A Etiópia é um país africano que por séculos foi governado por uma das mais longas dinastias da história, originada no século XIII e ligada, antes disso e por tradição, aos míticos Rei Salomão e Rainha de Sabá. Seu último imperador foi Haile Selassie I, que reinou soberano de 1930 a 1974. Agora, um novo imperador etíope, este de origem humilde e plebéia, se consagra como o maior maratonista de todos os tempos: Haile Gebrselassie, quase xará do imperador falecido – uma simples coincidência?
Dia 28 de setembro, na 35ª edição da Maratona de Berlim, na Alemanha, ele não só venceu a prova pela terceira vez consecutiva (feito inédito), como também melhorou em 27 segundos o recorde mundial da distância, que já lhe pertencia, conquistado ali mesmo na capital alemã, em 2007 – 2:04:26. Sua nova marca, 2:03:59, faz agora os amantes do esporte sonhar e divagar em duas frentes: primeiro, até onde pode ir este fabuloso imperador etíope das ruas e pistas, que em Berlim quebrou uma marca mundial pela 26ª vez na carreira, aos 35 anos de idade? Segundo: ainda estaremos vivos para um dia ver um ser humano correr os 42,195 km em menos de duas horas, se é que isso é mesmo possível? Atletas únicos, como Gebrselassie, alimentam os nossos devaneios.
Divagações à parte, em Berlim tudo conspirou para a quebra do recorde: o percurso rápido, o clima perfeito, um dia bonito e ensolarado, com a temperatura variando de 10 (na largada) a 14 graus (chegada), e uma tropa de coelhos de elite, composta por quatro quenianos, todos prontos para ditar um ritmo alucinante, o que fizeram à perfeição, passando a meia em 1:02:04 – 25 segundos mais rápido do que em 2007, um bom presságio. No km 37, o queniano James Kwambai (não era coelho) que permanecia colado em Haile – sua melhor marca até então era a modesta 2:10:20 -, não conseguiu acompanhar uma arrancada do etíope e deixou o caminho livre para o espetáculo solo de Gebrselassie pelas ruas de Berlim.
Ele, que sempre larga numa maratona pensando em quebrar nada menos do que o recorde mundial (e pode fazer isso sem parecer pernóstico, afinal trata-se do imperador!), assumiu a ponta da prova e manteve o ritmo até o fim, aliás, até aumentou, já que fez a segunda metade nove segundos mais rápido do que a primeira. "Estou tão feliz! Tudo esteve perfeito, o clima, os coelhos… Duas semanas atrás eu tive um problema, corri 20 km 40 segundos mais rápido do que na preparação do ano passado. Mas tive cãibras depois e perdi uma semana de treino. Retomei os treinos há uma semana e hoje estava com algumas dúvidas, mas no fim tudo deu certo. Esta é realmente a minha cidade da sorte", declarou o campeão logo após cruzar a linha de chegada.
Kwambai ficou em segundo, com a excelente marca de 2:05:36, a sétima mais rápida da história e uma melhora pessoal de quase cinco minutos. Em terceiro, chegou outro queniano, Charles Kamathi, com 2:07:48. Ele é um velho conhecido – e rival – de Gebrselassie: no Mundial de 2001, em Edmonton, venceu os 10.000 m, deixando Haile com a medalha de bronze, o que quebrou uma seqüência de quatro títulos mundiais consecutivos de sua majestade na distância. Com o novo recorde de Gebrselassie, Berlim também se consagra: é incontestavelmente uma maratona rápida, palco de sete quebras de recordes mundiais, sendo quatro no masculino, de 1998 – quando Ronaldo da Costa marcou 2:06:05 – para cá – o outro recordista foi o queniano Paul Tergat, com 2:04:55, em 2003. No feminino, foram outras três quebras, em 1977, 1999 e 2001 – mas o recorde atual (2:15:25), da britânica Paula Radcliffe, foi batido na Maratona de Londres, em 2003.
No feminino, em Berlim, vitória da alemã Irina Mikitenko, 36, com 2:19:19, que também melhorou sua marca pessoal, em mais de quatro minutos, e estabeleceu novo recorde feminino alemão para a maratona. Conservadora, Mikitenko, que é originalmente do Cazaquistão e foi segunda colocada em Berlim, em 2007, quando estreou em maratonas, deixou que a etíope Askale Tafa e as quenianas Rose Cheruiyot e Helena Kiprop liderassem a prova até o km 30. Tafa terminou em segundo lugar, estabelecendo sua melhor marca pessoal, 2:21:31. Com a vitória, Mikitenko lidera agora a disputa pelo prêmio feminino da World Marathon Majors, já que vencera a Maratona de Londres, em abril, com 2:24:14.
Também sucesso entre os "normais". Se tudo conspirou para o sucesso dos atletas de elite, entre os amadores brasileiros que correram também houve muitas melhoras pessoais. Marcelo Jacoto, 29, funcionário público de São Paulo (capital), foi a Berlim correr a sua 11ª maratona e terminou com novo recorde pessoal, 3:57:34. "Foi minha primeira abaixo de 4 horas", festeja. A enfermeira Rita Padilha, 42, de Campinas (SP), vinha de uma experiência traumática em Chicago, em 2007, quando o forte calor fez com que o seu tempo de estréia na distância fosse de mais de cinco horas. Com 4:35:05 em Berlim, era só alegria. "Estava parada por causa do início de uma fratura por estresse, mas não senti nada até o km 36, depois terminei na raça, com o apoio do público, que é fantástico aqui em Berlim", comentou. Seu marido, o médico Hélio Padilha Junior, 45, concluiu sua sexta maratona em 4:10:39 e também era só elogios: "Prova nota dez, tinha até chá nos postos de hidratação". Outro médico, Manoel Suenaga, 62, de São Paulo, quer concluir o circuito das cinco majors. Depois de Chicago e Nova York, em 2007, e Boston, em 2008, foi a Berlim e não se arrependeu, completando em 4:43:32. "Não houve confusão na largada, os grupos divididos por tempo saíram na hora certa, sem atropelos; agora só falta Londres e já estou inscrito para 2009", comemora.
De Brasília, o ortopedista Sávio Neri, 52, foi a Berlim correr sua primeira maratona européia e a 16ª da carreira, que terminou em 3:59:20. "Evento 100%, até melhor do que Nova York, que já corri nove vezes. Pena que tive uma enorme bolha no pé, o que frustrou meus planos de fazer entre 3h30 e 3h45", lamentou. A empresária carioca Adélia Ribeiro Filha, 49, gostou tanto de Berlim que já repensa o fim da carreira: "prometi que esta seria a minha terceira e última maratona, mas terminei tão feliz que não descarto uma próxima", comemora, com o tempo de 4:50:45. Seu sócio, Fernando Castro, 50, também do Rio de Janeiro, correu em Berlim a sua quarta maratona e recomenda a prova, mesmo tendo concluído acima do planejado, com 4:21:29, devido a uma contusão. "O apoio do público foi fantástico e o percurso é muito bom, além da organização perfeita", elogia.
O empresário paulistano Adilson Bachini, 42, apesar de não ter melhorado seu tempo, terminou em 4:11:47 a sua quinta maratona. "Achei tudo ótimo, nada a reclamar, meu técnico previu 4h10, mesmo perdendo ritmo a partir do km 32, deu para chegar bem", analisa. Também da capital paulista, o engenheiro Celso Bruder, 56, foi mais feliz e conseguiu em Berlim sua primeira maratona sub 4h, com 3:57:58, a 14ª da carreira. "O ponto forte foi o apoio do público e das bandas de música no percurso", aponta. Com tanto sucesso de público e crítica, Berlim consolida-se com uma grande festa esportiva para maratonistas de todos os níveis. Mas a pergunta que todos se fazem é uma só: o imperador Haile estará pronto para mais um show com recorde em 2009? Quem viver, verá.
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