Se o processo de treinamento é feito corretamente, são meses de preparação que levam até aquele momento em que todo o esforço é posto em teste: a linha de largada. Nessa hora o frio na barriga é natural, o corredor sente a adrenalina pulsando em suas veias, o corpo pede para sair correndo. A prova tem início, e para o prazer do atleta tudo acontece dentro do planejado. Os quilômetros iniciais estão precisamente dentro do ritmo antecipado, talvez até um pouco abaixo, o movimento das pernas flui solto, é até tranquilo manter a velocidade almejada. Aí então começam a aparecer os problemas. Sem contar lesões agudas que podem ocorrer durante uma prova, dois grandes incômodos que fazem desmoronar a performance de corredores são as mudanças de temperatura e a aparição “súbita” de morros intermináveis.
Infelizmente, quem treina no frio não está preparado para correr no calor, e quem treina no plano não está pronto para subir e descer morros. Ainda que seja uma pena, faz sentido. Nosso organismo é sempre regido pelo menor esforço, ou seja, faz de tudo para não passar trabalho. Se não fosse assim, não teríamos de treinar nosso condicionamento cardiorrespiratório para melhorar nossa resistência ou fazer musculação para aumentar os músculos, nosso corpo naturalmente se desenvolveria ao máximo de sua capacidade, e treinar seria uma mera questão de direcionar as adaptações para o tipo de atividades que gostássemos mais. Não sendo esta a realidade de nossa biologia, só resta aos corredores treinar e treinar, na tentativa de forçar seus corpos a atingir novos estágios de condicionamento. Porém, seguindo a lógica do menor esforço, o organismo segue adaptando-se somente às cargas a que foi exposto, sem se preocupar em preparar-se para o desconhecido.
Para muitos a corrida é um esporte simples. Quer dizer, treina-se para percorrer uma distância “x” no menor tempo possível, e portanto não pode haver algo muito complicado nisso. Mas pode e tem. Lidar com situações desfavoráveis imprevistas – e elas quase sempre estão lá – tornam o tempo final de uma prova o resultado de uma complexa interação da vontade pessoal do corredor de terminar no menor tempo possível com a vontade de seu organismo de diminuir o ritmo sempre que é exposto a qualquer obstáculo desconhecido.
A CLÁSSICA ESCALA DE BORG. Confirmando esta hipótese, trabalhos mais recentes têm indicado que nossa performance em testes físicos é regulada por nossa percepção de esforço. O cérebro calcula (parte inconscientemente) qual o grau de exaustão que está disposto a tolerar, e transforma todas as informações referentes a dor, cansaço, estresse térmico, níveis de açúcar no sangue, entre outros, em nossa percepção de esforço. Este máximo grau de exaustão tolerado é calculado com base em cargas anteriores, daí a importância do treinamento refletir com precisão o que será feito durante uma prova.
A escala mais famosa deste tipo foi criada por um sueco, Gunnar Borg, e possui números que vão de 6 a 20 porque na época de sua criação a escala era relacionada a batimentos cardíacos, assumindo uma variação de 60 bpm em repouso a 200 em esforço máximo.
Para exemplificar como se acredita hoje que a percepção de esforço regule a performance durante o exercício, vamos supor que um corredor, após todo o seu treinamento, chegue à conclusão de que o melhor que consegue fazer numa prova de 10 km são 40 minutos, correndo a prova toda num ritmo constante de 4 min/km. O que irá acontecer é que mesmo mantendo o ritmo constante, no início da prova a percepção de esforço do atleta começará não muito alta, digamos em 13, e ao longo do tempo irá aumentar gradativamente, chegando em 19 ou 20 ao final da prova. É este aumento gradual da sensação de esforço ao longo do exercício que acaba “comandando” nossa performance.
Para exemplificar o que ocorre quando acontece um imprevisto, vamos supor que o corredor em questão tenha feito todo o seu treinamento em terreno plano, e que a prova apresente subidas e descidas. Manter a velocidade nas subidas irá exigir mais do corredor, e o maior grau de lesão muscular causado pelas descidas irá aumentar sua sensação de dor. Estes “novos” componentes serão levados em conta na hora de calcular a sensação de esforço, e se ele mantiver seu ritmo de 4 min/km em algum ponto da prova a sua sensação de esforço estará em 16 quando deveria estar em 14, por exemplo.
Este aumento mais forte da sensação de esforço faz o atleta perceber que caso continue assim sua sesação de esforço chegará em 20 antes que a prova termine, e não lhe sobrarão energias para concluir. Como isto não é aceitável para o corredor, quando sentir que não tem condições de manter um determinado ritmo sem “quebrar” antes da linha de chegada, ele será forçado a diminuir a velocidade.
SUBIDAS E CALOR: MÁS SURPRESAS. Estes “imprevistos” que alteram a rota de aumento linear da sensação de esforço e fazem com que o corredor tenha de ajustar seu ritmo para voltar à sensação de esforço ideal podem ser de origens, e na lista entram tanto variáveis internas (fisiológicas) como externas ao corredor, como a presença de torcida e familiares ao longo do percurso, ou, como nas duas situações que estamos avaliando, a temperatura e a altimetria de uma prova.
Apesar do aparecimento de subidas e descidas inesperadas causarem grande desânimo em alguns, se o atleta estiver bem preparado, mesmo uma “parede” pela frente não chega a trazer grandes consequências. Isso porque nosso organismo sempre opera com uma reserva metabólica, e um pouco a mais de gasto calórico ou de lesão muscular não chega a comprometer em muito o desempenho.
Já o calor cria uma situação bem mais delicada. O corpo humano possui uma temperatura ideal de funcionamento, e quando em exercício permite que ela aumente para níveis que em repouso seriam considerados preocupantes. Um dia muito quente, quando o corredor não estava preparado para tal, agrava esta situação, pois a taxa de transpiração ainda não está aumentada, diminuindo a capacidade do principal mecanismo de perda de calor do corpo humano – o suor.
Como a temperatura do organismo é uma variável muito importante a ser defendida pelo cérebro, muito mais que o grau de lesão muscular, por exemplo, e sem poder eliminar o calor de forma otimizada, resta apenas a opção de limitar a produção de calor. Este é possivelmente o motivo pelo qual nosso organismo é mais sensível às mudanças inesperadas de temperatura do que de altimetria.
INFORMAÇÃO ANTECIPADA AJUDA. Uma elevação inesperada de temperatura durante a prova aumenta mais a sensação de esforço do que o aparecimento de subidas e descidas, obrigando o corredor a diminuir sua velocidade, numa tentativa do organismo de limitar que temperaturas corporais exageradas sejam atingidas. Para que os corredores não passem por este tipo de situação durante uma prova, o melhor caminho é a prevenção. Antecipar o terreno e o clima de uma prova, e preparar-se corretamente para eles, mais que dever do corredor, é um cuidado com a saúde.
Lidar com a altimetria do percurso é uma tarefa simples, e evita muitos problemas durante uma prova. O primeiro passo é conhecer o perfil dos aclives e declives de uma corrida no início da preparação para o evento. De pouco adianta saber qual será o tamanho das subidas e descidas de uma prova com dois dias de antecedência. O corredor deve estudar a quantidade e a inclinação das subidas e descidas, informação que hoje em dia é de fácil acesso nos sites dos eventos. A partir daí deve-se incluir subidas e descidas com perfil similar durante a fase de preparação.
E não estamos falando apenas dos treinos específicos de subidas que os corredores colocam em suas periodizações. É preciso que parte dos treinos longos também apresente um grau de dificuldade que se assemelhe ao que será encontrado durante a competição. Estas medidas irão garantir que no dia da prova nenhum subida apareça de surpresa e derrube o moral do corredor. Este aliás é um dos poucos motivos pelo qual tomar conhecimento da altimetria da prova apenas alguns dias antes é melhor do que nada. Sabendo que existirão subidas e descidas mais fortes, mesmo que de última hora, permitirá que o corredor revise seu ritmo inicial e expectativas de resultados, diminuindo assim o impacto negativo da aparição de uma montanha no meio do caminho.
Enfrentar o calor, por outro lado, é uma tarefa mais complicada. Claro, é possível adiantar se uma prova será no inverno ou no verão, ou o tipo de temperatura que o evento teve em edições anteriores, no entanto com a bagunça climática atual estas precauções são pouco eficazes, e as previsões do tempo mais acuradas saem apenas alguns dias antes do evento.
Mesmo que houvesse tempo, na grande maioria das vezes também é logisticamente impossível se preparar para uma prova que ocorrerá em clima diferente daquele em que o corredor realiza seus treinos. Uma das poucas alternativas é tentar realizar a preparação no horário do dia que mais se assemelhe ao clima da prova, seja ele mais quente ou mais frio.
Se a prova ocorrer em clima mais frio que o local de treino, isto trará pouco ou nenhum problema (desde que não seja extremamente mais frio), fora o fato de que o corredor terá treinado num ritmo um pouco mais fraco do que o que poderia ter treinado, pois estava enfrentando o calor durante seus treinos. Já se a prova ocorrer em um dia mais quente, o corredor que não teve a possibilidade de treinar no calor deve se precaver de antemão, revisando seus tempos desde o início da prova com expectativas mais conservadoras, e caso a situação se mostre favorável ao longo da prova tentar buscar o tempo perdido na segunda metade.