Na matéria desta seção no mês de março, falamos sobre como utilizar uma prova passada, para analisar nossos erros e acertos de planejamento e execução em termos de cargas de treino e de ritmo de corrida. Para completar o assunto, vamos agora discutir sobre as questões relacionadas à reposição de carboidratos e água durante a prova – e treino – a fim de melhorar a performance em provas de fundo.
Antes de iniciarmos a discussão propriamente dita sobre o que é ou não necessário durante uma corrida, seja ela treino ou competição, vamos abrir com um pensamento sobre os produtos que consumimos. A indústria de acessórios e suplementos para a corrida precisa que você consuma seus produtos, e por isso surgem os mais diversos equipamentos e novas fórmulas de produtos que prometem melhorar seu desempenho imediatamente. Digamos que tudo o que você precise para correr bem é um punhado de carboidratos a cada hora. Isto nivelaria todos aqueles que vendem os carboidratos num mesmo patamar, e a única diferença entre uma marca e outra seriam fatores como preço, gosto e disponibilidade. Isso não é bom o bastante. Hoje em dia se compra pela internet de qualquer lugar do mundo; corredores despejam fortunas em suplementos e equipamentos; e mesmo o gosto é secundário se a crença de que determinado produto funcione for maior. Uma das primeiras empresas a tentar competir com a Gatorade (a Powerwade, da Coca Cola) tentou utilizar-se do argumento de ter um gosto melhor (8% de carboidrato, contra 6% no Gatorade). A resposta do público não poderia ter sido pior. A nova bebida ganhou o status de ser para os "fracos", que não toleravam Gatorade. O livro que conta essa história é "First do Thirst", de Darren Rovell, sem tradução ainda para o português.
O fato é que cada produto busca ter uma vantagem a mais em relação aos seus concorrentes. Um tem mais sódio, outro acrescenta vitaminas, um diz ter aminoácidos de cadeias ramificadas, quem sabe um pouco de cafeína ou simplesmente uma mistura mais esperta de diferentes tipos de carboidratos. Pronto, o consumidor está perdido no meio de fotos de pessoas com jalecos brancos e tubos de ensaios nas mãos dizendo que um produto é superior a todos os demais existentes no mercado. O fato é que pouca ou quase nenhuma pesquisa realmente independente – ou seja, não financiada pela própria empresa que vende o produto – é feita no sentido de testar se estes efeitos atribuídos aos produtos são reais ou não. Como consumidores, os corredores devem estar atentos sobre de onde vem e quem paga pelas informações que temos sobre os suplementos que tomamos. A quantidade de produtos despejada no mercado é bem maior que a capacidade de pesquisadores de analisar sua real qualidade, e o tempo de criar uma propaganda ou um slogan é bem menor que o tempo que leva para uma equipe de pesquisadores testar se a tal afirmação faz algum sentido real ou não.
Mas as prateleiras continuam cheias, e você terá que fazer uma escolha, pois em alguns casos a necessidade de suplementos para melhorar o desempenho é indiscutível. Vamos a eles:
TREINO E COMPETIÇÃO: Esta é uma questão básica para o sucesso. A competição deve ser sempre uma repetição do treino, nunca uma aventura. Não existe pior hora para descobrir se determinada estratégia de prova vai funcionar ou não do que no meio dela. Independente de qual for a estratégia de alimentação e hidratação que você decida adotar para suas provas, é importante testá-la já nos treinos que mais se assemelham à competição (os longos no caso da maratona) para possibilitar ajustes dependendo de seus resultados.
PROVAS CURTAS: Para provas de até uma hora e meia de duração, mais ou menos, ingerir carboidratos, eletrólitos etc, exceto água, fará pouca ou nenhuma diferença tanto para a saúde quanto para a performance. Ir dormir bem hidratado, e ingerir um ou dois copos d'água antes da prova, tendo o cuidado de ir ao banheiro antes de largar, parecem dar conta do recado. Durante a prova, uns poucos goles nas estações de hidratação para refrescar a boca e a garganta também ajudam. Dias quentes e úmidos irão prejudicar sua performance, e nesse caso a única coisa a fazer é diminuir o ritmo; tomar baldes de água não serão a diferença.
PROVAS LONGAS: Para as provas de longa distância existem duas coisas que devem preocupar os corredores. Duas, leia bem: água e carboidratos. Estas duas podem ser razoavelmente diminuídas a uma, se o conselho de deixar a sede cuidar da hidratação for seguido. Por que os eletrólitos não entram na lista? Vamos aprofundar um pouco nesta questão:
Eletrólitos na corrida: Quando transpiramos, nosso corpo perde eletrólitos, principalmente sódio. Isto é amplamente divulgado, e baseado nisso se recomenda que as pessoas façam ingesta de sódio durante o exercício. A pergunta que esquecemos de fazer é quanto sódio se perde. A concentração de sódio é uma das variáveis mais bem controladas pelo organismo, e boa parte do funcionamento de nosso corpo depende desta concentração estar estável em aproximadamente 140 mEq/l. Durante o exercício, mesmo que consideremos que não exista nenhuma reabsorção do sódio perdido pelo suor (parece haver), raramente se perde mais que 60, no máximo 80 mEq/l de sódio por litro de suor, isso nas pessoas chamadas de "salty sweaters", ou seja, pessoas que perdem muito sódio pelo suor.
A grande questão vem agora: sempre perdemos mais água que eletrólitos, pois a concentração de eletrólitos é sempre menor no suor que no sangue. Com isso, nossas concentrações (concentrações, não estoques absolutos) na verdade aumentam, e não diminuem. Se você tiver um balde de água e sal e de alguma forma for tirando mais água do que sal, a água no balde ficará cada vez mais salgada. Claro que após o fim da prática, pela nossa alimentação normal, mais eletrólitos serão absorvidos para fazer frente à reidratação (encher o balde aos níveis originais). Bebidas acrescidas de sódio, durante a atividade, pouco podem fazer, porque a quantidade de sódio é muito pequena, na casa de 20 a 30 mEq/l. Pessoas que tomem vastas quantidades destas bebidas, muitas vezes excedendo a quantidade de líquidos perdida pelo suor na tentativa de repor as perdas eletrolíticas, ficam sob o risco de acabar diluindo sua concentração de sódio ao invés de corrigi-la, causando um quadro de hiponatremia.
Carboidratos: Nosso organismo está sempre queimando carboidratos. Existe uma frase na fisiologia do exercício que diz que a gordura queima numa chama de glicose, porque mesmo para produzir energia a partir de gorduras é necessária a utilização de carboidratos no processo. A partir daí já temos uma idéia do quanto é importante manter nosso estoque de carboidratos em níveis adequados, e como nossos estoques internos são limitados, a ingestão de carboidratos durante exercícios de longa duração é fundamental.
Nosso organismo armazena glicose em dois lugares: nos músculos, sob a forma de glicogênio, e no fígado. Enquanto a glicose dos músculos é utilizada por eles mesmos, a glicose do fígado vai sendo liberada no sangue e pode ser utilizada por órgãos como o cérebro. É reconhecido que o corpo humano é capaz de utilizar a glicose do sangue numa taxa de 30 a 60 gramas por hora. Com isso, os estoques do fígado se depletam após aproximadamente uma hora e meia de atividade, e nosso desempenho cai, numa tentativa de diminuir o gasto calórico do organismo e preservar a glicose que ainda resta.
O consumo de carboidratos, então, precisa acontecer numa taxa de 30 a 60 gramas por hora, e deve preferencialmente ser feito desde o início da prova, pois isso diminui a taxa com que os estoques internos são depletados, o que aparentemente tem uma relação com nossa percepção de fadiga. Existem diversas opções diferentes de carboidratos no mercado, e o corredor deve buscar aquele que se mostra mais prática e que lhe traz menos desconforto gástrico. Diversas pessoas sentem-se enjoadas ao consumir uma grande quantidade de géis, e nesse caso podem optar por consumir algo "salgado", como por exemplo batatas cozidas.
Água: O assunto já foi tema de diversas matérias na revista, e o conselho segue o mesmo. O corredor não deve se preocupar em repor todo o peso perdido durante a corrida, e guiar-se pela sede é tão ou mais eficaz quanto seguir qualquer guia fechado de hidratação. Os corredores devem estar atentos para o caso de fazer seu consumo de carboidratos exclusivamente por bebidas esportivas, pois muitas vezes isto irá acarretar num consumo exagerado de água em decorrência da baixa concentração de carboidratos nestas bebidas. O consumo de um ou dois copos de água pré prova segue como uma alternativa válida de hidratação.