Performance e Saúde admin 15 de junho de 2018 (0) (364)

Evolução humana, corrida e hidratação – será?

Eu estava lendo uma Contra-Relógio – que o correio daqui da Cidade do Cabo (África do Sul) entrega com uma pontualidade impressionante, ao contrário de qualquer outro documento – e me deparei com um pensamento de que em termos evolutivos a corrida não é natural ao homem. A base do pensamento seria de que somos mais adaptados para subir em árvores do que para correr. Será mesmo?

Isso é mais ou menos o contrário do que ouço falar quase que uma vez por semana. O professor Tim Noakes sempre cita em suas aulas sobre hidratação e termorregulação o exemplo de caçadores de tribos africanas que quase literalmente matam suas presas "na corrida", e esse hábito pode ser quase tão antigo quanto o homo. Resolvi então dar à questão o benefício da dúvida e buscar algo que ajude um ou outro ponto. Estou longe de ser algum estudioso da evolução humana, mas hoje em dia a internet nos permite bisbilhotar nos mais diversos campos se tivermos tempo e soubermos onde buscar a informação.

A busca resultou num artigo publicado no periódico Nature em 2004, por Bramble e Lieberman. Um parênteses aqui: no mundo acadêmico, publicar um artigo na Nature é algo como o Santo Graal, e para publicar um artigo de revisão é preciso ser uma autoridade no assunto em questão, e seu texto será revisado por outras autoridades no assunto que irão decidir se suas idéias fazem sentido o bastante para serem publicadas no periódico. Quanto mais valorizado o periódico, mais difícil será passar por esse "funil" de revisores, e a Nature é o Santo Graal…

Voltando ao assunto, o artigo em questão se chama "Corrida de longa distância e a evolução do homo". Os autores consideram que o bipedismo é (foi) um comportamento chave que possibilitou nossa separação em relação aos chimpanzés, e que apesar de ser relativamente ignorada pelos estudiosos, a corrida de longa distância pode ter sido um dos fatores na evolução da forma humana. De repente deu um orgulho maior de ser corredor, não deu?! Vamos aos fatos:

Em 1984 um trabalho chamado "O paradoxo energético da corrida humana e a evolução do homem" já chamava atenção para o assunto. O autor se baseou em dados da paleontologia e da fisiologia do exercício para desenvolver seu argumento. Antigos fósseis de australopitecus já apresentavam estruturas adaptadas à corrida e caminhada semelhante às do homem moderno. Além disso, entre os mamíferos cursoriais o homem possui uma capacidade notável na corrida de longa distância. Inúmeras tribos ainda hoje caçam suas presas após esgotá-las, correndo.

 

A VANTAGEM DO HOMEM SOBRE OS ANIMAIS. Explique-se aqui o paradoxo energético da nossa corrida (veja figura). Enquanto a maioria dos mamíferos possui uma velocidade específica de menor custo energético (custo energético é a quantidade de oxigênio consumida por quilograma de peso, por quilômetro deslocado) para cada tipo de passo, o homem apresenta este comportamento apenas para a caminhada. Na corrida se comporta de forma quase linear, possibilitando que uma maior gama de velocidades sejam energicamente viáveis. Com isso, o homem conseguiria correr atrás de animais em uma velocidade que lhes fosse desvantajosa, o que lhes forçaria a realizar uma série de pequenos sprints em sua velocidade preferida para fugir do caçador.

Vamos descomplicar: imagine-se correndo com um amigo. Enquanto ele corre a 5 min por quilômetro você corre a 3:50 por quilômetro e descansa 1:10 min até ele chegar perto (porque essa é única velocidade de corrida confortável pra você). Quem cansa antes? Por serem forçados a sprintar, que é uma forma menos econômica de movimento, os animais atingiriam temperaturas corporais críticas antes que nossos antepassados, e após um certo tempo, e às vezes muito tempo, se tornariam presas fáceis.

 Uma outra teoria, proposta por um sujeito chamado Wheeler, no início dos anos 90, argumentava que ao mudar para um ambiente aberto (as savanas), o bipedismo oferecia aos hominídeos uma vantagem termorregulatória, pois ao ficar em pé seus corpos ficavam menos expostos ao sol, diminuindo o ganho de calor por radiação. Além disso, ao ficar mais longe do chão seus corpos encontravam temperaturas mais amenas e ventos mais frescos.

Esta "vantagem" termorregulatória possibilitaria ao animal bípede exercitar-se em níveis mais elevados e também nas horas mais quentes do dia sem atingir uma temperatura corpórea crítica, facilitando atividades de predação em determinados horários do dia. Essa vantagem termorregulatória ainda conservaria os estoques corpóreos de água, tornando o hominídeo menos dependente de fontes de água. Apesar de parecer plausível, esta teoria foi fortemente rebatida por outros pesquisadores, e aparentemente pouco sobra dela nos dias de hoje. Alguns dos fatores contra ela incluem argumentos como o homem ter adotado o bipedismo antes de invadir as savanas e a falta de dados que provem as suas idéias.

Ambas as teorias, assim como outras (a de que o bipedismo seria uma consequência da necessidade de carregar cargas ou crianças por exemplo) possuem críticos ferrenhos e defensores não tão ferrenhos. A teoria proposta por Wheeler parece ter sido vastamente rechaçada, porém alguns de seus aspectos permanecem aceitos.

 

REGULAÇÃO TÉRMICA EFICIENTE. Chegamos finalmente no artigo de 2004, de Bramble e Lieberman. Estes autores fizeram um apanhado das idéias que mostrei acima a adicionaram mais algumas evidências. A maioria dos mamíferos usa as vias aéreas como principal mecanismo de regulação térmica (pense na respiração do seu cachorro, com a língua de fora e ofegante, num dia de muito calor ou após uma corrida). Usar as vias aéreas para resfriar o corpo possui suas vantagens, porém a respiração ofegante limita a capacidade de ventilar grandes quantidades de ar quando em exercício prolongado, além de atrelar o movimento de respiração ao da própria corrida.

Assim, a postura bípede dos hominídeos somada à sua maior capacidade de perda de calor pela transpiração (suor) lhes possibilitaria uma maior liberdade de corrida ao desatrelar a respiração do ritmo das pernas e permitir também uma maior expansão da caixa torácica, e sua relativa ausência de pelos facilitaria a troca de calor com o ambiente.

Outro argumento utilizado por esses autores em sua defesa é que se a corrida exige mudanças estruturais e na capacidade de termorregulação que em muito excedem a de animais "caminhantes", e como estas já estavam presentes em fósseis muito antigos, é pouco provável que a corrida seja apenas uma mera consequência de nossa evolução para o bipedismo, e mais plausível que ela tenha sido um dos fatores influentes na transição.

 

HIDRATAÇÃO EXAGERADA. Mas onde estou tentando chegar com tudo isso? O verão está aí, e mais uma vez (me desculpem os corredores), a histeria pela água aumenta desproporcionalmente. Corredores em prova de 10 km com garrafas de água na cintura, mochilas de hidratação nas costas e por aí afora. Outro parênteses: pessoalmente não tenho nada contra mochilas de hidratação, mas um amigo que é o médico responsável por uma prova de 160 km na Escócia as classificou de "instrumentos da morte" após o número de casos de hiponatremia na prova que ele é responsável aumentarem consideravelmente com a introdução delas.

O fato é que nós somos, ou eu assim acredito e talvez você também, adaptados para a corrida. Uns mais que outros, certamente, mas nossa capacidade de termorregulação é memorável. Os casos de intermação (temperaturas corporais críticas) durante eventos de corrida não enchem os dedos de duas mãos, e os casos clínicos de desidratação (aliás "caso clínico" de desidratação já é questionável) também não. Até uns anos atrás quem tomasse água antes dos 50 km durante a Comrades era considerado fraco, e dela pra cá os tempos não baixaram muita coisa.

Nosso corpo está preparado para perder grandes quantidades de água antes que alguma função seja afetada (não que isso não possa custar alguns segundos), e isso talvez seja uma adaptação histórica mais importante do que a maioria dos corredores já pensou, porém não confiar na boa e velha sede irá custar tanto ou mais, além de deixar a pele cortada pela maldita fivela do cinto de hidratação.

Talvez o futuro prove todas estas teorias falsas, mas que antes de sair pra minha humilde corrida semanal eu me sinto bem melhor pensando que meu corpo é feito pra isso, ah isso eu me sinto! Que venham as provas de 2010, sem exageros na hidratação!

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