Releitura Redação 19 de abril de 2021 (0) (67)

Mesmice uma ova

Espírito corredor – Márcio Dederich – Abril 2010

 Correr é sempre agradável, mas dois momentos são especialmente interessantes nas corridas: o primeiro deles é quando você está correndo; o segundo, quando você volta a correr. Entre um e outro pode existir desde o necessário repouso até (toc, toc, toc) as indesejáveis paradas por lesão. Breve ou demorada, a experiência de ser obrigado a parar ensina a dar o devido valor ao que foi desacreditado, esquecido ou mesmo abandonado. Leva a repensar detalhes daquilo que se aprendeu sobre o esporte, a reconsiderar julgamentos e conceitos sobre a prática. Ainda bem que é assim.

Há quem ainda hoje continue defendendo o discurso de que correr é uma atividade solitária, repetitiva e monótona. Não faço parte desse grupo. Para mim, correr não é mesmice. E se algum dia essa ladainha me soou minimamente plausível, as mudanças por mim percebidas no presente retorno reforçam como nunca o sentimento contrário. E tem mais: os diferentes caminhos trilhados por amigos corredores confirmam a certeza de que não são elas, as corridas, as responsáveis pela acomodação de quem anseia por mudanças, mas não toma atitude.

Na academia, na pista ou na rua, treinando ou competindo, nas corridas é possível encontrar todo tipo de gente. Entre homens e mulheres, entre profissionais e amadores, há quem viva para aparecer e quem apareça para viver. Tem quem estudou, se formou e segue tocando a vida em frente, e tem quem ainda não se tocou que a hora do recreio já era. Tem gente que corre calada, que fofoca, que fala de futebol ou fala de dinheiro. E gente que ganha muito dinheiro enquanto o resto só fala. Tem um pessoal que trabalha, se sacrifica, mas não se preocupa em ficar rico. E muitos que nada fazem e não entendem por que não estão ricos.

Cabe a cada um escolher a própria rotina, estabelecer seus valores pessoais e que tipo de corredor deseja ser. Cada corrida surge como uma alternativa, uma possibilidade de mudança. Opções não faltam. Tem para todo gosto. E isto se deve àqueles que não se acomodaram, que foram em busca de seus sonhos, em vez de esconderem a própria inércia por trás de discursos preguiçosos e repetidos. Esses fizeram da zona de desconforto uma zona de oportunidades.

A tal da mesmice está na cabeça de quem não evolui, não muda de opinião e deixa de experimentar outra prova, outra distância, de conhecer outras pessoas e, principalmente, de tentar outra postura, outro ponto de vista. Ficam reclamando de tudo, de todos e vivendo sempre a mesma coisa. Vale para a vida; vale para as corridas. Basta abrir um pouco a cabeça para entender.

A euforia de uma novidade não preenche ninguém. Passageira, é apenas complemento, um brinde à felicidade que não deve ser usado para tapar buraco emocional. Ela é saudável apenas quando é dispensável. Caso contrário, funciona como uma droga, que distorce a realidade por breves momentos e logo perde o efeito. O êxtase dos prazeres superficiais como válvula de escape é um vício que, como todos os demais, um dia cobra seu preço. E correr, correr de verdade, não é nada disso. Correr de verdade vai muito além.

Estamos em abril e o Ano Novo já não é mais tão novo assim. Entre promessas, resoluções e pedidos de fim de ano, o grande objetivo da maioria das pessoas é sempre a felicidade. Algumas a alcançarão e, não importa quantos desafios e perdas enfrentem, terminarão 2010 exatamente como começaram: felizes. Outras terão novamente a oportunidade de retomar sua luta por sonhos já abandonados. Nas duas situações, dispensando a euforia como fuga de angústias mal resolvidas, as corridas ajudam.  Nesse caso, repeti-las sem parar é um excelente negócio.

Prefere chamar de mesmice? Pois chame. Nada contra. Vou continuar correndo do mesmo jeito.

 

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