Performance e Saúde admin 5 de março de 2012 (3) (268)

Medir o lactato nos treinos vale a pena?

Ter a maquininha que mede a concentração de lactato e tirar uma gota de sangue da orelha ou do dedo ao fim de uma série era o auge que se poderia chegar em um treinamento "científico". Protocolos indiretos, que se baseiam na relação entre as concentrações de lactato e algumas velocidades de corrida também são populares com alguns treinadores, e expressões como o limiar de lactato fazem parte do cotidiano dos corredores. Por tudo isso, talvez seja de se estranhar que só em 2012 é que algum grupo de pesquisadores tenha criticado com tanta força o protocolo de medida de lactato sanguíneo durante o exercício. Antes de falarmos sobre o artigo em questão, é preciso criar uma base um pouco mais generalizada sobre o que é, para que serve e como são utilizados os dados de concentração de lactato durante o exercício.

 

O QUE É O LACTATO.  Talvez estejamos batendo em uma tecla já gasta, mas nunca é demais insistir neste assunto. O lactato é um sal, derivado do ácido lático. Este, por sua vez, é um subproduto da quebra de glicose para obtenção de energia. Quando o açúcar começa a ser queimado, ele primeiramente é degradado e se transforma em piruvato. Esta molécula, o piruvato, pode seguir por dois caminhos: o primeiro é ser oxidado totalmente, utilizando oxigênio, no chamado metabolismo aeróbico; a segunda opção, mais rápida e menos eficiente, é ser parcialmente oxidado, sem oxigênio, no chamado metabolismo anaeróbibo lático. Lático porque o que sobra do piruvato parcialmente degradado é justamente a molécula de ácido lático.

A palavra lactato é mais corretamente utilizada no lugar de ácido lático porque assim que é formado o ácido lático se dissolve em lactato (um sal) e hidrogênio (H+). Este hidrogênio é quem na verdade faz a ação de ácido que é tão comentada, diminuindo o pH sanguíneo (quanto mais baixo o pH, mais ácido), e não o lactato. Porém, como os dois são criados na mesma proporção, em termo práticos utiliza-se um como medida do outro.

Possivelmente o motivo de o lactato ser tão popular nas ciências do exercício é que, além de ser uma variável fácil de ser medida, ele também esteve associado à contração muscular desde os primeiros estudos na área. Nos idos de 1920, pesquisadores estimulavam músculos de sapo na ausência de oxigênio, e se deparavam com grandes quantidades de lactato. As teorias originais acreditavam que o lactato era o responsável pela contração muscular em si (na verdade, pelo relaxamento da contração).

Mais tarde, conforme se avançou na conhecimento, descobriu-se que o lactato não era responsável pela contração, mas que ele aparecia sempre que a presença de oxigênio nas células diminuía, e que o aumento de sua concentração estava relacionado com o aparecimento da fadiga. Este foi o início da era em que a lactato era considerado o vilão do exercício, pois  acreditava-se que ele "envenenava" os músculos diminuindo sua capacidade de produzir força.

 

DE VILÃO A MOCINHO. Hoje já se sabe que o lactato não é nada disso, e que ele também não é o responsável direto pela fadiga muscular. O fato de duas coisas muitas vezes acontecerem ao mesmo tempo não quer dizer que uma é a causa da outra. Além de não ser mais o vilão da história, o lactato ainda está ganhando fama de mocinho. É que o lactato é a única forma de os músculos exportarem glicose, que é vital para diversos órgãos, para fora de suas células.

É um pouco como se as células musculares tivessem suas portas de entrada e saída com chaves diferentes. A glicose possui apenas a chave de entrada, e uma vez lá dentro ela não consegue mais sair. Já o lactato possui ambas as chaves, e pode ser enviado de uma célula que esteja com glicose em excesso para uma outra que esteja com maior necessidade. Uma vez dentro da nova célula ele pode ser reconvertido à piruvato para ser oxidado (queimado para a produção de energia) como uma molécula de açúcar qualquer. Além disso, a tal acidose também tem sido apontada como um efeito que protege o funcionamento da musculatura contra outros eventos.

Por ser fácil de medir (bastam algumas gotas de sangue e a maquininha apropriada), e por estar associado em tempo com a fadiga, o lactato se tornou um método popular para avaliação de atletas. Inúmeros protocolos surgiram, mas todos eles se baseiam na seguinte idéia: conforme nos exercitamos em intensidade cada vez mais elevadas, nosso metabolismo aeróbico passa a não dar mais conta da demanda por energia, e o metabolismo anaeróbico começa a ser utilizado em maior escala, o que é evidenciado por um aumento desproporcional na concentração sanguínea de lactato (veja o exemplo da figura). O ponto onde este aumento desproporcional ocorre (e ele pode ser calculado de muitas maneiras) é associado com a performance em provas de longa duração, e por isso se tornou um referencial em avaliação e treinamento.

Dentre as múltiplas formas de cálculo deste aumento da concentração de lactato destacam-se algumas: o ponto em que a concentração de lactato aumenta em 1mMol/L a partir da concentração de repouso, os pontos em que a concentração de lactato equivale a 2 e a 4 mMol/L e o ponto que ocorre uma quebra na curva de lactato x velocidade de corrida, ou seja, a concentração de lactato aumenta lentamente com o aumento da velocidade e subitamente tem um aumento abrupto. Todos estes métodos, ou pontos, levam em consideração que o aumento na concentração de lactato, ou aumento do metabolismo anaeróbico, é um indicativo de que a fadiga está próxima.

Utilizando-se qualquer uma destas fórmulas de cálculo para avaliar um corredor, procuramos a seguinte situação: se quando um corredor inicia seu programa de treinamento sua concentração de 4 mMol/L de lactato ocorria em 10 km/h, por exemplo, e agora ocorre em 12 km/h, sabemos que o treinamento está sendo eficiente, pois uma menor utilização dos recursos anaeróbicos implicam que o sistema aeróbico está funcionando melhor, e que já consegue acomodar toda a demanda de energia feita pela musculatura em exercício.

 

A PRECISÃO DO MÉTODO. O estudo que mencionamos lá no início da matéria, feito por um grupo neozeolandês e publicado na edição de janeiro deste ano do British Journal of Sports Medicine, é possivelmente o trabalho mais cuidadoso já realizado sobre a reprodutibilidade das medidas de lactato em indivíduos ativos. E os resultados não foram muito animadores para os que defendem a técnica.

Para que uma variável seja útil para fins de prescrição de treinamento e avaliação de atletas, é preciso que as medidas sejam reprodutíveis. Isso quer dizer que se o status de treino de um determinado corredor não mudar, seu teste deve dar sempre o mesmo resultado, e vice-versa caso ele esteja mais ou menos treinado. Os trabalhos anteriores investigando esta hipótese sempre se utilizaram de duas ou três avaliações no mesmo indivíduo, para detectar a variação das medidas de concentração de lactato, e assim saber se o método era sensível o bastante ou não.

Este último trabalho, melhor controlado, realizou sete testes em sequência, todos separados por cerca de 48 horas, realizados na mesma hora do dia e com controle de dieta, descanso, treinamento etc, tudo para garantir que os participantes estivessem sempre na mesmas condições físicas, o que deveria resultar em testes sempre com o mesmo resultado.

A surpresa geral se deu pelo fato de que os resultados ficaram muito aquém do que se poderia esperar para um teste que se pensava ser capaz de predizer status de treinamento, com exceção de um método de cálculo, chamado de D-max, onde se busca o ponto da curva mais distante de uma reta hipotética entre os valores mais alto e mais baixo de lactato (ver figura). Por exemplo, as chances de os testes "perceberem" uma mudança de cerca de 20W na carga associada a uma determinada concentração de lactato são de menos de 35%. Vale lembrar que 20% num teste de corrida equivale a mudar sua carga de digamos 14 km/h para 16,8 km/h! Em uma prova, seria algo como ter que baixar cerca de 6 – 8 minutos em um teste de 10 km para que o teste detecte algo fora de sua zona de erro. Se corredor e treinador ainda não perceberam que a condição física do corredor já mudou, algo está errado!

A sensitividade à qualidade das medidas de variáveis fisiológicas relacionadas à aptidão física melhora constantemente. No entanto, o que este estudo nos mostra é que infelizmente ainda estamos longe de métodos nos quais podemos confiar cegamente. A performance ainda é o melhor preditor de performance, e de condicionamento físico também.

Para isso, extrapolam as marcas em uma distância menor para prever o resultado em um percurso mais longo, e isso vale tanto para ritmos de provas como para se calcular os tempos das séries utilizadas no treinamento. Esta estratégia já foi testada e retestada, e tabelas com a conversão de valores de distâncias curtas para distâncias maiores abundam. Se os resultados de um corredor não fecham com a predição da tabela, o problema possivelmente esteja nos seus treinos, e não na tabela.

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3 Comments on “Medir o lactato nos treinos vale a pena?

  1. Como chama a maquina que mede o lactato?e onde encontra-lá?por favor!

  2. Gostei muito do comentárioa, mas questiono os níveis de 2-4mmol/l para quebra de moléculas, pois tenho alguns cálculos de atletas de auto-rendimento que compravam uma quebra em concentrações de 5,6,7,8mmol/l.

  3. Por favor será que é possível relatar qual é a referência completa do estudo citado neste artigo da revista British Journal of Sports Medicine. Obrigado

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