Quando comentei com alguns amigos que faria no dia 8 de novembro a 37ª Maratona de Harrisburg, na Pensilvânia, muita gente me questionou por que escolher uma prova tão desconhecida e pequena. A idéia surgiu depois de minuciosa pesquisa, de novo tentando unir trabalho, a cobertura da Maratona de Nova York, uma semana antes, com a paixão pela corrida. A única exigência na escolha era de que a prova fosse classificatória para Boston 2010, meu sonho de consumo. A decisão final pela Pensilvânia saiu depois que soube que teria a companhia de uma grande amiga, que me acompanharia na viagem, a fisioterateuta Flávia Kurtz, que estava se preparando para correr em Nova York. Treinamos juntas a temporada, uma vez que nossas maratonas tinham apenas uma semana de diferença.
O fato de ser uma maratona pequena, com apenas 900 participantes, não me assustava de início, embora fosse algo diferente do que estava acostumada. Dei uma vasculhada na internet e os comentários sobre a prova diziam que o percurso era cênico, quase totalmente plano, exceto entre as milhas 17 a 19. Junto com a maratona acontecia um revezamento, disputado em quarteto, o que me fez acreditar que não sentiria falta de corredores ao redor.
Dei uma olhada no resultado oficial do ano anterior e percebi que, de uma forma geral, os tempos gerais eram um pouco mais altos na parte final. Não liguei muito para isso até porque não estava atrás de recorde. Precisava apenas do índice, 3h50 na minha faixa etária, e acreditava que poderia fazer uma maratona tranquila, até para poder atingir o ápice da forma em abril de 2010. Agarrei-me o tempo todo no meu histórico recente de maratonas, com 3h40 em Nova York, considerada uma prova um pouco difícil.
Fiz minha inscrição pela internet 10 dias antes da prova, pelo active.com, a US$ 55, no mesmo dia em que garanti a reserva no hotel oficial do evento e a passagem de trem que me levaria para a Pensilvânia, que fica apenas 3 horas de Nova York. Por pouco mais de US$ 200 dólares garanti a viagem e a participação. Parecia tudo perfeito, mas, com as andanças de lá para cá para dar conta do trabalho em Nova York, amanheci a 2ª-feira pós-evento quebrada, com uma dor muscular generalizada nas pernas, como se tivesse corrido uma maratona. Minha tranquilidade acabou por aí e percebi que as coisas não seriam tão fáceis quanto imaginava. Mas fui adiante para encarar meu desafio.
Passei a semana na Big Apple e, no sábado pela manhã, eu e a Flávia, que havia corrido NY, pegamos o trem com destino a Harrisburg. Viagem tranqüila. Chegamos ainda pela manhã na cidade, terra dos chocolates Hershey's. Pegamos um táxi até o hotel e no curto trajeto deu para ter uma noção geral da cidade e de parte do percurso da prova, vista por fotos, como o Capiltólio e as várias pontes sobre o rio Susquehanna, que corta a cidade e onde beira grande parte da prova, cerca de 10 km.
SEM CLIMA DE MARATONA. Sensação estranha ao chegar ao hotel oficial. Um dia antes da prova e nada me dizia que ali haveria uma maratona. "Mas cadê os corredores?", indaguei. Cheguei a pensar que estava no local errado ou que a prova tinha sido cancelada. Depois de levar as malas para o quarto, voltei ao saguão e, com um pouco mais de atenção, avistei um papel informando que às 13h abriria a entrega de kit num dos salões.
Após o almoço, enxerguei de longe as primeiras cenas de que ali haveria mesmo uma maratona, com uma pequena movimentação do que parecia uma modesta entrega de kit. Fui direto a uma mesa e peguei meu kit, com número de peito, vários chocolates Hershey's e uma belíssima jaqueta, ao invés da camiseta tradicional.
No dia, de 15 em 15 minutos saíam ônibus do hotel para a largada, marcada para as 8h30. Por causa do frio, cerca de 4 graus pela manhã, deixei para ir a City Island, uma ilha bem no meio do rio Susquehanna e onde seria a largada, mais perto do início de prova. Foi tudo muito tranqüilo e organizado. A temperatura prometia esquentar para cerca de 15 graus durante a prova, o que parecia bom para correr.
Cheguei à largada e comecei a ver a movimentação da prova. Numa área coberta, havia um café da manhã bem abastecido. Bebi um copo de café preto bem quente e tomei coragem para me trocar, mesmo com muito frio. Deixei as roupas no guarda-volumes e fui para um local de maior aglomeração de pessoas, na ponte Market St. Não havia nenhum pórtico que identificasse que ali seria de fato a largada. Na dúvida, certifiquei-me com outros corredores. Faltavam 5 minutos para início da corrida quando um homem começou a gritar num megafone para que as pessoas se afastassem e dessem espaço para a linha de largada, que deveria ser uns 30 metros para trás. De repente, vejo alguns homens esticarem rapidamente um tapete, que me parecia ser o do chip de largada. Nada havia para separar os corredores. Apenas o tapete e a boa vontade das pessoas de cooperar.
Largamos e começamos a correr em direção à cidade. A simplicidade da prova era algo diferente do que estava acostumada. "Se estão fazendo isso há 37 anos, só posso acreditar que dão conta do recado", pensei. Sem preocupação, atravessei a ponte e avistei a Flávia fotografando em cima de um grande muro, já pronta para pegar uma bicicleta, que conseguimos com a Isabel, para seguir caminho junto comigo e com prova. Passei forte a primeira milha e tentei segurar na seguinte. Entrei num ritmo que acreditava bom, imaginando que não precisaria correr no meu limite. No início consegui me distrair com a novidade e a beleza do percurso.
PELA MARGEM DO RIO. Passamos pela cidade e pouco depois de 6 km entramos numa trilha de terra batida cheia de zique-zague e curtas subidinhas, onde mal passavam três corredores. O ritmo ficou mais lento, mas não me abalei. Estava correndo abaixo do que precisava. Logo saímos da trilha para pegar uma das partes mais bonitas do percurso, à margem do rio. O lugar era lindo, mas as milhas demoravam a passar. Sem marcações em km, perdi um pouco a noção do ritmo e resolvi apertar um pouco até para minimizar a sensação de monotonia. Comecei a ficar irritada com os corredores do revezamento, que passavam como uma bala por mim. Irritei-me também com os escassos e pequenos postos de hidratação, a cada 3 milhas (ou 4,8 km), que serviam água em copos quase pela metade. Mesmo assim fui levando. E veio então a marca da meia: 1:53:26. Fiz os cálculos e, se conseguisse dobrar, faria 3h47. Se caísse um pouco nas duas milhas que diziam ser em subida, ainda estaria dentro do planejado.
Os trechos em subidas vieram duas milhas antes do anunciado, na altura do km 24, e continuaram até o km 32. Eram várias subidas curtas, mas bem íngremes. Comecei a me lamentar e me senti enganada pelas informações que havia obtido da prova. Meu ritmo foi despencando e, antes mesmo de chegar aos 30 km, pensei em abortar a maratona, percebendo que o índice para Boston já era. Mas afastei esse pensamento da cabeça e fui adiante. A água era cada vez mais insuficiente para matar minha sede. Estava tão desconcentrada que em nenhum momento pensei em diminuir o passo para conseguir fazer uma hidratação adequada.
Aguardava com ansiedade voltar a correr à beira do rio, na milha 22 (km 35), o que poderia me dar uma energia extra para finalizar a prova. Mas o gás esperado não veio e o ritmo caiu ainda mais. A essa altura, o lindo cenário do início da prova na volta já não parecia tão convidativo quanto antes. Nesse meio-tempo, perguntei ao menos umas duas vezes para a Flávia quanto faltava para o final. Com o incentivo dela, tentei reagir algumas vezes, mas foi em vão.
FRUSTRAÇÃO PASSAGEIRA. Faltando duas milhas para o final, consegui fazer uma conta, que em segundos me colocou novamente na prova. Se eu mantivesse aquele ritmo, meu tempo final, que estava em 3h38 na milha 24, iria para cima das 4 horas. Naquele momento, voltei a brigar com o relógio para tentar ao menos finalizar a maratona abaixo das 4 horas. Depois de atravessar a bonita e antiga ponte Walnut St., cruzei a linha de chegada em City Island em 3:58:05. Terminei frustrada. Ainda tentando me recuperar do sprint da chegada e antes mesmo de rever a Flávia, uma voluntária não saiu do meu lado enquanto não se certificasse de que eu estivesse bem. Naquele momento, não conseguia falar muita coisa, a não ser me lamentar da difícil e sofrida batalha. Entrei no ônibus de volta ao hotel cabisbaixa, mas com a medalha no peito e uma sede absurda. "Que ironia do destino", pensei. "Tive esse índice por muito tempo. Quando precisei, escapou das minhas mãos. Onde errei?", comecei a me perguntar. "Excesso de confiança? Falta de atenção a detalhes do percurso? Hidratação inadequada? Correr uma maratona uma semana depois de andar para lá e para cá em Nova York?" Quanto mais eu pensava, pior era e senti que seria muito difícil digerir esse resultado.
Quando estava no ônibus para seguir rumo ao hotel, eis que entra um corredor subindo as escadas com muita dificuldade e cara de sofrimento. Todos pararam para ver a cena. Quando ele se deu conta de que estava sendo observado, abriu um imenso sorriso e gritou: "Good job, runners" (bom trabalho, colegas). Saiu cumprimentando todos ali sentados, andando com dificuldade, mas com grande animação. Nesse momento, meu sentimento de derrota foi embora e senti-me até envergonhada das lamentações. Claro que a frustração de não ter atingido o objetivo ainda permanece, como se tivesse deixado algo pelo caminho. Mas me dei conta de que há outras coisas mais importantes para tirar dessa experiência. O sonho de Boston com certeza vai ficar para depois, mas a sensação de ter reagido a toda a situação, mesmo que por poucos minutos, e tirar forças de onde achei que nada mais existia será para sempre.