Releitura Redação 17 de fevereiro de 2019 (0) (188)

London, London

Vida corrida – Lauter Nogueira  –  lauter@lauternogueira.com.br

London, London
“I’m wandering round and round nowwhere to go
I’m lonely in London and London is lovely so
I cross the streets without fear
Everybody keeps the way clear
I’m wandering round and round nowwhere to go
While my eyes
Go looking for flying saucers in the sky
Yes, my eyes
Go looking for flying saucers in the sky…”***

A madrugada se espalha preguiçosa pelas ruas e esquinas da minha cidade sitiada. Traz com suas sombras e indefinições, um cessar fogo cujo silêncio cala fundo em nossas almas assustadas. Tento aproveitar esse armistício e convencer minhas olheiras que é chegada a hora de ceder ao cansaço e, palamordedeus, dormir enfim…
Dormir? Como alguém pode pensar nisso enquanto corre em ritmo desesperador, seguido por uma verdadeira multidão, por ruas totalmente desconhecidas e… pera aí… aquilo ali não é a tal da London Tower? Ops, não posso me desconcentrar, pois eles estão mais próximos, tenho que correr mais rápido e… gente, eu conheço aquele cara ali, o magrela compridão, com ar de nobre africano. E aquele baixinho, grudado no…no… meu Deus, eles estão chegando em mim e eu não sei o que fiz, onde estou e nem porque corro tanto deles!!!
Estico minhas pernas, minha nuca duela com o travesseiro, e vencida tenta se adequar à anatomia disforme e balofa, mais balofa do que disforme e, sendo assim, me entrego e tento dormir. Não, definitivamente, não dá! As noites de abril me trazem uma companheira incômoda, inquieta e ansiosa. A insônia me domina noite após noite. Afinal, abril é o mês de uma verdadeira enxurrada de maratonas. Abril nos traz Paris, Roterdã, Boston e…Londres!!! Consegui sobreviver às 3 primeiras, mas não sei se suporto a espera por Londres, afinal, os melhores deste mundo estarão correndo lá. Deste mundo e de outros também, porque correr 42 quilômetros abaixo de 3 minutos por quilômetro, faça-me o favor, não é coisa pra gente que nasceu por aqui, esse minúsculo planetinha que teima em dar voltas em torno do Sol…
Só sei que corro pelas ruas vazias de carros e cheia de gente atrás de mim. Só sei que nunca corri tanto na minha vida. Só sei que carrego um número pendurado no peito, peito que arfa e geme e dói quase tanto quanto as minhas pernas. Minha visão está meio turva, mas dá pra ver direitinho os contornos da bela Abadia de Westminster. West.. o quê? O que restava de fôlego e lucidez acaba de mergulhar nas águas turvas do …Tâmisa!!!!! E com eles a sanidade vai junto. Tento me recompor, afinal acabo de descobrir que estou em Londres, correndo, não, LIDERANDO, a maratona de mais alto nível que já se sonhou produzir, e pelo que me lembro, estou nos quilômetros finais. Preciso me concentrar, pois sinto que Tergat e Geb começam a querer se desgarrar de Baldini e Gharib, trazendo junto Khannouchi, Felix Limo e Meb. Noto, com um olhar rápido para que não percebam que estou preocupado com a preocupante aproximação, que este grupinho metido a besta resolveu acabar com a minha festa…
Tento, de olhos fechados, lembrar dos dramáticos momentos acompanhados de perto das três primeiras. Não é difícil, pois fazem poucos dias que as acompanhei. A insanidade do clima transformando Paris e Roterdã num inferno (literalmente, para os europeus) em plena manhã primaveril. E Boston, essa centenária e charmosa senhora, açoitada por uma tormenta que a transformou numa doida varrida, sem rumo, eira, beira e juízo. Aos poucos vou relaxando o corpo e o sono toma as rédeas de minha mente. Sorrio timidamente e me entrego de vez…
Sorrio timidamente e penso entre os dentes: só me entrego morto!! Sei que falta pouco para a chegada, pois o público que me aplaude nas calçadas é cada vez maior. Tento acenar agradecendo, mas ameaça uma câimbra no meio do braço. Esquece! Tenho que poupar energia. Por falar nisso, presto atenção à minha mecânica de corrida. Sinto que continuo correndo descontraído, apesar de parecer que fui atingido por balas de borracha na parte de trás das minhas coxas. Fico meio preocupado, afinal, a polícia de Londres tem o desagradável hábito de atirar com balas de verdade em suspeitos oriundos do 3º Mundo. Será que em vez de ser agarrado por um ex-padre daqui de perto, serei abatido a tiros? Não, essas dores são normais em fim de maratona. Estou correndo num ritmo mais forte do que o normal, pois sei que essa é a prova “da minha vida” e virei caça dos melhores maratonistas do mundo, afinal estou liderando a….ei! quem é esse cara ali na frente? Os “batedores” vão abrindo caminho pra ele, o carro madrinha com o enorme relógio digital também, TEM UM CARA NA MINHA FRENTE!!!! E agora? Além de me preocupar em não ser caça, terei que virar caçador…
Uma sensação gostosa vai dominando meu corpo ainda relutante em se entregar. Sim, porque minha mente, essa vadia, já se entregou há muito tempo. Mas é questão de tempo. Já, já deposito minhas armas aos pés de Morfeu. Enfim, o fim está próximo…
Sim, sinto que o fim está próximo. O Palácio de Buckingham se descortina ameaçadoramente ali adiante. E aquele cara ali na frente. Deve estar a uns, no máximo, 30 segundos de mim. Mas eu estou no limite, não dá pra ir mais forte, posso não chegar! Ele não dá pinta de que esteja sofrendo tanto quanto eu, tá correndo solto o… deixa pra lá, ele deve estar disfarçando. Ih, eu conheço esse estilo, conheço bem mesmo. Aquela camiseta amarela não é a do… MARILSON???? Eu estou a alguns minutos de completar a Maratona de Londres em segundo lugar, grudado, tudo bem exagerei, perto de ninguém menos do que o Marilson dos Santos. Já posso ouvir o badalar dos sinos da igreja contígua ao Palácio. Que sinos esquisitos são esses? Parece mais um telefone tocando! É UM TELEFONE TOCANDO!!!!!
Pulo da cama rapidamente, minhas pernas doem muito, sabe-se lá porque. Empapado de suor e com as mãos e a voz trêmulas, atendo ao telefone… É o editor da minha revista lembrando da data da entrega da minha coluna – “E nada de tentar prorrogar a entrega para após a Maratona de Londres, pois não vai haver tempo”… diz o Tomaz, com voz paternal e rígida (afinal, ele sabe com quem está lidando). Desligo o telefone e volto pra cama, frustrado. Fiquei sem saber quem ganhou Londres. Não sei se consegui suportar o ataque feroz daquelas feras todas. Também não pude descobrir se consegui acompanhar o ritmo do Marilson até a linha de chegada. Só me resta tentar voltar a dormir, quem sabe não continua…
De alguém que sonha por aí.
** London, London (Caetano Veloso)

Veja também

Leave a comment