Sem categoria admin 10 de novembro de 2014 (0) (89)

Nas ultras, lições para o dia a dia nos negócios

"Acabei de concluir o El Cruce de Los Andes e é inevitável refletir sobre o que vivi nos três dias. Cada uma das etapas é diferente das demais e nunca sabemos o que virá a seguir. Numa prova de 96 km, em que você convive com seu parceiro 24 h por dia, as coisas podem ficar bem difíceis. A lição principal é que o planejamento de uma prova como essa deve ter como objetivo a capacidade de adaptação e superação dos obstáculos. Como é uma competição em dupla, não importa que você esteja bem naquele momento; o que vale é que a dupla esteja funcionando. A transposição disso para o dia a dia de uma empresa é óbvio: a equipe vale mais que os indivíduos que a compõem. Não adianta você ter um profissional de grande destaque, se ele não pensa em como levar sua equipe toda para frente." O depoimento do cirurgião-dentista Roger Cardoso mostra como o esporte pode interferir no cotidiano de empresas e daqueles que as comandam.
Aos 42 anos, Roger é proprietário e diretor do Instituto Brasileiro de Implantodontia, no Rio, onde lida diariamente com dezenas de colaboradores. A história da aproximação do cirurgião-dentista com as corridas não difere muito da grande maioria. A intenção inicial, há 10 anos, era melhorar a qualidade de vida e perder peso. Mas de dois anos para cá as corridas de montanha passaram a ser o seu foco.
"Comecei a praticar esportes para melhorar a saúde física e mental. Passei pelo mountain bike, ciclismo de estrada e corrida no asfalto. Nos primeiros dois anos perdi 27 quilos. Fui evoluindo e naturalmente avancei para provas longas no asfalto. Há dois anos, amigos me apresentaram ao Cruce de Los Andes. Para mim, misturar as corridas de longa distância com a natureza foi como misturar gasolina e fogo. Passei a pensar apenas nisso e o foco ficou quase que exclusivamente voltado para o trail run", conta Roger, que concilia as grandes provas internacionais com viagens de férias, o que possibilita envolver a família.
Nem é preciso dizer que disciplina é algo imprescindível para quem pratica trail run, mesmo que nessas provas mais se caminhe do que se corra, em função da altimetria ou da dificuldade do terreno. De acordo com Roger, focar provas internacionais é a motivação para cumprir toda a planilha de treinos. E essa disciplina de treinos acaba se refletindo no seu dia a dia profissional.
"Do ponto de vista físico, me transformei de um gordinho hipertenso de 32 anos em um cara de 42 anos com disposição de alguém de 15. A maior vantagem, além das óbvias, é enfrentar uma rotina de trabalho intenso e físico de 10 horas e chegar bem em casa. Quando o seu corpo está preparado para correr em trilhas de montanha por 10 horas, uma rotina de trabalho é nada. Do ponto de vista psicológico a relação da trail run com o trabalho é ainda maior. Como cirurgião, opero diversos pacientes por dia e normalmente cada uma das cirurgias é um desafio. É a vida de alguém em minhas mãos. Mas o nível de concentração e frieza que atinjo nos treinos e nas provas me ajuda a manter a serenidade. Treinamos a mente para manter a calma em qualquer situação", conta Roger.

ADAPTAÇÕES CONSTANTES – Aliás, num mundo em constante evolução e mutação, manter a calma nem sempre é tarefa fácil. Especialmente quando se é preciso corrigir ou adaptar, com rapidez, o rumo de uma grande empresa. Que o diga Marcelo Musial, de 37 anos, sócio da PriceWaterhouse, maior empresa de auditoria e consultoria do mundo. Apaixonado por corridas em ambientes extremos, como montanhas e desertos, Musial dedica-se às trail runs há dois anos, depois de boa experiência em corridas de aventura.
"Numa prova outdoor, você não pode simplesmente estabelecer um ritmo e ir sempre em frente. Você tem que adaptar o tempo todo, desde um pequeno passo para pisar no local certo até quando você encara um terreno diferente, uma subida ou uma descida. Assim é também no mundo dos negócios. Você tem que buscar alternativas o tempo todo, observar as nuances e oportunidades e adaptar-se às mudanças econômicas para continuar tendo sucesso e crescendo profissionalmente", conta Musial, que vem treinando para as provas de 250 km (em 7 dias) da Racing The Planet (www.4deserts.com).
Como o esporte toma boa parte do tempo – planejamento, treinos, viagens e provas -, o executivo tenta tirar dele o máximo de proveito para o dia a dia profissional e pessoal. "As horas em que estou correndo servem de reflexão. É o meu momento comigo mesmo. Penso no meu dia, como me aprimorar, ser uma pessoa melhor. E claro, sempre sobra um tempinho para tentar achar algum planejamento tributário para meus clientes", brinca Musial.
Mas é no concorrido mundo dos negócios que Musial aplica o que vive nos ambientes extremos e inóspitos das ultratrail runs. Resistência, planejamento, disciplina e respeito às pessoas e ao meio ambiente passam a fazer parte do dia a dia.
"No mundo dos negócios também encaramos tempestades e obstáculos. Com a mente treinada nos viramos muito melhor. Das provas tiramos lições de como ter disciplina para cumprir metas, resistência para continuar e força de vontade para não desistir. Vemos como é importante o planejamento para evitar problemas e a capacidade de adaptação às mudanças no percurso. Também aprendo muito sobre o respeito ao meio ambiente e ao próximo. Quem já não ficou preso numa trilha com um monte de gente e precisou aguardar pacientemente por sua vez de continuar correndo?", completa Musial.

HUMILDADE E PACIÊNCIA – Executivo do ramo de agronegócios, Armando Pires, de 38 anos, faz coro com Musial ao falar sobre a influência das corridas na relação com as pessoas em seu ambiente de trabalho. "Depois de passar por alguns ‘perrengues' e por algumas privações na natureza, aprendemos a ser mais humildes, a escutar mais as opiniões dos outros, independente da hierarquia", confessa o executivo, administrador da Fazenda Brasil, uma das principais produtoras de proteína animal e vegetal, no centro-oeste do Brasil.
A relação do ultramaratonista com o esporte começou cedo. Com 14 anos já praticava motociclismo off road, ao qual se dedicou até os 28 anos, tendo participado de provas importantes no Brasil e no exterior, entre elas o rally dos Incas, no Peru, e o Paris-Dakar.
Depois de experimentar corridas de aventura, kite surf, voo livre, canoagem e mountain bike, Armando resolveu se dedicar às corridas de montanha. Ainda não participou de provas internacionais importantes, o que deve acontecer este ano, na Transvulcania (Ilhas Canárias) e Irontrail (Suíça).
Carioca, Armando vive entre o Rio de Janeiro e a fazenda, onde seu trabalho não se resume ao escritório. Aí o treinamento para ultratrail runs faz a diferença.
"No meu trabalho, estar bem fisicamente é importante. Tenho que rodar o campo, então o preparo físico das corridas faz muita diferença. Não é fácil aguentar o tranco do dia a dia de uma fazenda, tanto na pecuária quanto na agricultura", diz Armando, já acostumado com a ideia que os colegas de trabalho têm dele quando descobrem a que atividade esportiva ele se dedica. "Todos me acham maluco. Mas fazer trail run e administrar uma grande fazenda são desafios interessantes e parecidos. Ambos estão sempre em mutação. Temos que estar espertos para as mudanças de rumo que naturalmente irão aparecer", afirma o executivo.
Já Nuno de Sousa, executivo numa empresa prestadora de serviços e equipamentos submarinos para o mercado de óleo e gás, garante mudar totalmente o foco para fora do trabalho quando está treinando ou competindo. Mas confessa que pode ser visto como super-homem em seu ambiente de trabalho.

COMO SUPER-HOMEM – "O esporte equilibra a minha vida. Mudo o meu foco para o momento que vivo quando estou correndo. Acho que sou apenas mais determinado do que a maioria, mas para as pessoas que não correm o fato de fazer 80 km em montanha me torna um super-homem", conta Nuno, que acaba de completar o Cruce de Los Andes e vem treinando para o TDS, uma das provas do Mont Blanc, com percurso total de 120 km e 7.250 m de ganho de altitude.
Aliás, o Cruce Los Andes proporcionou a Nuno vivências que ele pretende carregar consigo pelo resto da vida. Experiências que o ambiente corporativo dificilmente proporciona. "O ambiente que se forma nos acampamentos e trilhas coloca todos no mesmo nível. Não se distingue quem é diretor ou operário. Todos são iguais e o que os une é o amor pelo esporte de aventura. O resto não interessa. É uma experiência de valor incalculável."
O executivo ainda compara a construção de uma carreira no esporte a uma carreira profissional. Mostrando que uma beneficia a outra. "Este tipo de esporte permite ultrapassar os nossos limites e aumentar o nosso nível de confiança. A cada prova aumentamos a distância, a dificuldade e também a autoestima. Isso nos torna mais fortes também no trabalho. Uma carreira de sucesso é construída à base de autoconfiança. Se esta não existe, não vamos assumir novos riscos, desafios e assim não avançamos profissionalmente. Mas o oposto também acontece. A autoconfiança que se constrói no trabalho ajuda muito neste tipo de aventura", completa Nuno.

PALESTRAS MOTIVADORAS – Ultramaratonista e proprietário de uma loja especializada em material esportivo para corridas de aventura e de montanha, Mauro Chasilew faz palestras em grandes empresas, quando tenta relacionar as ultramaratonas e as corridas de aventura ao ambiente profissional.
"Falamos sobre metas, performance, preparo, responsabilidade, prazer e desprazer. Como somos todos pessoas normais fazendo coisas extraordinárias. É curioso e engraçado que quando contamos histórias de privação do sono e de alucinações, ou mostramos fotos de provas, as pessoas conseguem se transportar para estes locais e imaginar-se vivenciando as situações. A partir daí interagimos com elas, mostrando a capacidade de sermos vencedores em tudo aquilo que nos propusermos a fazer", conta Chasilew, que garante receber relatos de melhora de resultados nas empresas e de colaboradores que começaram a investir em qualidade de vida.
Certamente uma das perguntas que estes ultramaratonistas mais ouvem nas palestras ou mesmo no seu dia a dia é a tradicional: Por que você faz isso? Roger Cardoso sempre arranja um tempinho para responder e vai além:
"A surpresa é enorme quando as pessoas descobrem que o dentista todo arrumadinho e limpinho corre por trilhas horas a fio, muitas vezes à noite e com chuva. Ou mesmo que ele treina duas horas todos os dias antes de trabalhar. Mas dá para perceber que existe admiração por fazer coisas tão inusitadas. Sempre tenho que responder sobre o que eu como ou como vou ao banheiro nas provas. Mas gosto mesmo é de responder por que faço isso. Sabe quando você era criança e sonhava ter o poder de voar como o super-homem? Eu tenho o superpoder de correr por horas e horas sem cansar e pelos lugares mais legais que existem", diz Roger.

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