Dar uma pausa nos treinos pode ser uma decisão consciente ou um simples reflexo dos compromissos de final do ano. Com a parada, o corpo parece se acostumar com a rotina sem treinos, e até o horário dedicado a eles acaba sendo tomado por outras atividades. Se por um lado alguns dias com os tênis pendurados são bem-vindos, até para recuperar a vontade de treinar e fazer força, por outro a parada pode trazer à tona uma série de problemas que estavam logo abaixo da superfície durante a fase de preparação, dificultando o retorno e por vezes atrapalhando o planejamento para as primeiras provas do ano.
Mesmo os modelos mais antigos de periodização preveem em alguma parte do ano um período "off-season", que permita ao organismo uma recuperação mais completa, com o tempo de treinos diminuído e voltado para outra atividade. O problema é que, no mundo ideal da periodização e do alto rendimento, este momento "sem treinos" é realmente dedicado a outros exercícios físicos (fortalecimento e natação, por exemplo), com ênfase no tratamento de possíveis desbalanços musculares e princípios de lesões.
No mundo real, o que frequentemente ocorre é o abandono absoluto do treinamento por algumas semanas. Não por acaso, a primeira tentativa de retorno pode vir junto com pequenas lesões ou desconfortos, que não estavam presentes na fase anterior. Para evitar este tipo de cenário, seria preciso, em primeiro lugar, tratar o período de férias como parte do treinamento, ao invés de uma interrupção, e, de qualquer forma, ter cuidado redobrado nas primeiras semanas de retorno.
CONDICIONAMENTO AERÓBICO. Quando se fala no espectro de algumas semanas, o condicionamento aeróbico sofre supreendentemente pouco. Em um primeiro momento, nos primeiros 15 dias, o condicionamento pode estar até melhor que ao fim dos treinos. Tudo irá depender da condição em que o corredor parou de treinar: demasiada sobrecarga ao final da preparação pode criar um efeito de "polimento" durante as férias.
Apesar de ser um resultado "bom", voltar da pausa em melhor condicionamento sugere um erro de treinamento, sendo um forte indicativo de que as cargas deveriam ser revistas para baixo. Em períodos mais longos, entre 3-6 semanas, o condicionamento irá cair na grande maioria dos casos, e entre 6-12 semanas esta declínio deve ser mais acentuado. Nesta faixa de tempo, as mudanças negativas se dão em variáveis como a atividade de enzimas ligadas ao metabolismo aeróbico e o volume do sangue do organismo.
Estes parâmetros respondem rapidamente a mudanças de carga, sendo "fáceis" de perder, mas também de recuperar. Em termos práticos, uma parada de 4-6 semanas pode diminuir a performance em cerca de 3-5%, ou até um pouco mais, enquanto 3-4 semanas de retreino são o bastante para reverter a maioria destas perdas.
FORÇA MUSCULAR. Já o ganho e a perda de força muscular é um assunto mais pesquisado na literatura, muito em função de estudos ligados ao retreinamento após imobilizações. Hoje, inclusive, existe o conceito de "memória muscular", que explica como um músculo retreinado ganha força muito mais rapidamente do que no primeiro período de condicionamento.
Acredita-se que o segredo esteja nos núcleos das células musculares: as fibras musculares são células multinucleadas (com vários núcleos), e o processo de treino e hipertrofia aumenta ainda mais a quantidade de núcleos. A interrupção dos treinos, no entanto, não faz com que estes se percam, mesmo ao longo de alguns anos. Isto quer dizer, felizmente, que ganhos de força perdidos com o destreinamento podem ser mais facilmente revertidos (veja o box para mais informações)
Independente da facilidade de retorno, porém, haverá uma perda de força muscular com a interrupção da preparação. Esta perda, apesar de talvez não significativa do ponto de vista de performance pura, ou capacidade de performance, pode ter um efeito mais drástico quando relacionada a alguma articulação ou movimento em particular para o qual o corredor esteja mais predisposto a ter uma lesão.
QUERER X PODER. Na corrida, o condicionamento cardiorrespiratório é o seu próprio limitante: se o corredor estiver um pouco menos condicionado, ele simplesmente será incapaz de correr em determinada velocidade ou de manter determinado ritmo por um período de tempo. Apesar de frustrante, em primeira instância não há riscos mais sérios para a saúde. O que existe é uma relação simples entre o tempo perdido e o necessário para retomar o condicionamento. Além disso, as sessões de treino normalmente envolvem em sua maioria corridas submáximas, então do ponto de vista metabólico, apesar de as sessões serem percebidas como um pouco mais difíceis, elas ainda serão possíveis de serem completadas.
Já para a força e resistência muscular, a situação complica um pouco, pois é mais fácil exagerar na carga sem perceber. Como a relação entre a velocidade de ganho, perda e retorno de ganhos das variáveis de condicionamento aeróbico e de força muscular é possivelmente desigual, o risco é que o condicionamento aeróbico esteja menos afetado do que a força muscular, resultando em uma carga desproporcional para a musculatura. Além disso, é natural que o corredor retorne aos treinos mais disposto do que estava ao final da temporada anterior, o que pode acentuar ainda mais a carga exagerada para a musculatura.
PERÍODO DE RECUPERAÇÃO
Quando se programa uma pausa nos treinos e um posterior retorno, é preciso levar em conta a duração e intensidade do retorno (três semanas com treinos de musculação são uma figura completamente diferente de seis semanas sem treino algum). Com base nesta relação, o próximo passo é analisar o calendário de provas. Um sistema conservador seria criar uma fase de 4-6 semanas para "recuperação", tanto de volume quanto de intensidade, para evitar problemas mais sérios.
Um corredor que faça 50 km semanais em 4 sessões, por exemplo, pode retomar com 30 km em 3 sessões semanais e ao longo de 1 mês ir aumentando gradualmente a carga (por exemplo 30-38-46-50 km semanais, voltando a quatro sessões na segunda semana e utilizando o espaço entre a 3a e 4a semana, com menor incremento de volume, para retomar a intensidade). E ainda incluindo séries nas mesmas velocidades trabalhadas anteriormente.
Este é apenas um exemplo, pois cada caso irá depender da duração da pausa (quanto mais longa, mais lento e mais de baixo terá início a recuperação) e do que foi efetivamente feito durante as férias (quanto mais ativas, menor a necessidade de precaução no retorno). O mais importante é entender que nessa fase de retorno a atenção aos desconfortos deve se redobrada e o condicionamento muscular pode ter prioridade frente aos treinos de corrida.
MEMÓRIA DOS MÚSCULOS
O avanço do entendimento sobre como funciona a memória muscular possui implicações importantes para o condicionamento e para a saúde. Como a facilidade para ganhos de força parece estar relacionada à quantidade de núcleos das células musculares, e como estes duram por até vários anos, pode-se logo perceber a importância de realizar o treinamento de força durante a juventude, quando o organismo está em sua fase ótima para ganhos de treino.
Acredita-se que o desenvolvimento correto da musculatura nesta fase pode ter implicações inclusive para a terceira idade, dada a possível facilidade de retreino. Além disso, surgem questões também relacionadas a punições por doping: a quantidade de núcleos e os ganhos de força com o uso de anabolizantes já foram comprovados. Se estes ganhos de núcleos estiverem relacionados a aumentos de força facilitados anos após o uso de substâncias ilícitas, isso confere uma vantagem ainda maior do que anteriormente imaginado para atletas que usem tais meios em sua juventude ou em períodos fora de temporada, quando estão fora do radar do sistema antidoping.