Ao decidir fazer a K42 e já sabendo de suas dificuldades (uma maratona cross country), realizei um treinamento de última hora, por apenas 2 meses, mas que costuma ser o suficiente para mim, em função de minha larga experiência em maratonas. Além de aumentar a rodagem semanal, procurei fazer percurso com subidas e descidas, porque sabia que a K42 tinha uma altimetria bastante dura.
Até o bosque da cidade universitária da USP na capital paulista, um percurso de terra de 1 km, com vários sobes e desces, foi usado com o propósito de condicionar o corpo para o que viria, no dia 14 de novembro. Só que eu estava absolutamente longe da realidade que enfrentaria nas montanhas de Angostura.
Viajamos na quinta, de São Paulo para Buenos Aires, onde trocamos de aeroporto e pegamos vôo para Bariloche, e depois de van para Villa La Angostura, a 1 hora de distância. A cidade é muito agradável, pequena e bastante dispersa. Ou seja, há uma área central, com uma rua principal de 5 quadras, outras ao lado, com comércio, hotéis e restaurantes, porém a maior parte da capacidade hoteleira (assim como de moradias) está nos arredores, distribuídas por área verde, sempre com vista para o enorme lago Nahuel Huapi. É uma cidade nova, bem cuidada, voltada para o turismo, notadamente para a pesca esportiva (de trutas), mas também esqui na neve, passeios de bicicleta, caminhadas etc.
O visual é maravilhoso, pelos cumes nevados, mesmo nesta época do ano com temperaturas agradáveis (8 a 15 graus), hotéis e pousadas no gênero "chalés de montanha", as sempre deliciosas carnes argentinas e as papas fritas, vinhos excelentes, e tudo a preço menor do que os que pagamos por aqui.
VOLTANDO À PROVA… Na véspera da maratona, a retirada do kit (simples, com camiseta, folhetos, número e sem chip) foi tranqüila. E no local apenas uma feirinha modesta, de roupas e acessórios. À noite estava marcado um encontro em um ginásio para se passar informações técnicas, mesmo porque nada vinha no kit. E a presença dos corredores foi maciça, apesar dos informes se resumirem ao que a organização já havia nos passado por emails. Chamou a atenção o lembrete de que, como no ano anterior, não seria obrigatório correr com mochila de água, o que não deu para entender, porque estavam previstos postos de água a cada 5 km, mais 2 de Gatorade, 1 de fruta e outro de gel.
Mas no dia seguinte, na largada, o visual era curioso: 1/3 dos participantes, notadamente da maratona (havia outra prova de 15 km), estavam usando a tal mochila ou cintas com recipiente de água ou outros líquidos. Pensei: será que eles não confiam no abastecimento anunciado?
Tinha decidido levar apenas 2 geis de carboidrato e correr com uma blusa especial para frio e em cima dela a camiseta do evento, que alguns diziam ser obrigatório e outros não. Ao que parece, em outras edições (esta foi a 7ª) os corredores tinham que usar a camiseta (assim como a mochila…), mas agora não mais. Só que no dia quase todo mundo estava com a camiseta azul (dos 42 km) ou a branca (dos 15 km).
A largada é afastada da cidade, à beira do lago, seguindo os corredores para lá de ônibus/van da organização, táxis, carros dos amigos etc. A estrutura no local era bem simples, com poucos banheiros químicos, nenhum abastecimento, nem proteção (barracas) para o frio, vento, chuva. Mas o tempo ajudou, e até o sol saía de vez em quando.
LARGADA LENTA E PIOR DEPOIS… Saímos pontualmente às 10 horas, com os maratonistas à frente e logo em seguida os da prova menor, sendo em torno de 1.400 nos 42 km e 600 na de 15 km. Contudo, o começo já era em forte subida e com exceção de alguns poucos participantes na frente, todos seguiram caminhando. Após esses primeiros 200 metros, foi possível começar a correr, apesar da estreiteza da estrada de terra/pedrinhas, mas novamente a corrida virou uma caminhada, ou melhor, uma escalada bem lenta em fila indiana, por trilha estreita, passando por sobre troncos caídos, desviando-se de galhos etc.
E assim foi por um pequeno trecho, quando finalmente conseguimos iniciar a corrida por estrada. Só que a "moleza" de apenas correr acabou mais uma vez e entramos novamente em bosque, onde se começava subindo penosamente, sempre em fila, para, ao se chegar no topo, iniciar a descida, quando literalmente se despencava por trilhas igualmente estreitas, com grande risco de queda, não sendo possível parar, porque atrás de você vinha uma fileira também despencando.
Esta parte foi para mim a mais preocupante, não pela dificuldade, já que bastava deixar o corpo seguir morro abaixo, mas pelo risco de queda. Aliás, o brasileiro com mais chance na prova, Gilliard Pinheiro, vencedor da K42 de Bombinhas, SC, em agosto, torceu o pé logo e foi obrigado a abandonar.
ESCALANDO E DESPENCANDO… Finalmente acabou esse trecho de "sendero", como dizem em espanhol, e voltamos a correr "normal". Ainda tínhamos a companhia dos camisetas brancas, às vezes um pouco afoitos demais para as estreitas trilhas, forçando a passagem. Mais aí nos separamos e… novamente um longo trecho de bosque nos esperava, para escalarmos e despencarmos depois.
Não sentia dificuldade nem em uma coisa nem outra, porque nas subidas (sempre íngremes) apenas se caminhava, um atrás do outro, e depois na descida fazíamos valer a lei da gravidade, deixando o corpo seguir seu caminho natural, de queda, trilha abaixo, apenas com muita atenção no chão, para não tropeçar em uma raiz, para não entrar no sulco da trilha, para pegar o lado menos perigoso do caminho. Me lembro de seguir atrás de um Adidas amarelo por dois trechos, e me marcou porque o que dava para olhar era apenas para o pé da frente, acompanhado-o, desde que ele não escorrega-se ou desse uma falseada, ou seja, era necessário estar sempre fazendo a escolha certa do caminho.
Por duas ou três vezes quase caí e fui começando a ficar um pouco irritado com aquela "não corrida". Pensava que em nenhum momento de minha preparação tinha feito algo semelhante e também veio à mente minhas participações na Volta ao Cristo de Poços de Caldas (último domingo de janeiro) onde se pega 4 km de descida por estrada de terra, mas menos acentuadas do que em Angostura, e no dia seguinte as pernas ficam terrivelmente doloridas.
Mas fora os trechos de sendero, o resto ia bem, estava disposto, curtindo a paisagem quando a prova pegava novamente a estrada. Pouco momentos com platéia, mas quando acontecia havia sempre muita vibração, apoio e participação dos familiares e amigos. Então aconteceu!
AS CÂIBRAS E O FIM DA PROVA… Passei pela marca dos 20 km e comecei uma subida na estrada, quando veio uma fisgada na coxa direita e uma cãibra forte me obrigou a parar e procurar não cair. Aí, a outra coxa decidiu mostrar que também não tinha gostado daqueles trechos de descida no sendero, reclamando por não terem se preparado para esse esforço.
Como tenho uma história bastante sofrida de cãibras em maratonas, especialmente se insisto em continuar quando elas aparecem, vi que se tentasse seguir em frente a situação com certeza iria piorar. Ao mesmo tempo, descobri que não estava muito longe de chegada, já que por ali passavam os corredores dos 15 km e então fui trotando/andando para lá, tirando a camisa e o número.
Foi a melhor coisa que podia ter feito, porque mesmo tendo corrida/escalado/despencado por "apenas" 20 km, nos dias seguintes minhas pernas estavam sofridas, me obrigando a descer escada de lado. E lembrando que a segunda parte da K42 é um pouco mais dura ainda.
Que lição tirei do episódio? Acredito que provas do gênero da K42, em que boa parte compreende caminhada por íngremes subidas e descidas (trekking), é necessário se fazer um treinamento específico, até para gostar da prova, ao sofrer menos.
No dia seguinte, conversando com Diego Zarba, um dos organizadores, comentei que os trechos em sendero poderiam ser reduzidos, para haver maior prazer no desafio da K42. E também para uma maior segurança dos participantes, uma vez que nas trilhas fechadas não é possível dispor de qualquer suporte médico (como aliás não havia…).
Diego comentou que iria avaliar a sugestão da revista, feita com o propósito de tornar a corrida mais interessante e menos sofrida, e dessa forma atrair maior número de brasileiros, que neste ano chegou ao recorde de umas quinze pessoas. O organizador lembrou que os argentinos estão acostumados com esse tipo de prova (trail run) e se reduzissem muito os trechos em sendero poderia a K42 perder sua característica de maratona de "aventura". E essa realidade se confirma com os inúmeros eventos de subidas de montanha, ultra de 100 km por trilhas e outras do gênero, em folhetos recebidos dentro do kit, ou seja, uma situação absolutamente distinta da brasileira, em que provas de montanha ainda são raríssimas.
Porém, como todo ano a organização faz pequenos ajustes no percurso em função de alterações viárias, obras e até por questões climáticas, pode ser que no dia 13 de novembro de 2010 a K42 seja menos dura e ainda mais linda. Aliás, ao não fazer a segunda parte da prova, acabei por não usufruir das melhores vistas, notadamente no alto da montanha, onde fica uma estação de esqui e por onde os participantes correram com um pouco de neve ao lado.
COLOCAR NA AGENDA?
A revista considera que a K42 de Villa La Angostura pode ser uma excelente opção para brasileiros querendo conhecer uma região de montanhas com ares europeus, mas com preços bem em conta. Apenas como exemplo, um belo almoço de churrasco de cordeiro patagônico, com acompanhamentos e uma garrafa de bom vinho sai por apenas R$ 60 reais para duas pessoas. No caso de equipes, então, é muito interessante, pois o grupo pode ficar em uma das inúmeras charmosas pousadas um pouco afastadas da cidade, com um atendimento exclusivo.
FESTA NO SÁBADO
Mesmo com a maioria chegando com tempos bem altos e bastante desgastados (terminaram 1.253 dos 1.400 aproximadamente que largaram), a maioria esteve na festa de confraternização, com música, lanche e bebidas gratuitas, que começou às 22 horas e acabou às 4 horas! E muita gente dançando e pulando, bem no jeito argentino de festejar.
VITÓRIA ARGENTINA E BRASILEIRA
A prova masculina teve o brasileiro Giliard Pinheiro, ganhador da etapa de Bombinhas do circuito K42 (as outras foram nas Ilhas Canárias e no Sahara), na frente desde o começo, mas na altura do km 15 ele sofreu uma torção no pé e teve que abandonar. Aí, Mohamed Karin, de Mendoza, tomou a ponta e assim foi até a chegada, terminando em 3:07:24, seguido do também argentino Wuintulen Hugo (3h10) e do brasileiro José Virginio de Moraes (3h15), que tinha sido 2º em Bombinhas.
Já no feminino, a liderança da brasileira Débora Aparecida de Simas (campeã em Santa Catarina) esteve ameaçada por alguns trechos da prova, mas no terço final ela tomou a ponta, para não mais perder, completando em 4:11:11, vindo depois a argentina Andrea Doblas (4h15) e a espanhola Guacimara Garcia (4h18).
Chegaram 1.253 corredores, os últimos com mais de 9 horas. Os resultados completos, fotos e mais informações sobre a K42 de Villa La Angostura podem ser acessados no site www.patagoniaeventos.com.ar



