Márcio Dederich – espiritocorredor@terra.com.br – Julho 2009
É raro, mas às vezes ele ainda sai para correr sozinho de madrugada. E não apenas no verão, quando tem mais gente na rua e a luminosidade ambiente é relativamente maior, ficando um tanto mais fácil enxergar mais longe; ou tampouco só no inverno, quando o frio intenso da região onde mora dificulta os movimentos e as luzes amareladas dos postes se refletem na direção contrária, do chão para cima, lembrando de certa forma o piso das discotecas em que havia dançado na distante juventude. Talvez exatamente por isso preferisse o inverno.
Se não podia ou não queria dormir, vestia o uniforme de corrida, punha o agasalho laranja-berrante por cima, e saía para a estrada de terra. A lanterna ficava em casa. Nunca a trazia. Tinha uma razão para isso: o contraste que ela produzia quando acesa, o facho de luz branca cortando a noite, dividindo tudo entre o aqui e o ali, podia despertar nele o medo do escuro que tinha quando criança. Medo que embora já quase houvesse desaparecido, em certas ocasiões ainda o assaltava, deixando-o tão aterrorizado que nas suas piores fases carregava consigo, pendurado no pescoço, um apito.
Quando isso eventualmente acontecia, segurava o apito com a força dos desesperados. Não pelo cordão, mas sim pela minúscula base, procurando deixar exposta apenas a abertura por onde, em último caso e sob a forma de um silvo salvador, sairia seu grito de socorro. Mais que talismã, o pequeno instrumento de metal era seu salvo-conduto, sempre pronto para entrar em ação quando algum ser esverdeado e viscoso, repleto de braços e com um enorme olho no meio da testa, se atrevesse a surgir das sombras para lhe bloquear a passagem.
Hoje, sem apito nem lanterna e com o frio agudo lhe ardendo nas orelhas, desceu a colina e começou a correr em direção ao vale. Queria o breu como moldura, como algo no qual pudesse mergulhar, se misturar, se dissolver. Escuridão infiltrada nos olhos, queria que o corpo lhe saísse flanando, deixando de ser tão nítido, tão presente, tão importante como costumava parecer no dia-a-dia. Correndo noite adentro, por pouco que fosse, queria esgarçar a fronteira entre o corpo e o não-corpo e – quem sabe? – descobrir o frágil limite onde lhe começava um e terminava o outro.
É o que buscava nos momentos em que se sentia cansado de si mesmo. Cansado de ver o próprio rosto no espelho, dos sonhos que sonhava, das palavras que dizia, das juras que fazia. E se perguntava: será assim, dessa mesma forma, para todos aqueles que se sentem atraídos por correr madrugada adentro? Será assim para os que pensam com mais ambição, com vontade tão grande quando a dele? Será assim, inquieto e se coçando todo, com a noite avançada de inverno à disposição, que alguém mais buscava se reencontrar?
Sob o brilho da lua e a julgar pelo que experimentava agora, já bastante suado, talvez fosse exatamente essa a resposta. O fascínio por descobrir-se senhor absoluto de um espaço escuro e desértico… O prazer de se sentir invisível… O domínio da pressão silenciosa exercida pelas árvores, cada vez mais numerosas… Os pés fazendo luz a partir das pedras e raízes encontradas no sobe e desce do caminho… Os braços abertos feito asas de avião, inclinando-se ora para a direita ora para a esquerda como num balé infantil… O coração batendo firme, num compasso poderoso dentro da alma… o silêncio chacoalhando as idéias, revirando os pensamentos, atormentando o juízo…
É raro, mas ele ainda sai para correr sozinho de madrugada. Nessas ocasiões, procura juntar numa só pessoa aquele que tem sido com aquele que gostaria de passar a ser. Segundo afirma, o dia seguinte lhe é sempre mais leve.