Blog do Corredor zMais notícias Redação 9 de maio de 2024 (0) (807)

Londres, a melhor maratona da minha vida

POR DANIELLE NOBILE | @daniellenobile


Existe correr. Existe correr maratona. Existe correr uma Major. E existe correr a Maratona de Londres.

Confesso que hoje está rolando aquele friozinho na barriga da largada pra escrever sobre essa prova. Eu voltei a correr um ano e meio depois do acidente que me tornou cadeirante. E escrevia sobre toda e qualquer prova que eu corresse. Mas faz alguns anos que eu abandonei esse hábito. Então hoje eu estou com aquele gostinho de estreia. Isso dito, perdoe qualquer doideira que eu escrever aqui. Estou juntando a emoção da melhor maratona da minha vida, com o fato de voltar a escrever, não sendo jornalista nem escritora.

Vamos começar do começo? Essa é minha 17ª maratona e minha 4ª Major. Mas, do mesmo jeito que você corredor com as pernas precisa de qualify pra correr Londres, eu preciso do índice para correr Londres, Boston e Tóquio (nessa ordem de dificuldade).

Em 2023 eu corri três maratonas, e uma delas foi Berlim, minha 3ª Major. Eu pensei que iria conseguir meu sub3 nessa prova, mas eu me empolguei quando o Kip passou por mim no km 11, e sentei o pau na máquina, pensando que eu ia passar na TV correndo ao lado ou atrás dele. Depois a elite feminina passou por mim, eu taquei-lhe pau nesse carrinho (a cadeira de corrida), apareci na TV correndo ao lado delas… e quebrei entre o km 19 e o 20. 

“Peraí, peraí, Dani, para tudo! Cadeirante sub3? Vocês não são mais rápidos que isso?” Como diria aquele personagem do meme “Mais ou menos, mais ou menos”. Tudo depende do seu nível de lesão ou patologia, suas sequelas e mobilidade. No meu caso, eu tenho lesão medular “alta” (C7 incompleta).

Clinicamente sou considerada tetraplégica e tenho sequela disso (não transpiro mais, meu batimento cardíaco não sobe, tenho espasmos e dor neuropática, por exemplo) e funcionalmente sou tetraparética (recuperei movimentos parciais de todos ou alguns dos 4 membros). Então, eu sou muito, mas muuuito mais lenta do que as meninas que têm lesão “baixa” ou amputadas que correm na cadeira de atletismo, como as internacionais Tatiana McFadden e Manuela Schar, ou nossas brazucas velozes Aline Rocha e Vanessa Cristina. Mesmo assim, fora do circuito das Majors, às vezes sai um podiozinho.

Voltando para Berlim, eu sprintei onde não devia, me arrastei do 19 ao 30, e terminei a maratona com tempo oficial de 3h12 (no meu Garmin deu 3h09 porque eles não descontaram as largadas separadas. Falei isso aqui só pela polêmica rs). 

Para me qualificar pra Londres, segundo uma resposta que recebi da organização, eu tinha que ter um sub3. E eu fico fazendo umas maratonas cheias de subida, como Disney, Miami e outras piores. Berlim tinha sido meu RP.

Eu já tinha desistido de Londres 2024, quando minha amiga Beta Brauner, muito conhecida como uma das estagiárias da Majors Brasil, mandou um e-mail para organização e só me avisou depois.

No final de janeiro, quando eu já tinha corrido o Dopey e ainda tinha Miami e Los Angeles, veio a resposta da organização que eu fui aceita como Elite B! Vai Brasiiiiiil!

Começou minha correria atrás de patrocínio. Eu mudei pros EUA há 2 anos e tinha assinado um contrato de 1 ano de patrocínio com uma empresa aqui. Mas o contrato encerraria bem antes da maratona. Consegui um patrocínio pras passagens com a Giant Cargo e pagaria meu próprio hotel. A elite B tem transfer, jantar pré-prova, mas o restante das despesas é por nossa conta, diferente da elite A.

Minha sorte é que a Verinha (Vera Abruzzini, da Majors Brasil, infelizmente caiu e não foi correr Londres comigo, do jeito que a gente tinha sonhado) passou o transfer dela pra mim, porque a organização me mandou um e-mail falando do meu transfer do aeroporto pro hotel quando eu já estava quase dentro do avião!

“E a periodização, Dani?” Poooooois é (com aquele emoji do macaquinho tapando os olhos). Este ano eu tinha o Dopey programado pra primeira semana de janeiro, e para o qual eu treinei específico (e peguei 3º lugar na maratona). Miami, também em janeiro eu corri à convite da CAF e da Woody Foundation. O convite para correr como elite em Los Angeles veio faltando pouco pra prova. E o índice pra Londres também. E eu ainda enfiei a Meia Maratona das Princesas no meio do caminho (que eu peguei 3º lugar).

A maratona de Londres seria o ápice da maior loucura da minha vida em 15 anos de corrida (5 com as pernas e 10 de cadeira): 4 maratonas, 2 meias, 1 prova de 5 km e 1 prova de 10 km em 4 meses.

Cadê meus braços hoje que estou escrevendo esse texto? Não sei! Se você ainda está em Londres e encontrar os dois perdidos por aí, encaminhe-os para Orlando que eu pago o frete!

Não ia ter periodização! Ia ter muito volume de treino, muita vontade, muita alegria, muita dor muscular e muita oração pra não lesionar no meio caminho.

Eu sou uma pessoa apaixonada por História e pela Rainha Elizabeth II, que todo mundo que me segue sabe que eu chamo carinhosamente de Minha Betinha. Ir pra Londres ia unir meu sonho de conhecer a cidade, mais uma estrela na minha jornada pela mandala das Majors e ainda ia correr no dia do aniversário da Betinha. 

E lá fui eu sozinha! Como a confirmação do índice veio em cima da hora, não tinha mais inscrição pro meu marido (estamos correndo as Majors juntos). Então, a ida dele pra Londres ficou pra próxima viagem. Fingers crossed (porque eu já virei britânica) que ele seja sorteado. Oremos! O sonho dele é fazer uma viagem pra qualquer lugar em que eu não leve a cadeira de corrida, que, digamos a verdade, é um trambolhão pra carregar. Antes de ir eu falei pra ele “amor, quando for sua vez de correr, eu não vou correr. Pra que eu vou fazer 2x a mesma Major?” Isso foi antes, né, meu bem? Porque se me convidarem pra correr Londres todo ano, eu vou! O marido e o meu bolso que lutem. Rs

Então deixa eu te contar da prova!

A elite dos cadeirantes entrega suas cadeiras na véspera da prova, para que a organização se encarregue de levá-las pra largada, já que ela acontece longe. No dia da prova, também temos transporte para o local da prova. Escolhi o meu hotel com base no local de saída e chegada do transporte. Chegando no local da maratona, temos uma tenda onde nossas cadeiras já estão separadas de acordo com nosso número de peito (que o cadeirante prende atrás da cadeira). 

Temos também um tempo pra aquecer. E nessa hora eu já vi que o bicho ia pegar por causa do vento, que não estava previsto.

Nós nos alinhamos na largada igual os carros de fórmula 1. No congresso técnico (que acontece no sábado) eles mostram uma lista, onde está seu sobrenome e o local exato atrás, na frente e ao lado de quem você vai largar. Das 4  Majors, eu só tinha participado do congresso técnico em Chicago, e lá tinha essa lista também.

Nos alinhamos e largamos. Logo vi que o trem não ia ser fácil, por causa daquela ventania gelada, e eu sinto muito frio. Uma das meninas cadeirantes, no final da prova, me disse que, das 7 vezes que ela já correu a Maratona de Londres, esse foi o pior vento que ela já viu. Essa também é uma prova bem técnica pros cadeirantes, por causa da quantidade de curvas.

Como eu não sou das mais rápidas, e faço curvas com as mãos, não com o tronco, eu fiz a prova inteira praticamente sozinha. O primeiro pelotão da elite feminina andante me ultrapassou no km 16 e o primeiro pelotão da elite masculina no km 30. Nos últimos 5 km começaram a aparecer alguns corredores perto de mim. 

Mas vamos voltar pra Greenwich, que foi onde eu comecei a me apaixonar pela Maratona de Londres! Desde a largada, tem torcida no percurso inteirinho. Maaas, quando você chega ali (que é na milha 7), tem uma concentração gigantesca de pessoas gritando, batendo palma, cantando, tem fotógrafos, filmagem… e como eu sou cadeirante e estava sozinha, a gritaria foi MUITO maior! Eu sorria tanto que minhas bochechas doíam. Eu fiquei tão emocionada, porque nem em NY (que era minha preferida junto com a Disney) eu vivi isso! O calor humano e a empolgação dos britânicos na rua é uma tradição. Eles fazem isso pela monarquia e fazem isso pelos corredores. Ali eu peguei um gás tão grande, que só de lembrar enquanto escrevo já bateu forte o coração. 

Como eu não sou a pessoa que memoriza o percurso, eu sabia que a Tower Bridge era mais ou menos no km 20 (vídeo acima), mas eu não sabia exatamente onde. Então, meu próximo ponto de emoção foi virar a esquina e dar de cara com a torre láááá em cimão. Eu já comecei a chorar ali embaixo mesmo. Eu esperei a vida toda pra ver aquela ponte e eu ia passar por ela. E tinha muita, muita torcida! E como eu subi e desci a ponte sozinha, a gritaria era muito maior. Eu filmei essa parte com uma insta360. Eu sorria tanto que a bochecha dóia e eu chorava tanto que precisei enxugar o rosto algumas vezes. Foi a maior emoção da minha vida, o melhor momento em todos esses anos de corrida! E também as minhas melhores fotos, porque eu estava sozinha na ponte. Uma delas, inclusive, foi disponibilizada para a imprensa mundial.

Até ali, eu achei que ia conseguir o meu sub3, mas a segunda parte da prova foi bem mais lenta pra mim, de tanto que ventava. Pra vocês terem uma ideia, eu não consegui comer nada na prova, porque se eu tirasse as mãos do aro da cadeira, ela ia pra trás. Algumas vezes que eu tirei só a mão esquerda pra colocar o camelback na boca e beber água, a frente da cadeira foi pro lado com o vento. Mesmo assim, eu não desisti de dar o meu melhor e tentar meu RP.

La pelo km 36, eu estava indo e comecei a encontrar a galera vindo (quem tinha acabado de descer da Tower Bridge). É muito legal ver o pessoal fantasiado, os corredores gritando pra mim também, afinal, eu tava meio que sozinha até agora. Alguns metros antes teve um túnel, e ali alguns meninos andantes me alcançaram. 

Depois de uma leve subida com curva, eu avistei um ponto de torcida para cadeirantes. Há alguns desses espalhados pelo percurso, garantindo maior visibilidade pra quem foi assistir, mas não fica em pé, e não quer correr o risco de não conseguir ver nada. Nesse ponto, me esperando pra gritar muito e me filmar, estava minha amiga britânica Bethany, que corre comigo na Disney.

Quando a gente entra no 38, a emoção e a torcida aumentam. Eu não sei descrever o que são os km finais e a contagem regressiva pela linha de chegada (porque na minha cabeça eu fico “só faltam 6, 5, 4…”).

Como eu já tinha turistado na quinta e na sexta (economizei meus braços só no sábado, me julgue), eu sabia que, quando eu avistasse a London Eye, eu estaria quase acabando. E ali, a torcida é gigantesca, o povo já está nas ruas distribuindo donuts, bolos, frutas, bebida…

Quando eu vi o Big Ben na minha cara, adivinha? Chorei, né?! E nessas horas a gente tira forças sei lá de onde pra melhorar o pace. No caso de Londres, eu tirei foi da torcida mesmo. E aí eu avistei o Palácio de Buckingham e adivinha? Chorei de novo! E dali pro final é literalmente só terminar. Quando eu avistei a linha de chegada: que alegria, misturada com emoção, com as bochechas doendo de tanto sorrir para, com e da torcida. Eu até saí nos destaques da ESPN internacional, porque corri sorrindo e com uma blusa divertida.

Eu não cruzei a linha de chegada sozinha. O pessoal que foi pra fazer sub2h30 me alcançou. Então não estou sozinha nas minhas fotos da chegada. O Pedro, meu amigo e namorado da Beta, foi o handler da rodada. Ele já estava ali me esperando.

Logo ali, tinha uma câmera, e sem saber pra que ou o que era, eu só soltei em inglês “melhor maratona da minha vida. Obrigada, Londres”. Saí em todos os canais de comunicação da Maratona de Londres, no X (antigo Twitter), facebook, reels do instagram…

Com o Pedro (em cujo crachá estava escrito Coach e agora só quer ser chamado assim), estava o pessoal da organização para me levar pra tenda dos cadeirantes da elite. Ali estava nossa cadeira de rodas do dia a dia, nossa mochila com o casaco, e também temos lanche, água, e isotônico. Além, claro, da medalha!

Foi ideia do Pedro que o Fernando Orso, treinador e marido da Aline Rocha, e com quem tive o privilégio de treinar por 1 ano e meio (uma grande parte virtualmente durante a pandemia), colocasse a medalha em mim. Isso foi muito emocionante, porque o pouco que sei sobre correr de cadeira foram o Orso e a Aline que paciente e amorosamente me ensinaram. 

Dali, a organização nos leva de ônibus para o ponto de encontro de onde partimos, que era o meu hotel. Cheguei, tomei banho, lavei e sequei o cabelo e pensei em deitar e me esquentar. Mas eu fui é comer, porque a fome era maior que o cansaço. Fui com minha medalhinha pendurada, encontrando vários corredores pela rua. E também ganhei uma taça de champanhe do restaurante para brindar minha conquista. Muitos restaurantes nas cidades das Majors oferecem um lanche ou uma bebida grátis, no dia da maratona, pra quem leva a medalha. Fique de olho!

Meu RP não veio, muito menos o índice pra Boston. Meu tempo oficial foi 3h23. Por causa da ventania, não achei muito ruim, mas sei que tenho potencial pra melhorar. E, se eu quiser minha mandala, preciso!

Agora temos 2 jornadas pela frente. A primeira é justamente conseguir os índices pra Boston e depois Tóquio (que pros cadeirantes é o índice mais difícil e a maratona que tem menos vagas – pois é, o índice não é garantia). Para isso, precisarei escolher provas de maneira mais estratégica, sem tantas subidas.  A segunda, que na verdade é minha próxima jornada, é a Maratona Pour Tous, na Olimpíada de Paris! 10 dias antes de embarcar pra Londres eu fui sorteada e, até onde sabemos, sou a única atleta brasileira com deficiência que estará nessa prova.

Pra todos que estarão lá, correndo ou torcendo, nos vemos nas Olimpíadas de Paris!



Danielle Nobile é a primeira mulher cadeirante triatleta do Brasil. Já completou 17 maratonas. É mentora de autoconhecimento e hábitos @destrave.suavida @daniellenobile

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