Cheguei na França dia 16 de novembro. Após uma sexta-feira chuvosa, o sábado foi de sol, com algumas nuvens e temperatura agradável, algo em torno dos 10ºC. Eu havia acordado cedo, tomado um trem em Lyon, onde estou fazendo um curso, para ir a Villefranche, onde peguei o meu dorsal (o número de peito, já com chip). De ônibus, fornecido pela organização, cheguei a Fleurie, cidade de onde partiria a maratona. No estádio em que nos trocamos, várias pessoas fantasiadas, outros colocando roupas mais normais. Para os corredores esfomeados, como eu, café, pão, queijo, chocolate, bolo, frutas.
Já alimentado, vestido e preparado – havia colocado as minhas coisas em um saco com meu número, dado pela organização, para ser recuperado em Villefranche – me aproximei da mesa do Beaujolais Nouveau. É um vinho jovem, feito para ser consumido em, no máximo, um ano A maratona faz parte da festa anual de lançamento da nova safra. Olhei para uma simpática taça, com um vinho vermelho e convidativo. Eram apenas 10 horas da manhã, e eu ia correr uma maratona. Olhei de novo, e pensei: – Dane-se o tempo, isto é uma festa! Estava para começar a mais longa e divertida maratona de minha breve carreira.
Primeira de muitas taças… Após a primeira taça, fui, alegre, para a partida. Eu sabia que o tempo-limite era de 6 horas, logo não era preciso ficar desesperado. No começo, cercado por pessoas com as mais engraçadas fantasias, até que corri num bom ritmo. Mas uns quatro quilômetros para frente, o primeiro posto de revitaillement (abastecimento): até tinha água, mas quem resiste a um bom Beaujolais? Uma taça, um pouco de conversa, uma fotografia, e lá fui eu em busca do próximo posto. E foram 9, todos com vinho, na maior parte das vezes servido em taças. Como beber demais não faz bem para a saúde, eu fui, sistemática e periodicamente, tomando só uma taça por vez. Eu sei, não se deve beber de barriga vazia. Mas, sejamos sinceros, quem misturaria, em sã consciência, gel e um bom vinho? Assim, fui aceitando as comidas saudáveis que iam sendo oferecidas: queijos gordurosos e deliciosos, salame e correlatos, um tipo de torresmo… É lógico, corredor precisa de carboidratos, e assim fui juntando a tudo isso algumas fatias de pão, e, para ajudar na hidratação, uns copos de água.
Em todos os postos as pessoas eram muito simpáticas, e eu acabava perdendo alguns minutos conversando. Entre os postos, a conversa era com os corredores. Primeiro encontrei um grupo de belgas, vestidos de palhaço – usavam roupa branca com golas e botões vermelhos. Contaram que tinham corrido a maratona de Medoc, mas que estavam achando a de Beujolais mais divertida. Disse que era brasileiro, que tinha andado/corrido uma prova de 82 km havia um mês (a Praias e Trilhas), e a Maratona de Blumenau quinze dias antes. Um deles virou para um outro e disse, imitando o Obelix: C'est fou ce brésilien (É engraçado esse brasileiro). Sorri, e fui em frente. Muitos quilômetros depois encontrei um corredor que estava com a camiseta da Marathon de Sables (um dos meus sonhos) e ele disse que, neste ano tinha também feito o Tour de Montblanc. E era daqueles que, como eu, parava em todos os postos para uma taça. Este sim merece, com direito, ser chamado de louco!
Um grupo numeroso e divertido, que encontrei várias vezes, era composto por corredores de Nice, todos com peruca amarela e prancha a tiracolo. Parodiavam, um deles me explicou, um personagem de filme que queria surfar no Mediterrâneo. Conversei com vários deles, e alguns já tinham corrido a Maratona do Rio. Além de terem achado linda a cidade, todos lembravam da "caipirinha". Como vêem, a conversa era bastante etílica.
Por dentro de adegas. Por vezes descíamos escadas para passar por caves (adegas). Em outras contornávamos por dentro de barracões com tonéis de vinho. Passamos por várias estradas asfaltadas – todas com trânsito controlado – e também por belos caminhos, com árvores e vacas pastando ao lado. Tudo absolutamente fantástico, o público sempre incentivando, música em vários lugares – um grupo, quando descobriu que eu era brasileiro, até tocou a "Aquarela do Brasil". Entre taças e conversas a corrida foi indo. Fiquei um pouco cansado depois do km 27, mas nada que um vinho com queijo e pão não pudesse revitalizar. No 32 já estava melhor, mesmo em ritmo de tartaruga. Certamente nunca ri tanto em uma maratona.
No final, já dentro de Villefranche, apesar do adiantado da hora, as pessoas aplaudiam e incentivavam, dizendo courage . E depois ainda dizem que os franceses não são simpáticos… Foram deliciosas 5 horas, 36 minutos e 11 segundos. Na chegada, uma engraçada medalha. Peguei minhas coisas, tomei uma ducha quase quente e tive direito a massagem. E ainda pude ver a entrega dos troféus para as melhores fantasias. Pois é, de fato a prova é uma mistura de corrida com desfile de carnaval. Estava encantado e, apesar de todo o vinho, absolutamente sóbrio. Preciso perguntar para algum médico o que acontece com o álcool quando se corre. Acho que ele se evapora…
Mesmo nesta maratona festiva, teve gente que correu de verdade. O primeiro colocado chegou em 2:28:16. Já o último, que deve ter parado mais tempo nos postos, completou em 6:13:55. Informações sobre a corrida, com os resultados completos, podem ser encontrados no site www.marathondubeaujolais.org
* Paulo Motta Oliveira, assinante de São Paulo, é professor associado da Faculdade de Filosofia Letras e Ciência Humanas da Universidade de São Paulo.