Notícias admin 1 de julho de 2012 (0) (102)

Maratona de Boston: única e emocionante

A Maratona de Boston detém o status de maratona mais antiga do mundo, realizada sem interrupção desde 1897. Está certo, a primeira foi a da Olimpíada de Atenas em 1896, mas a competição ocorre "somente" a cada quatro anos. É almejada por milhares de corredores pelo mundo e sonho de todos os maratonistas americanos pela exigência de índice. Tem o selo ouro da IAAF por sua organização. Tudo isso é verdade. Mas o que faz de Boston mais do que especial são as pessoas, os moradores da região, as famílias que literalmente abrem suas portas e corações para receber anualmente, na terceira segunda-feira de abril (Dia do Patriota), ao menos 26 mil corredores e seus acompanhantes de todos os cantos do planeta.

A cidade veste a camisa, as cores, a jaqueta da prova. Essa é a primeira diferença básica. A maratona é de Boston, de cada um que vive nos locais cortados pelo percurso. Uma perfeita união entre sociedade civil, governo e patrocinadores. Todos trabalham para que seja um final de semana inesquecível. Desde a hora em que você desembarca no aeroporto. Na esteira para retirada de bagagens, cartazes de boas-vindas aos maratonistas. Pelas ruas, em postes de iluminação, fotos da edição anterior com os atletas de elite. Em outras imagens, os quenianos com crianças da região.

A entrega dos kits, uma verdadeira expo, em um saguão enorme, com estandes de tudo o que você pode imaginar, ocorre em um clima de tranquilidade e agilidade impressionantes. Você não leva mais do que cinco minutos, caminhando calmamente, para retirar o número de peito e chip, para depois pegar a sacola com a camisa oficial e todas as informações necessárias. Depois, é partir para as compras e conhecer as novidades do mundo das corridas.

Neste ano, uma diferença. O primeiro indício de que seria uma prova diferente. Ao retirar o número de peito com chip, o atendente informa: "As condições climáticas estão fora do normal, com muito calor previsto; se você preferir, pode abrir mão de correr neste ano tendo o índice automaticamente renovado para 2013".

Durante o sábado e domingo esse foi o assunto nos jornais, internet e televisão quando se falava da Maratona de Boston. Uma onda de calor nunca imaginada para esta época do ano, ainda em princípio de primavera, após semanas frias… E esses informes foram repetidos exaustivamente, pedindo que as pessoas mais idosas, as com histórico de problemas de saúde, as não aclimatadas ao calor, as que compraram a inscrição via agências de viagem (uma minoria) ou as que estavam inseguras, para não largar. Simples assim.

Isso, porém, não mudou o clima pelas ruas. Pessoas desfilando com jaquetas, camisas e bonés oficiais do evento, correndo pelos parques, tirando fotos na Finish Line, lotando a Expo, conversando nas ruas… Economicamente, a edição deste ano movimentou US$ 137,5 milhões na Grande Boston. Não há como duvidar disso com a quantidade de pessoas carregando sacolas ao sair da feira! Sem falar nos restaurantes e, principalmente hoteis, todos lotados. Nesse caso, uma dica: mesmo indo nos dois primeiros dias à Expo, faça uma visitinha no domingo à tarde, há muita promoção.

No domingo, o jantar de massas da véspera. Ao chegar no Plaza City Hall de metrô (sim, o transporte público é sempre levado em consideração nos deslocamentos necessários), um susto, uma fila imensa, a ponto de querer desistir. Mas fui para o meu lugar. Resumindo a história: em 50 minutos, não só tinha entrado, como jantado com tranquilidade, recebido uma sacola com bolacha, chocolate, iogurte, frutas, água e já estava retornando para o hotel. Tudo perfeito.

 

VAMOS LÁ. Segunda-feira, 16 de abril, o grande dia. Meses de espera. De treinos, alguns bem desgastantes. Cansativos. O momento final. E, logo às 5h10, a confirmação: não é que os organizadores estavam certos? Calor daqueles já na madrugada. Como largaria na primeira onda, fui caminhando até o ponto onde os famosos ônibus escolares amarelos aguardavam. Tudo bem informado, organizado. Só quem tinha o número vermelho poderia embarcar nesse horário. Tudo respeitado. Os ônibus iam parando, lotando e saindo, em fila indiana. Nas ruas, os motoristas dando espaço, ninguém cortando a frente.

Conversas descontraídas agora, desse momento até a largada há um pensamento comum a todos. Os números do peito vão na ordem crescente conforme seu índice. Ou seja, quanto mais baixa a numeração, mais rápida foi a maratona que o qualificou para estar em Boston. Então, não há como não olhar e imaginar: "Aquela mulher é 2000? Nossa". "Olhe aquele, 300!". "Caramba, você vê aquele senhor e nem imagina um corredor, mas ele tem número 1000". São cerca de 50 minutos de ônibus da região central de Boston até próximo ao ponto de largada.

Chegando na Vila dos Atletas, tendas enormes, gramado, banheiros químicos, água, isotônico, frutas, massagens… neste ano sem o frio tradicional. Então, inclua a barraca de protetor solar. Quem mais perdeu com a temperatura alta foram as instituições de caridade, já que nenhum agasalho foi necessário (normalmente são levados até a largada e jogados fora, sendo recolhidos e doados). Nos horários já previstos (e incessantemente informados) os corredores vão caminhando para os currais de largada (são três ondas, com diferença de 20 minutos entre elas, com nove baias cada). No caminho, os ônibus amarelos agora se tornaram guarda-volumes, e em cada janela, uma separação. Por exemplo, na minha, do 5700 a 5799, o que facilita para todos e ajuda tanto na entrega quanto no pós-prova.

 

ENTRANDO NO CLIMA. O deslocamento até a largada marca realmente o início da Maratona de Boston. Você percorre cerca de 1 km passando por entre as casas, já com as famílias nos jardins, fazendo churrasco, dando água, isotônico, oferecendo protetor solar, palavras de incentivo. Nessa parte, há grades laterais de separação. O que prossegue no ponto de largada. Depois da passagem do tapete de cronometragem, nada mais de separações até a milha 24. Nenhuma divisão entre público e corredores.

Porém, no caminho até a largada, uma diferença neste ano. Palavras como "tenha cuidado", "a temperatura está muito alta", "reveja seu pace", ganharam mais espaço do que os tradicionais "parabéns","vamos lá", "tenha sorte". Incluindo os avisos eletrônicos durante todo o percurso alertando para o calor bem acima do normal. Após a execução do Hino Americano, o locutor alerta: "Estamos com 80°F (26,7°C), cuidado". Eram 9h55. Pensei em quem largaria na segunda (10h20) e terceira ondas (10h40). Ao passar pelo tapete de largada, você começa a sentir a áurea de Boston. Gente dos dois lados, gritando, apoiando fazendo uma festa inesquecível.

 

OS BEIJOS. Hoje, não tenho dúvida ao dizer que Boston integra o grupo das cinco Majors (Nova York, Chicago, Londres e Berlim), mas tem uma diferença enorme; é a única com uma feição completamente amadora, não percorrendo pontos turísticos ou regiões dentro das grandes metrópoles que as sediam, mas pelos "vilarejos" do caminho, com aquelas tradicionais casas americanas, sem muros, jardins, árvores, famílias completas, de todas as idades. Crianças cumprimentando os atletas, brincando, dando água, sorvete, geladinho, cubos de gelo, carregando cartazes, esperando parentes ou amigos passarem… apoiando e incentivando todos, sem exceção. Escrevi meu nome no braço, então, foram gritos e mais gritos de "Andre". Inesquecível!

Em uma edição tão difícil como a de 2012, com a prova mais quente em 116 anos, essa presença do público fez ainda mais diferença. Desde a milha 1, os corpos abertos de isotônico e água oferecidos pela organização estavam quentes, alguns acima até da temperatura ambiente. Ficaram no sol muito tempo. Só dava para usar a água para jogar no rosto e cabeça. Água gelada era com a população, além de mangueiras para resfriar os participantes. Outro ponto de destaque é a chegada ao local onde ficam as garotas do Wellesley College. Um quilômetro antes você começa a ouvir os gritos, que vão aumentando a cada passo. Quando chega, estão lá, centenas delas pedindo beijos, abraços, portando cartazes, mantendo a tradição repetida ano após ano.

Sem calor, o percurso de Boston é difícil. Um sobe e desce constante, que vai desgastando, mas com pouquíssimas curvas. Porém, exige demais da musculatura. Com a temperatura deste ano, que chegou aos 31°C, perde-se então qualquer razão. Para chegar ao final, só com muita emoção e sofrimento. Os números exemplificam bem. O balanço geral teve ao menos 1 mil desistências, 2.500 atendimentos durante a corrida e 150 atletas tiveram de ser levados ao hospital. Fora os cerca de 4 mil que teriam optado por não largar. No total, foram 21.554 concluintes.

Os tempos dos vencedores foram altíssimos. Acima do ganhador da Maratona de São Paulo de 2011, 2:11:53, por exemplo. O queniano Wesley Korir venceu em Boston com 2:12:40 e a queniana Sharon Cherop foi a primeira colocada com 2:31:50. Os campeões de 2011 sofreram. Geoffrey Mutai desistiu e Caroline Kilel precisou caminhar a poucas milhas da chegada para descansar. Essa edição 116 de Boston será lembrada por muito tempo. Por boas e más recordações.

 

FARIA (E FAREI) TUDO NOVAMENTE

 

Treinei desde o início do ano para buscar um sub 3h em Boston. Sabia que estava preparado para isso. Não era uma certeza, uma realidade, mas uma probabilidade. Grande. Podemos controlar o que está ao nosso alcance. Em uma maratona, há fatores que fogem do controle e foi o que aconteceu neste ano. Um calor fora do normal. Confesso que, no primeiro momento, achei que os americanos estavam exagerando, mas senti na prática, nos músculos e na cabeça, que não.

Nos primeiros 15 km, corri no ritmo do sub 3h, mas seria um risco incalculável manter essa meta. Até a meia-maratona, optei por um plano B, de tentar acelerar nos 7 km finais. Que nada. Depois da passagem dos 21 km, corri e trotei para completá-la. Sentindo o corpo para não deixar o "radiador" ferver. Não passei mal, não tive tonturas ou dor de cabeça, apenas a boca seca demais, mas vi muitos no limite. A maioria, em algum momento, teve de caminhar.

Sofrimento à parte, Boston é inesquecível. Diferenciada. Merece todo e qualquer esforço (físico e financeiro) para estar na linha de largada e, principalmente, cruzar a Finish Line. Boston é movida pelo coração do público. Feita pelas famílias que abrem suas casas, sua vida, para os corredores por algumas horas. Momentos que ficarão lembrados em minha memória para sempre. Esse é o diferencial. É o staff dos staffs. Com água gelada, apoio irrestrito, sorvete, duchas, esponjas, palavras de incentivo, respeito… Foi esse público que garantiu que não só eu, como milhares de outros corredores, completassem a prova mais quente em 116 anos.

Não há palavras que exemplifiquem Boston. É preciso senti-la. A única maneira é treinar muito, acertar uma maratona para fazer o índice, conseguir a inscrição, separar um bom dinheiro para a viagem (que é cara) e corrê-la. Vale a pena demais. Boston é uma prova para vivenciar, para vestir a camisa e curtir. Eu fechei a prova em 3:26:13, bem acima dos 3:09:28 (Porto Alegre-2011) que me credenciaram à maratona das maratonas. Fiquei em 2.543 no geral (de 21.554 concluintes). Na média, os tempos gerais ficaram de 20 a 40 minutos mais lentos do que o previsto por cada participante, dentro do seu limite.

Ao mesmo tempo, nunca me diverti e me emocionei em uma prova como em Boston. Comemorei demais nos três últimos quilômetros, cruzei a linha de chegada radiante como uma criança e, 100 m à frente, chorei copiosamente. Desidratado, seco, mas as lágrimas vieram do fundo da alma.

Boston é realmente tudo o que falam e mais um pouco. Tanto que já estou pensando onde irei buscar o índice para 2013. Voltarei. Mais de uma vez. Vale cada gota de suor. Agora, por favor, só um pedido lá para cima: aguarde mais 116 anos para repetir esse calor. (André Savazoni)

 

 

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