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Fórmula mágica de treinamento? Não sonhe, porque ela não existe!

FISIOLOGIA – por Fernando Beltrami – Maio 2011

Corredores de todos os níveis estão se preparando para alguma prova neste exato momento, como os mais de 2 mil que farão a Maratona de Porto Alegre, dia 22 deste mês. Possivelmente teremos então cerca de 2 mil planilhas cumpridas e postas à prova. Qual delas irá se sair melhor?

No meio de tantas possibilidades, há de haver treinos e periodizações melhores e piores, que podem estar sendo aplicados ou não para os corredores apropriados. Este ponto é importante, pois também é necessário que se reconheça que pessoas diferentes podem exigir métodos e tipos de trabalhos diferentes, e uma periodização muito bem feita, de acordo com todos os preceitos e princípios do treinamento físico, pode simplesmente não ser adequada para um determinado corredor, por estar acima ou abaixo de seu nível de condicionamento, resultando em lesões ou sub-aproveitamento da capacidade do atleta. Ao se remover este problema da equação, e falando apenas em planilhas que estão adequadas aos corredores a que servirão, continuamos às voltas com a pergunta chave: existe fórmula mágica para treinamento?

A resposta depende do conceito de fórmula mágica. Se for uma planilha única, superior a todas as outras, que irá levar um corredor ao melhor resultado possível, só se pode dizer que não. Ninguém sabe dizer ao certo se talvez duas semanas atrás você tivesse corrido 30 ou 33 km, ao invés de 31, sua performance na maratona teria sido melhor ou pior do que foi. Por outro lado, se ampliarmos um pouco o horizonte, felizmente já sabemos que algumas coisas são melhores que outras, ou melhor ainda, “certas” ou “erradas”, o que pode ser encarado como uma fórmula pelos mais otimistas.

Talvez mais importante do que saber exatamente o que fazer (de volta a discussão sobre fazer o longo de 30, 32 ou 34 km), saber o que não fazer é o que faz a diferença. Ainda no exemplo anterior, um longo máximo de 25 km ou então de 45 km não são uma boa idéia, e a partir da noção do que é errado, tanto para um lado quanto para o outro, se chega naquela faixa nebulosa do que é adequado.

“Método” de tentativa e erro

Mas como saber o que não fazer, já que estamos começando por este ponto? Existem duas possibilidades, com resultados semelhantes, mas com caminhos bem diferentes. Uma alternativa é simplesmente tentar a sorte, no melhor sistema de tentativa e erro. A sequência de tropeços irá eliminando as formas “erradas” de se treinar e irá por fim culminar em um sistema de treinamento ideal ou próximo disso. Dado que treinadores podem ter a seu dispor tempo e “cobaias” de sobra para tal, não é de todo surpreendente que alguns realmente optem por este caminho, infelizmente nem ao menos aprendendo com seus erros e continuando a repeti-los sistematicamente.

Corredores, entretanto, possuem muito menos possibilidades de erro, e entrar numa canoa furada pode custar uma temporada inteira de treinos disperdiçados ou até mais do que isso. Para escapar dessa situação, a outra alternativa, por sinal muito mais segura, é simplesmente se debruçar sobre os relatos, planilhas e histórias de corredores e treinadores do passado e do presente, e analisar onde estão seus erros, acertos e a partir disso criar um modelo que pareça ser o ideal. É claro que a partir deste ponto se entra no mesmo sistema de tentativa e erro da primeira alternativa, mas se começa no jogo em um estágio muito mais avançado, onde as probabilidades de erros grosseiros são mais limitadas.

Neste cenário, treinadores enfrentam um problema. Imagine-se tentando escrever um trabalho sobre algum tema. Você busca por informações na internet, livros etc. Após ler sobre o assunto é comum ocorrer que o seu trabalho fique inevitavelmente parecido com outro semelhante, que você acabou de ler. Treinadores enfrentam a mesma situação: após aprender com os grandes técnicos do passado e do presente, entender o que alguns ícones da corrida fizeram de certo e de errado, como fugir de uma simples cópia e criar um modelo realmente original? Mesmo que o trabalho final fique mais ou menos parecido com o de quem julgamos ter uma visão próxima do ideal, isso não necessariamente é ruim. Se um sistema existe, e comprovadamente dá certo, qual o problema de adaptá-lo à nossa realidade, fazendo pequenos ajustes, mas mantendo a base original?

Treinadores X cientistas

Tentando fugir deste plágio involuntário, a saída encontrada passa a ser a tentativa de inovação. Mas de onde vem a inovação no treinamento? Esta talvez seja o maior conflito entre os treinadores e os cientistas do esporte, pois existe um certo atrito por parte dos treinadores que muitas vezes sentem que os ditos cientistas não oferecem muito para melhorar o seu trabalho, muitas vezes se limitando a explicar o porquê do trabalho do treinador ao invés de lhe oferecer ferramentas para melhorá-lo e enfim “inovar”.

Um exemplo clássico desta situação se deu no salto em altura, quando se acreditava que o salto “rolo” era o melhor método para passar sobre o sarrafo, e diversas teorias científicas sobre impulsão e mecânica se originaram de tal idéia, até que um atleta resolveu revolucionar a maneira de saltar, pulando de costas sobre o sarrafo. Hoje este é o padrão do salto em altura, e novamente existem inúmeras explicações de porquê esta é a melhor maneira de saltar, mas quase não há trabalhos propondo novas formas de salto.

Em vista disso, muitos treinadores possuem certo ressentimento em relação à ciência, remetendo àquela idéia clássica de alguém sentado atrás de tubos de ensaio dando palpites sobre um mundo que nunca viu de verdade. O que muitos treinadores falham em perceber é que eles mesmos foram treinados em universidades por “cientistas”, leram e ainda lêem os livros escritos por eles, e que desde 1923, quando se realizaram os primeiros trabalhos medindo consumo de oxigênio durante a corrida, sempre que se fala em treino aeróbio, limiares, resistência, fadiga, lactato ou termos do gênero, há por trás disso alguns anos de esforço que alguém dedicou em seu trabalho de mestrado, doutorado etc. Alguns técnicos também falham em perceber que ao analisar os erros e acertos de planilhas e métodos de outros treinadores, desenvolvendo hipóteses de melhorias e testando-as, também tornam-se, por assim dizer, cientistas.

Princípios a serem respeitados

Ainda na idéia de tentar algo novo, de destacar-se da massa de treinadores formados todos os anos, há uma limitação a essas possibilidades pelos princípios básicos do treinamento esportivo, sendo os principais deles (a quantidade irá depender do autor escolhido, mas estes são constantes em quase todos): sobrecarga, especificidade, reversibilidade, individualidade biológica e variação de estímulo. A mensagem aqui é que um treinador pode inventar o que quiser (ou quase!), desde que não desrespeite estes princípios básicos, ao menos até que alguém os prove errados.

O princípio da sobrecarga, por exemplo, diz que o corpo tem que ser constantemente submetido a cargas maiores (dado o repouso adequado), para que o processo de adaptação não fique estagnado. Este é o princípio que irá tratar das questões de volume, intensidade e frequência de treinamento. O princípio da especificidade diz que o corpo se adapta àquilo para o qual é treinado. Apesar de existir algum grau de “efeito cruzado”, se treina um corredor usando corrida e um nadador com natação.

Da mesma forma exercícios de força e explosão são usados para esportes de velocidade e exercícios de resistência para esportes de longa duração, numa visão simplista. O princípio da reversibilidade é fácil de entender, e simplesmente diz que o organismo possui a tendência de voltar ao seu estado original. Ou seja, pare de treinar e seu corpo irá perder as adaptações adquiridas.

O princípio da individualidade biológica também é auto-explicativo: cada pessoa é única e deve ser tratada como tal, e o que funciona para um corredor pode simplesmente não funcionar para outro, por mais que eles se pareçam. Por último, o princípio da variação de estímulos diz que o corpo precisa constantemente ser desafiado de novas formas, novamente para se evitar estagnação de performance durante o treinamento. Este princípio pode ser encarado tanto de maneira mais abrangente, falando por exemplo na prática de outros esportes ao invés de repouso absoluto, como de forma mais específica, através da variação de ritmos em uma sessão de corrida.

As séries preferidas por cada um

Este último princípio, o da variação de estímulos, é onde parece haver maior espaço para a tal diferença de um treinador para outro, especialmente quando se fala na variação entre as sessões de treino. Treinadores diferentes terão suas séries preferidas, como por ritmos mais fortes com uma pausa maior ou ritmos mais lentos com pausas menores, enquanto outros usarão um pouco de tudo. No entanto, na minha opinião é necessário que independente da escolha do tipo de séries, haja consistência entre elas.

Um corredor que faça hoje 15 x 400 m em 1:30 com 1 minuto de intervalo não está apto, ou não precisa, pular de série daqui uma semana ou daqui a um mês. O corredor precisa repetir a série, entendê-la, aprender a utilizar sua energia ao longo de todas as repetições. E mesmo quando ele aprender, ainda pode repetir a série, talvez um pouco mais forte, talvez no mesmo ritmo, da mesma forma como se continua fazendo rodagens de 10 km a 5 min/km durante anos.

Pense em musculação para fazer um paralelo: por quanto tempo se repetem as mesmas séries e exercícios até que se troque de treino? O organismo não se adapta do dia para a noite, e se uma planilha passa semanalmente de séries de 200 m para 400 m, 800 m, 1 km e assim por diante, sem mudar de ritmo, é porque ou estava muito fraca no início ou muito forte no final. A progressão de ritmos ou distâncias com o treino intervalado é um trabalho que leva uma temporada inteira para ocorrer.

Quando se fala em trabalhos mais leves, é possível este tipo de mudança de distâncias de semana para semana, simplesmente como uma forma de mudar a rotina: para alguém que corre 10 km em 40 minutos pouca diferença vai fazer se em uma semana a série for 10 x 600 m e na seguinte 8 x 800 m em um ritmo de 1:45 / 400 m, ambas com 20 segundos de pausa. Não é um trabalho forte, apenas uma leve puxada no ritmo de rodagem, e realmente pouco deve importar se uma série for utilizada ou a outra.

Mas a questão se complica quando se está tentando criar um novo ritmo de corrida, partindo de repetições curtas e gradualmente aumentando suas distâncias até que se chegue em séries que durem oito, quinze minutos, ou praticamente uma rodagem curta. É necessário tempo para que isto ocorra, e o que pode acontecer é que numa tentativa de deixar o treino o mais diversificado possível, o treinador acabe perdendo a essência da estrutura de suas sessões, privando o corredor de aprender com as sessões anteriores, e enfim, atingir seu pleno potencial.

A forma ideal de treinamento em corrida está à nossa volta, se prestarmos atenção, Entendendo-se que o ideal não é um ponto específico, e sim uma faixa onde existem diversos caminhos para o mesmo destino. Existem certos preceitos que não podem ser quebrados, regras que devem ser seguidas, e no mais existe uma quantidade imensa de exemplos que deram certo e e outros que deram errado para iluminar o caminho de quem vem atrás. Seguir modelos de sucesso não é demérito, desde que adaptando-os à situação encontrada e – mais importante – modificando-os conforme eles dão certo ou não.

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