20 de setembro de 2024

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Performance e Saúde admin 6 de dezembro de 2010 (1) (96)

O que andam descobrindo os cientistas do esporte

Em setembro tive a oportunidade de participar de um congresso em ciências do esporte, na cidade de Glasgow, Escócia. Realizado nos prédios da universidade local, construídos em 1451 – portanto 50 anos antes do "descobrimento" do Brasil – o congresso reuniu alguns dos maiores nomes em fisiologia do exercício na Europa. Foi bom perceber que diversos trabalhos eram relacionados a temas que abordamos recentemente aqui na CR, e pensando em trazer as últimas novidades para os leitores da revista, a matéria deste mês será um apanhado sobre o que apareceu de mais interessante no evento.

Em seus três dias de duração, o congresso teve como tema "desafiando os dogmas", e prezou por apresentar debates e discussões que fossem contra as correntes mais tradicionais em ciências do exercício. Não por acaso o professor Tim Noakes, autor de Lore of Running e diretor de Instituto de Esportes da África do Sul, na Cidade do Cabo, onde faço meu doutorado, esteve presente em dois debates.

Enquanto os participantes se perdiam por corredores e salas do "castelo", que dizem serviu de inspiração para o castelo da escola de Harry Potter (a autora dos livros foi aluna da universidade, e olhando para as torres dos prédios só falta alguém de capa passar voando numa vassoura), dentro das salas aconteciam debates e apresentações sobre os mais variados esportes, de rali ao golfe (ok, também fiquei na dúvida se rali realmente conta como esporte físico, mas aparentemente sim). Apesar das extravagâncias, boa parte dos trabalhos se focou em corredores e ciclistas, tradicionalmente as modalidades mais estudadas em laboratórios.

 

UMA PROVA COM 24 MIL CORREDORES! Antes de entrarmos nos resultados dos trabalhos, um pequeno parênteses, prezado corredor: nunca, mas nunca mesmo vá para algum lugar longe, onde você possivelmente nunca irá de novo, sem checar se haverá alguma prova interessante no local durante a sua estada. Cheguei em Glasgow num sábado à tarde, e ao acordar no domingo pela manhã, sai a caminhar pela cidade, mapa turístico num bolso e capa de chuva no outro.

Após umas três horas de caminhadas para lá e para cá, me deparo com alguns corredores com números de peito. Quanto mais eu me aproximava do centro da cidade, maior o número deles. Eis que naquele final de semana estava acontecendo a Great Scottish Run, um dos maiores eventos de corrida locais, com uma meia maratona, uma prova de 10 km e diversas fun runs. Este ano cerca de 24 mil pessoas participaram das diversas provas, em trajetos que passavam por diversos pontos turísticos da cidade. Mas chega de chorar sobre o leite derramado, apenas não esqueça, olhe o calendário de provas do seu destino de viagem!

Passada a decepção de perder a prova, e de volta ao congresso, que afinal de contas era o objetivo principal da viagem, vamos aos trabalhos que mais chamaram a atenção.

 

VO2 MAX: POUCO RELEVANTE. Os limites do consumo máximo de oxigênio foram o tema do debate de abertura do congresso, em homenagem à Andy McCarth, pesquisador de Glasgow que ano passado faleceu tragicamente ao ser atropelado enquanto pedalava na Cidade do Cabo, onde estava trabalhando em conjunto com nosso departamento. Três dos maiores nomes da área tentaram convencer uns aos outros sobre onde fica o elo mais fraco na corrente de transporte e utilização de oxigênio durante o exercício.

Foi interessante perceber que, dada a postura de um dos três professores de argumentar que o consumo máximo de oxigênio é um conceito sem grande relevância para a realidade atlética, dado que o teste acontece de forma que o corredor é incapaz de escolher sua própria velocidade, os outros professores não discordaram inteiramente, e no fim, concordando que o VO2max não é de grande relevância para a performance, apesar de que eles continuam na busca do fator limitante, digamos, por curiosidade científica.

Aliás, um dos trabalhos apresentados mais tarde no congresso utilizou justamente esta questão – capacidade de ajustar a própria velocidade – para aferir o quanto um teste incremental é realmente máximo. O desenho experimental do projeto foi relativamente simples, mas os resultados surpreendentes. Num dia os participantes realizaram um teste incremental "tradicional", a cada dois minutos a carga era aumentada por um valor pré determinado, e os participantes deveriam exercitar-se até o limite de sua capacidade, enquanto seu consumo de oxigênio era medido. Num segundo teste, os mesmos estágios de dois minutos eram utilizados, porém ao invés de se exercitarem em uma carga fixa, os corredores deveriam realizar cada estágio em uma sensação de esforço – controlada pela escala de Borg, que possui valores de 6 a 20 – diferente. O resultado final foi que quando se exercitando com liberdade de ritmo os participantes atingiram valores de consumo de oxigênio significativamente maiores do que durante o teste tradicional, sem necessariamente estarem pedalando em cargas mais altas.

Aplicando estes conceitos e achados para o universo do seu treinamento, voltamos a bater numa tecla já muito utilizada por aqui. As limitações de performance em corredores não são simplesmente ligadas a fatores fisiológicos, já que se fosse isso todos deveriam atingir seu VO2max em todos os testes, não importa como a carga é imposta. Além disso, mostra que testes incrementais de esteira ainda apresentam dificuldades de serem transportados com grande relevância para sua planilha de treino, trazendo muitas vezes informações difíceis de serem interpretadas com segurança. O resultado é que basear seu treino num único teste, como é comum especialmente para quem paga para fazer o teste, pode levar a erros de interpretação de resultados que poderiam ser evitados simplesmente não fazendo o teste.

SENSAÇÃO DE ESFORÇO. Aproveitando o gancho do trabalho anterior, a percepção de esforço foi talvez o assunto mais relevante do congresso, merecendo uma sessão exclusiva para trabalhos relacionados. Para quem está chegando agora, a sensação de esforço é medida através de escalas numéricas, sendo a mais conhecida a escala de Borg, que contém valores de 6 a 20, que na concepção da escala foram relacionados com valores de frequência cardíaca (por isso os números 6 a 20, uma vez que o número de batimentos cardíacos geralmente varia de 60 a 200 por minuto em humanos).

Os primeiros trabalhos envolvendo escalas de sensação de esforço tentaram relacioná-las a variáveis fisiológicas, como níveis sanguíneos de lactato, batimentos cardíacos, consumo de oxigênio etc. Os trabalhos atuais estão apresentando uma inversão de paradigma no melhor estilo "ovo e galinha". Os pesquisadores estão percebendo que não são os valores fisiológicos que geram sensações de esforço, e sim o contrário, pelo menos nas situações reais de exercício em que o participante pode escolher o ritmo (intensidade) para se exercitar.

Esta nova linha se baseia em diversas pesquisas em que  manipulando-se variáveis fisiológicas ou a condição física do participante não se conseguiu alterar a sensação de esforço, pois esta parece estar pré-determinada desde o começo do exercício e qualquer que seja a perturbação fisiológica criada o atleta irá ajustar seu ritmo (para mais ou para menos), a fim de manter sua sensação de esforço, aumentando progressivamente de forma linear para que ela seja máxima somente no final do exercício.

Pense numa prova de 10 km: você pode correr a prova inteira num mesmo ritmo, ou quase isso, porém no início da prova tudo parece tranqüilo – sensação de esforço baixa a moderada, digamos que (de 6 a 20) um 13 – e este valor vai crescendo à medida que a prova transcorre. A qualquer momento de sua corrida você é capaz de aumentar sua velocidade, porém fazê-lo durante a competição parece um esforço tremendo, e você quase automaticamente se sente inclinado a voltar ao ritmo anterior, pois seu corpo reconhece que aquele aumento de velocidade não é sustentável a longo prazo (até o final da prova), e que se continuar assim sua percepção de esforço será máxima antes do final. Como sua sensação de esforço aumenta, você reduz um pouco o ritmo para voltar a sensação de esforço que lhe permite chegar ao final da corrida. Com a experiência em realizar uma mesma tarefa, e aqui entra a importância da repetição de cargas, séries e provas, a pessoa torna-se mais consciente e confiante da forma como sua sensação de esforço pode aumentar ao longo do tempo, garantindo assim uma otimização da performance.

Outros trabalhos relacionados a sensação de esforço, e que sempre geram algum interesse são os que utilizam manipulação da nossa percepção, e não da nossa fisiologia. Por exemplo, um trabalho testou ciclistas pedalando 20 km numa mesma velocidade, enquanto assistiam em um telão um vídeo de uma prova de ciclismo em primeira pessoa. Numa das vezes o vídeo passava um pouco mais acelerado (2%), criando uma ilusão ótica de velocidade. Esta alteração na percepção resultou numa sensação de esforço mais alta nos participantes. Indo em sentido inverso, outra pesquisa mostrou que corredores reportaram sensações de esforço significativamente menores quando a pergunta era feita por "uma pesquisadora atraente" do que quando perguntados por um homem. Garotos são sempre garotos…

 

DESIDRATAÇÃO ATRAPALHA? O debate sobre hidratação era um dos mais aguardados no congresso, e talvez por isso foi uma das maiores decepções. Não pelo conteúdo ou calibre dos convidados, e sim pela falta de um "debate" propriamente dito. Num canto Ron Maughan, autor de um influente livro sobre dieta e hidratação para esportistas, no outro Tim Noakes, que há tempos bate de frente com a indústria de bebidas esportivas, para as quais Maughan freqüentemente trabalha. Cada um deveria defender uma posição sobre se desidratação prejudica a performance.

A ausência de um debate se deveu ao fato do responsável de acusar a desidratação como prejudicial ao atleta não tê-lo feito, talvez porque o corpo de evidência mostrando o contrário hoje já seja suficientemente grande para não passar mais despercebido. Ambos concordaram com a orientação, também já apresentada pela CR, de que a sede em si é suficiente para guiar o quanto alguém deve ingerir de líquidos durante o exercício. Não sendo necessário seguir regrinhas do tipo "beba um copo a cada 20 minutos".

Na linha de hidratação, destaque para um trabalho que mediu e mostrou que campeões de maratonas chegam a acabar suas provas com perdas de massa corporal na ordem de 4 a 12%, ingerindo somente cerca de 50-500 ml de líquidos durante a prova inteira. Estaria o recorde da maratona há apenas um copo d'água de distância?

O congresso ainda apresentou diversos outros trabalhos relacionados a temas que recentemente discutimos neste espaço da revista, como meias de compressão, dilatadores nasais, corrida descalça e outros. Muitos deles merecem menção, e iremos apresentá-los mês que vem!

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One Comment on “O que andam descobrindo os cientistas do esporte

  1. Corro e sempre busco saber as atualidades!!!

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