por aí, sem lenço, sem documento e sem medalha", disse o corredor.
O esquema é do tipo "faça você mesmo". O grupo marca as datas, bola percursos novos, muitas vezes em outras cidades e cada um leva sua hidratação e algo para um piquenique pós-treino. O primeiro domingo de março, mês fraco de corridas na região, teve um desses. Uma caravana de corredores calçou os tênis e subiu o Pico do Jaraguá, o ponto mais alto da cidade de São Paulo, a oeste da serra da Cantareira, um ganho de elevação de pelo menos 998 m para um percurso total de 9 km.
"E fazemos a festa, sem gastar praticamente nenhum tostão. Funciona que é uma beleza, todo mundo se diverte à beça e sai feliz da vida. Vantagens de ser corredor muquirana", diverte-se Namiuti.

6 – SOBERBA
Juliana Gomes escolheu a Maratona do Rio 2013 para sua estreia na nobre distância. Era janeiro quando, por conta dos seus últimos resultados nas últimas meias, acreditou que estava pronta para encarar os 42 km. A corredora ainda melhorou seu tempo nos 21 km em março, no período de treinamento para a prova-alvo, em julho, e a evolução, a cada prova-teste, carimbava aquela certeza do início do ano.
"Fiz a Corrida da Ponte, em maio, como quem corria 5 km, estava a todo vapor! Minha previsão para a maratona era de 4 horas e 15 minutos, possivelmente menos." Mas a apenas um mês da maratona, apareceu uma dor no tornozelo direito. Juliana foi ao ortopedista, foi medicada para tendinite e passou por sessões de fisioterapia. Mas a dor continuava lá, bastava correr. Resolveu cercar-se de cuidados e partiu para o tudo ou nada: correu a maratona.
"A cada quilômetro, via que o tempo previsto era possível. Eu só não contava com um problema no meio do caminho. No km 15, usei um gel com um sabor diferente e, três quilômetros depois, estava vomitando tudo. E assim foi até o final. Parei para vomitar por todo o percurso e minhas 4 horas e 15 minutos viraram 5 horas e 53 minutos", lamentou a maratonista.
A conta veio mais tarde, depois de dar as devidas explicações para seu treinador: Juliana descobriu que a dor no tornozelo que a perseguiu durante a fase final dos treinamentos não era tendinite, mas uma fratura por estresse. O "prêmio" foi ficar um mês e meio sem correr, remoendo a previsão de 4 horas e 15 minutos, que não foi alcançada daquela vez. Mas esse é outro pecado do corredor…

7 – IRA
A corrida "Rio lindo de correr", marcada para o dia 16 de fevereiro último, no Rio de Janeiro, foi uma prova de fogo para testar os limites dos inscritos em não cair em pecado. Mas nem os 15 anos de participação em eventos de rua salvaram a alma do corredor Nelson de Massena. A ira foi um sentimento inevitável, porque a corrida simplesmente não aconteceu.
"De início, não participaria dessa prova, pois não conhecia a organizadora e nunca tinha ouvido falar dela. Mas um vizinho perguntou se eu queria correr, junto com o grupo da academia dele, e voltei a me interessar, até mesmo para incentivá-lo nas corridas, como tenho feito, levando-o para os meus treinos", disse o corredor.
Massena só começou a suspeitar do engodo quando chegou ao Aterro do Flamengo, no dia do evento, para receber o kit – sem número de peito, composto apenas por uma camisa e uma medalha -, que seria entregue pelo responsável por efetuar as inscrições do grupo da academia. Quase não havia gente no local, como é de costume em dias de corrida. Mas o que definitivamente não era normal era o kit conter medalha e não trazer número de peito. Em pouco tempo, o tumulto estava formado.
Alguns corredores se reuniram e foram prestar queixa na 5ª Delegacia de Polícia, no Flamengo. "Não fui junto porque estava com amigos e familiares, e já bastava o constrangimento e a decepção que passamos ao chegar no local da eventual corrida e não ter nada", disse Massena, que, até o fechamento desta edição, ainda aguardava o retorno dos amigos corredores que deram parte para definir sua linha de ação. "Essa foi a que mais me irritou e me decepcionou, até mesmo porque eu incentivo outras pessoas a praticar o esporte."

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