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Meias de compressão para que?

FISIOLOGIA – por Fernando Beltrami – fernando@evenfaster.com.br – Setembro 2010

A indústria de vestimentas esportivas de compressão ganhou muita força no últimos anos. Inicialmente utilizados na área médica, estes produtos estão presentes em diversos esportes. Quem assistiu a Copa do Mundo de Futebol, por exemplo, talvez tenha notado que em alguns casos jogadores do mesmo time possuíam camisetas com diferentes graus de compressão. Enquanto alguns utilizavam uma malha por baixo da camiseta oficial da equipe em outros jogadores a própria camiseta oficial era de compressão.

Na área médica as meias de compressão possuem diversas faixas de graduação, sempre medidas em milímetros de mercúrio (mmHg). Essas podem variar desde 10-15 mmHg até mais de 50mm Hg. No mundo esportivo, as meias de compressão podem apresentar um nível constante de compressão, em torno de 20-30 mmHg, ou possuir um nível gradual de compressão, em torno de 20-25mmHg na altura do tornozelo e diminuindo até 70% ao se aproximarem do joelho.

Em esportes como triatlo, as meias de compressão já são comuns, sendo mais utilizadas na parte da corrida. Para se ter uma ideia do apelo dessas meias no esporte, em 2009 a World Triathlon Corporation decidiu proibir o uso delas no Ironman do Havaí, alegando que seu uso escondia o número do atleta, pintado na panturrilha. Como o número ficava escondido de quem viesse atrás apenas para os corredores que estivessem usando as meias, isto poderia prejudicar a competitividade do evento – atire a primeira pedra quem nunca tiver corrido um pouquinho mais rápido só para passar aquele cara ali na frente que é da mesma categoria. O barulho dos triatletas em resposta foi tão alto que logo depois a entidade voltou atrás da decisão e resolveu não pintar mais o número na panturrilha dos participantes, voltando assim a nivelar a competição.

Na corrida, o uso das meias de compressão não é tão grande – ainda – quanto no triatlo, modalidade em que os participantes são mais afeitos a novidades “tecnológicas”, mas o aumento na quantidade de corredores com meias até os joelhos em provas é nítida. Talvez incentivados pelo exemplo de ícones do esporte como Paula Radcliffe (recordista mundial de maratona), e pelo fato de que hoje um corredor com meias até os joelhos já nem se destaque mais na multidão.

Os profissionais lançaram a moda, as amadores parecem ter aprovado e estão aderindo. Mas será que isto é o bastante para justificar a eficácia de um produto? Normalmente não, e por isso é que recorremos a diversos estudos independentes para se ter uma ideia mais ampla do quanto as meias de compressão realmente funcionam e quanto se deve ao efeito placebo desencadeado pelo pensamento de “se fulano usa e diz que é bom, então quando eu usar também vai ser bom”.

 

Um monte de vantagens

Vamos começar por um ponto crucial: o que os fabricantes alegam. Entre páginas na internet dos próprios fabricantes e de algumas lojas, vamos nos ater à seguinte lista: prevenção do desenvolvimento de varizes, edemas de origem linfática, cãibras, fadiga muscular, melhora do fluxo sanguíneo e oxigenação da musculatura, aumento na remoção de ácido lático, diminuição da vibração muscular e dor tardia, diminuição na produção de ácido lático, aumento de performance. Com uma lista dessas, fica realmente difícil resistir ao impulso de puxar o cartão de crédito, mas espere! Vamos ver o que existe de evidência concreta por trás de cada uma das supostas vantagens.

Uma primeira constatação, que não desnecessariamente desmerece o produto, é que enquanto um dos fabricantes alega – segundo estudos científicos que não são referenciados – “… aumento de fluxo sanguíneo de 34%. Isto aumenta a oferta de oxigênio e aumenta a performance muscular. A melhora de circulação também auxilia na remoção de ácido lático”, uma loja diz que o produto “Melhora o fluxo sanguíneo e consequente irrigação da musculatura e remoção de ácido lático em até 34%”. Perceba como a ideia de que o fluxo sanguíneo é aumentado em 34% praticamente se transforma em remoção de lactato 34% maior, duas coisas totalmente diferentes, e onde possivelmente a ideia de diminuição de lactato possui um apelo muito maior entre atletas. Este tipo de desencontro entre fabricantes e vendedores, ou mesmo entre o departamento “científico” e o de marketing de uma mesma empresa são extremamente comuns, e por isso é recomendado que dada a facilidade da internet o consumidor sempre vá ao site do fabricante para buscar informações sobre produtos específicos.

Existem já diversos estudos publicados sobre os possíveis efeitos das meias de compressão no mundo esportivo. Enquanto alguns explicitamente buscam por qualquer indicativo de que elas possam ser benéficas, outros já de início se mostram mais céticos quanto aos resultados esperados. Numa sequência interessante, a pesquisadora Elmarie Terblanche, da Universidade de Stellenbosch, “vizinha” aqui da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, realizou dois estudos envolvendo o assunto.

No primeiro, seguindo simplesmente a ideia de que as meias melhoram a performance por aumentar a circulação sanguínea e transporte de nutrientes e metabólitos, 10 corredores realizaram dois testes incrementais até a exaustão, com e sem as meias. Apesar de não haver nenhuma diferença em performance entre as duas situações, os níveis de lactato sanguíneo após o exercício diminuíram mais rapidamente com o uso das meias.

Seguindo então a pista de uma possível melhora na recuperação pós exercício, o segundo estudo envolveu 62 corredores da Two Oceans (prova de 56 km na Cidade do Cabo). Metade do grupo competiu com as meias, e a outra metade as utilizou apenas nos três dias após o evento. Dois dos marcadores indicativos de dano muscular medidos estavam significativamente menores nos atletas que correram com as meias, sugerindo algum benefício real de seu uso como facilitador da recuperação muscular.

 

Calças de compressão

Pode-se dizer que testes incrementais deixam a desejar enquanto indicadores de performance, no entanto resultados similares foram obtidos num estudo de autores britânicos. Utilizando calças de compressão – que teoricamente teriam um efeito ainda maior que as meias, seguindo a lógica – eles não encontraram nenhum efeito de performance em testes de salto e velocidade quando os participantes utilizaram as calças durante 48 h de repouso entre duas sessões de exercício, apesar os níveis de dor muscular terem diminuído. Não foi investigado no entanto, o efeito das calças durante o exercício, situação em que o estudo sul-africano encontrou uma diminuição em marcadores de lesão muscular.

Outro estudo inglês parece ter resultados um pouco mais promissores. Dezessete mulheres ativas passaram por um protocolo de indução de dano muscular (sequência de 100 saltos a partir de um banco de 60 cm), e depois foram distribuídas em grupo controle, sem intervenção, e grupo intervenção, que usou calças de compressão por 12 horas após a atividade. Ambos os grupos tiveram queda de desempenho de força em extensores de joelho após o protocolo de saltos, porém esta foi muito menor no grupo que utilizou as calças, que ainda apresentou menores índices de dor muscular.

Voltando para as meias de compressão, e para seu uso durante o exercício, um estudo neo-zeolandês de 2007 investigou a utilidade das meias em duas situações: durante dois testes incrementais separados por uma hora de pausa e durante uma corrida de 10 km. Enquanto os dois testes incrementais tinham por objetivo analisar efeitos das meias sobre a performance do segundo teste, os 10 km tinham por objetivo analisar a percepção de dor muscular nos dias após a corrida. Da mesma maneira que os outros estudos já citados, não foram encontrados efeitos sobre a performance, enquanto a percepção de dor muscular, especialmente na panturrilha e quadríceps, foi menor quando os participantes utilizaram as meias.

Ainda na linha de performance, um estudo de 2009 avaliou o efeito do uso de meias de compressão durante um teste máximo de esforço e durante corrida em diferentes pontos de concentração de lactato. Apesar de não encontrarem nenhum diferença no consumo máximo de oxigênio, os pesquisadores verificaram um aumento no tempo de exercício com o uso das meias, e também que a velocidade associada com diferentes concentrações de lactato era maior quando as meias era utilizadas.

 

O vilão lactato

Um parênteses fisiológico aqui. Apesar de diversos estudos, como já mencionado, terem indicado uma menor concentração sanguínea de lactato com o uso das meias, é importante atentar para o fato de que o lactato é produzido nos músculos, e não no sangue. Ou seja, um equipamento de compressão que diminua a concentração sanguínea de lactato pode estar agindo por dois mecanismos opostos: ou está acelerando a remoção de lactato ou simplesmente está impedindo que o lactato saia dos músculos e chegue ao sangue, hipótese que já foi levantada por diversos estudiosos, mas ainda não foi testada.

A lista de estudos, felizmente, poderia seguir, mas parece que estamos falando cada vez mais do mesmo. A maioria dos trabalhos que aponta um ganho de performance utiliza protocolos, participantes ou interpretações duvidosas. Por outro lado, os resultados apontando para diminuição de dor muscular pós exercício e recuperação de performance pós-fadiga parecem bem mais confiáveis e promissores.

Enquanto boa parte das vantagens atribuídas por fabricantes não se justifique ou simplesmente não terem sido testadas, a hipótese de que os equipamentos de compressão ajudem a auxiliar na estabilização da musculatura e a reduzir a vibração decorrente do impacto com o solo parece fazer sentido, apesar de não ter sido devidamente avaliada. Alguns trabalhos apontam até para o fato de que a energia elástica proporcionada por calças de compressão pode auxiliar a musculatura em seu trabalho, aliviando os tendões de parte do seu estresse mecânico.

O assunto ainda gera controvérsia, e alguns estudos são incapazes de encontrar benefícios de meias de compressão mesmo em pessoas com síndrome pós-trombótica durante exercício, teoricamente a população que mais deveria se beneficiar delas. No entanto, o grau de evidência em favor do uso ocasional de meias de compressão parece muito mais promissor que o de diversos outros equipamentos que já surgiram no mercado. É importante ressaltar que, uma vez que as meias podem afetar a circulação sanguínea, o aval médico para seu uso sempre é uma boa recomendação.

 

 

 

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