Perfil admin 10 de outubro de 2012 (0) (132)

O xerife corredor

A testa franzida, os olhos azuis crispados por trás dos óculos de lentes grossas, um semblante sério de quem está acostumado a rir somente em momentos muito especiais. Mariano está concentrado. Trabalhando ou correndo, essa é a expressão do homem que leva suas duas maiores paixões muito a sério e, garante, não vive sem elas. Gaúcho, torcedor do Internacional, bebedor contumaz de chimarrão e louco por um churrasco, o secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, adotou o Rio de Janeiro quando veio para a cidade, em 2007, com a missão de ocupar a pasta, substituindo Luiz Fernando Corrêa, que acabara de se tornar secretário Nacional de Segurança Pública do governo Lula. O que pouca gente sabe é que o responsável pela implantação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro tem no currículo, além de tomadas de favelas, apreensões de armamentos e drogas, prisões de chefes do narcotráfico e quebra de grandes esquemas de corrupção, muitos, muitos quilômetros de corrida de rua.

"Acho que correr, para mim, teve um papel importante na vida. Faz bem para a minha cabeça. Gosto de chope, por exemplo, mas troco isso, certamente, por uma corrida. Bebo um chope depois (risos). O que eu quero dizer é que a corrida nunca me privou de nada. Muito pelo contrário, só agregou. Com a corrida você aprende a ser tolerante, aprende a negociar consigo mesmo; às vezes está cansado, a corrida te refaz. E isso o corredor traz para a vida nas situações mais críticas, quando você para e diz ‘não, peraí, Mariano, só mais um pouquinho', como se fosse numa corrida. E, na corrida, você perde sozinho, você ganha sozinho. As vitórias, só você sabe o valor."

Morador de Ipanema e casado com a educadora física Rita Paes há oito anos, Beltrame tem na esposa uma companheira de treinos e provas. Antes adepta do esporte coletivo, ele garante que a mulher se tornou uma apaixonada pela corrida graças à sua influência. Estiveram juntos nos principais momentos de sua vida nos últimos anos: o nascimento do filho Francisco, de 2 anos, e durante os 21 km da Maratona do Rio de Janeiro, em 2011, que o secretário completou a despeito de uma lesão na lombar. Outro ponto alto aconteceu em novembro de 2010, com a megaoperação para ocupar o Complexo do Alemão, da qual foi um dos principais articuladores. No trabalho, tem um cronograma a cumprir, até 2014: instalar um total de 40 UPPs no Rio. Até este ano foram 17. Na corrida, tem um sonho, o de correr 42.195 metros. Até agora, foram, oficialmente, 21.097 para a conta. Quem sabe em 2014, secretário?   

 

POR ACASO. José Mariano Beltrame começou a correr ainda na adolescência, em Santa Maria, "Coração do Rio Grande", cidade onde foi nascido e criado. A inspiração foi um tio, coronel reformado do Exército, hoje com 84 anos, que mora em Florianópolis e ainda corre. "Foi meu guru. Lembro que em alguns almoços de família o assunto acabava sendo o fato de ele correr, o que naquela época se considerava uma verdadeira maluquice, ainda mais com as temperaturas baixas do interior do Rio Grande. E ele corria muito. Me incentivou bastante, devo isso a ele", disse o secretário sobre o coronel Osny Jesus de Almeida, um dos criadores do Corpa (Clube dos Corredores de Porto Alegre), fundado em 1981 e que existe até hoje.

O secretário lembra que na pré-adolescência seu negócio era mesmo jogar pelada, mas nunca foi bom no futebol. Começou a correr pela influência do tio, mas meio que por acaso. Tinha acabado de perder muito peso, provavelmente pelas mudanças físicas proporcionadas pela puberdade, e o tio Osny sempre falava em corrida. Resolveu experimentar. Seu primeiro trajeto era bem no centro da cidade, na Av. Gaspar Martins, que tinha dois quilômetros, com inclinação. Começou a achar que aquilo fazia bem e quase sem perceber, as primeiras idas e voltas na avenida foram dando lugar a percursos maiores.

"Correr me dava tempo para pensar, resolver problemas e até achar problemas. Eu ia ali, voando naquela viagem mental, saía do asfalto, me embrenhava pelo meio do mato, pegava a estrada e voltava para a cidade. Inventei esse percurso, que dava pouco mais de 10 km, e fazia isso todos os dias, com chuva, frio ou sol. As pessoas me chamavam de maluco e eu não ligava, era bom para a minha cabeça", recorda o secretário, que chegou a fazer 80 km por semana. Tudo devidamente anotado – data, hora, percurso, quilometragem e até observações sobre disposição, clima e troca de tênis – em uma caderneta presenteada pelo tio e, segundo o secretário, guardada em algum lugar na casa que a família ainda mantém na cidade.

Naquela época ainda não existiam corridas de rua como hoje. Em Santa Maria não havia uma sequer. Além do tio Osny e de Mariano, tinha o Gilberto, conterrâneo um ou dois anos mais velho que o secretário, que corria muito – chegou a fazer pódio em uma São Silvestre, na época em que ainda era realizada à noite. E sim, claro, os militares. Santa Maria, além de ser considerada uma cidade universitária – foi lá, em 1960, que foi fundada a primeira universidade federal interiorizada do país, a UFSM -,  é um centro militar, com uma base aérea forte, inaugurada em 1971. Era comum ver grupos de militares correndo na rua daquele modo tradicional, em formação e cantando. Agora, o campus da universidade de Santa Maria tem uma rota só para corredores, dentro de um bosque de pinheiros. "É uma delícia, mas não peguei muito isso. Pelo contrário, cheguei a ser atropelado uma vez, lá, enquanto corria. Hoje eu volto aos lugares onde treinava e não dá mais para correr, tem um movimento intenso na avenida, que corta a cidade; uma parte do meu percurso virou um anel rodoviário."

 

PAIXÃO. A corrida de rua chegou a Santa Maria, efetivamente, com um circuitinho, na mesma época em que o Bradesco começou com o vôlei. Eram os anos 80. Conseguiam reunir 20 ou 30 pessoas nos eventos. "Fiz algumas provas no interior e em Porto Alegre, à medida que foram surgindo. Até que um belo dia criaram a Volta de Santa Maria, que acontece no aniversário da cidade, em maio. Eu me preparava especialmente para a prova, e foram alguns anos assim. Nessa época, saí um pouco da questão só terapêutica que a corrida sempre foi para mim, e comecei a fazer tiros, treinos longos, correr para diminuir tempo mesmo. Mas aquilo não era para mim", disse Beltrame, que chegou a correr pela universidade, onde cursou Direito. Mas os circuitos fechados em pista, com duas ou três voltas, não eram para ele – sua paixão já era a corrida de rua.

Depois da faculdade, com a batalha pela vaga em concursos públicos, chegou a perder um pouco da regularidade na corrida. Na sequência, veio o trabalho e, com ele, uma nova paixão, a investigação policial, que tomou boa parte do seu tempo. A corrida ficou relegada ao segundo plano. Mas nas missões da Polícia Federal, quase todas voltadas para o combate ao narcotráfico, volta e meia o delegado Mariano encontrava um tempinho para explorar uns bons quilômetros de chão de lugares como Mato Grosso, Recife, Roraima e até no Paraguai. Quando chegou ao Rio de Janeiro, há pouco mais de sete anos, com a missão de enfrentar, como nenhum outro secretário de Segurança tinha feito até então, a criminalidade carioca, teve uma grata surpresa.

"Aqui no Rio, tive uma sensação muito bacana. Minha primeira corrida na cidade foi em um desses circuitos grandes, que reúnem milhares de pessoas num domingo de manhã no Aterro, um monte de gente correndo sem preocupação nenhuma, sem competição, com carrinho de bebê, param, tiram foto. Nunca tive espírito competitivo para correr. Eu gosto de correr, é um negócio até meio espiritual. Corro quando dá, quanto tempo dá. Corria 70 km por semana quando era jovem. Tive que parar por causa de uma hérnia de disco lombar. Meu problema é nas vértebras L4 e L5. Mas eu consegui acomodar minha coluna, conversamos bastante, eu e ela (risos). Fiz a Meia-Maratona do Rio e, com alguns reflexos, terminamos a prova em paz, eu e minha coluna, em 2h14 e uns quebrados", lembra o secretário.

 

21 KM DE NOVO. Isso foi no ano passado. Correr, segundo o secretário, até que foi fácil. Complicado mesmo foi montar a logística para o período de treinamento. Beltrame tem um grupo de pelo menos nove seguranças que o acompanham em lugares públicos, até nas horas de folga e de lazer. Não teve outro jeito. Botou o povo para correr. Era complicado, porque ninguém corria naquele volume, e, muito menos, daquele jeito. Dormindo tarde e acordando cedo, o secretário precisou improvisar para ganhar condicionamento novamente e conseguir completar os 21 km sem colocar em risco sua saúde. Por isso, era comum que se metesse nos tênis e calção por volta das dez da noite ou às seis da manhã no meio da semana, na Lagoa ou na orla, e, nos fins de semana, encarasse o sol do meio-dia, na areia, para uns 10 ou 12 km. Sempre acompanhado dos seguranças, que acabaram entrando em forma.

"Graças a Deus, esse povo começou a se viciar. Uns compraram bicicleta, outros iam de carro. Mas fiz muita gente entrar em forma. É uma vitória pessoal na Secretaria. Tem uns três que correm comigo. O colesterol deles está ótimo. Porque era assim, um começava a gritar ‘aiaiai, minha panturrilha'. Agora tem uns caras muito melhores do que eu, uns magrinhos que parecem umas lebres."

Por causa do problema na coluna, foi orientado a largar a corrida e trocar pelo spinning, a natação ou hidroginástica e musculação. Mas não consegue. Em maio, mesmo sem treinar direito, participou da terceira edição da corrida Desafio da Paz, no complexo de favelas do Alemão. Organizada pela ONG AfroReggae e pelo governo do Estado do Rio, a corrida teve 5 km. O trajeto incluiu a famosa trilha de terra batida pela qual os traficantes da Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, fugiram para o do Alemão ao serem perseguidos por forças de segurança que ocupariam os conjuntos de favelas, em novembro de 2010. Mariano completou a corrida em 38 minutos, dois a mais que na primeira edição da prova. Mesmo assim, reclama da falta que faz correr com frequência na Lagoa ou na orla carioca.

Com seis ou sete quilos acima do peso ideal e 55 anos, além de horários irregulares, o secretário se vê adiando cada vez mais dois grandes sonhos de corredor, que acalenta desde as primeiras passadas, lá no interior do Rio Grande: participar de uma São Silvestre e fazer uma maratona. Nunca conseguiu concretizar nenhum deles em função do trabalho, principalmente, e da família, que acabaria sendo muito sacrificada com os treinamentos duríssimos necessários para vencer os 42 km. Mariano acredita que tem lastro para correr uma maratona, mas o que falta é reforçar musculatura e ter tempo para cumprir os longões de 32, 35 km.

"Se eu tivesse botado mais objetivo nos treinamentos, lá atrás, hoje eu conseguiria resultados melhores, mas não teria sido tão prazeroso. Eu corria duas horas, diariamente. Tinha resistência mas não tinha força. No futebol com os amigos, saía um time entrava outro, eu ficava em campo; nessa época eu corria ao meio-dia, à noite jogava bola e no dia seguinte trabalhava normalmente. Hoje não dá mais. Correr uma São Silvestre é um sonho porque era um evento muito presente na minha juventude, ligar a TV no último dia do ano e assistir àqueles malucos rompendo o ano longe da família, correndo. Na maratona quero fazer pelo menos uma, de preferência a de Nova York."

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