Releitura Redação 4 de julho de 2020 (0) (218)

Educativos: nada provado que funcionem, mas também que prejudiquem

Fisiologia – Fernando Beltrami – Julho 2010

Você sai para sua corrida matinal, seja no parque ou na pista mais próxima. Cedo da manhã, e lá estão eles, saltitando um tanto desengonçadamente de um lado para outro. O movimento chama a atenção, afinal são colegas corredores e a imagem deles pode refletir em você. Perguntado sobre o que exatamente se passa na cena, o treinador do grupo lhe explica que os alunos estão realizando técnicas de corrida, que em poucas palavras melhoram de tudo um pouco o que um atleta possa querer. “Hmmm” possivelmente seja sua resposta, um tanto desconfiada, enquanto pesa se tais benefícios valem o mico em via pública. Os exercícios técnicos de corrida são vastamente mal compreendidos, mal explicados, mal estudados, mal feitos e, para completar, extremamente difundidos entre os corredores. Será que servem para alguma coisa?

Existe uma infinidade de diferentes exercícios chamados de educativos ou técnicas de corrida (aqui vou usar os termos de forma intercambiável, como exercícios que visam melhorar a qualidade da corrida de alguém), cada um com um propósito específico de melhora ou correção de algum movimento. Como a literatura científica no assunto é bastante escassa, fizemos uma busca em sites de treinadores, fóruns de corrida e livros sobre quais exercícios parecem ser os mais utilizados, como são corretamente executados e quais suas finalidades. Para facilitar a visualização dos exercícios, eles estão disponíveis em vídeo na internet (www.youtube.com/user/evenfastersport) e também no site da CR (colocar o endereço onde os vídeos vão ficar). Vamos a eles:

Skipping: Tem por objetivo melhorar a velocidade na troca de pernas e também facilitar a coordenação de elevar os joelhos quando se corre em maior velocidade. Realizado com uma passada curta, o tronco levemente inclinado para frente, tocando o solo com o terço dianteiro do pé. Deve-se erguer o joelho à frente do corpo até que a coxa fique pelo menos em paralelo ao chão. Os braços seguem a movimentação normal da corrida. Apesar de frequência de passada ser alta, a locomoção para a frente acontece de forma lenta.

Skipping B: Tem por objetivo maximizar a qualidade do retorno da perna ao solo. Movimento inicial do joelho similar ao skipping, porém quando o joelho está elevado a perna é estendida rapidamente, um movimento de chute à frente como se houvesse uma barreira, e retorna estendida ao solo.

Elevação de calcanhar: Visa melhorar a velocidade e o movimento na troca de pernas, possibilitando um maior tempo de vôo e comprimento de passada. Com uma passada curta e apoiando-se no chão somente com o terço dianteiro dos pés durante a passada, elevar os calcanhares o máximo possível, porém sem que eles passem da linha do corpo. Imagine que existe uma parede atrás do seu corpo, de forma que quando o pé sai do chão seu calcanhar suba o máximo possível até que seu pé fique plano em relação a esta parede. Apesar de frequência de passada ser alta, a locomoção para a frente acontece de forma lenta.

Corrida com as pernas duras: Correr com os joelhos “trancados” em posição estendida, para desenvolver o uso da articulação do tornozelo durante o arranque, momento em que o pé sai do chão. Os braços seguem sua técnica normal. Deve-se ter cuidado para que as pernas não façam os movimentos somente na frente ou atrás do corpo. A força para o deslocamento se origina nos tornozelos.

Corrida com as pernas duras B: Para aumentar a utilização dos glúteos na passada, ao levantar a perna. Com os joelhos travados, as pernas se elevam à frente do tronco, com ênfase ao movimento de trazer a perna de volta ao solo. O deslocamento à frente é lento.

Passos rápidos: Visa minimizar o tempo de contato com o solo e otimizar o uso de energia elástica. Movimentos similares ao skipping, porém com menor elevação de joelho. O objetivo é realizar a maior quantidade de passos possível para a distância, minimizando ao máximo o tempo de contato dos pés no solo. Os pés devem tocar o solo com intenção de sair o mais rápido possível, como se estivessem tocando uma superfície muito quente.

Mãos na cabeça: Correr uma série de repetições, em velocidade crescente, com as mãos atrás da cabeça. O exercício evidencia a existência de desvios laterais na corrida e auxilia o corredor a neutralizá-las utilizando a musculatura abdominal.

Saltos alternados: Este exercício exige um maior grau de força e preparo. Visa aumentar a força e potência da passada. Séries de corrida com passos exageradamente largos e uma sequência de saltos. Durante o salto, a perna dianteira permanece com o joelho elevado, e a perna traseira permanece estendida. O salto deve ser longo o bastante para que o corredor mantenha esta postura por um instante.

 

Por que fazê-los

Todos nós conseguimos, melhor ou pior, correr. Felizmente, ao contrário da natação, por exemplo, temos uma facilidade e naturalidade muito grande para a corrida. Por que então deveríamos nos ocupar em tentar melhorar o movimento, e mais importante, será que a tentativa realmente funciona?

Infelizmente, a quantidade de informação sobre o assunto é extremamente escassa, e a maior fonte de informação é a experiência prévia de treinadores que utilizam tais exercícios e dizem acreditar neles ou não. Exercícios de técnicas de corrida tentam servir aos seguintes objetivos: melhorar a eficiência do gesto (economia de movimento), corrigir erros posturais que possam exacerbar a propensão à lesões e melhorar a coordenação geral do corredor. A ideia de melhorar a economia de movimento de corredores é bastante simples: suponha que um corredor utilize “20 oxigênios” para correr a 10 km/h. Se conseguirmos fazer com que ele passe a gastar apenas 18 oxigênios teremos 2 oxigênios extra para correr mais rápido; fácil assim.

A tentativa de melhorar a eficiência do movimento se baseia em dois princípios distintos. O primeiro é a biomecânica do movimento em si. Existe o que se poderia chamar de um modelo ótimo de corrida, onde se acredita que um corredor deveria ter uma inclinação de tronco “x”, um movimento de braços ”y”, um movimento de pernas “z” e assim por diante. Nesta lógica, qualquer corredor com um desvio grande deste padrão deve ser corrigido, o que pode ser feito através de simples orientação durante a corrida ou então através de exercícios específicos que visem aumentar a percepção do corredor sobre partes do movimento de passada e assim aumentar a qualidade de execução deles.

O segundo princípio é que, quando corretamente implementados ao sistema de treino, a inclusão das técnicas de corrida torna-se uma carga de treino em si própria, com saltos de médio a alto impacto, levando a adaptações similares a outros tipos de treino de pliometria, como melhora de força e resistência muscular em musculaturas primárias e acessórias da corrida. Estas adaptações também levam a um gesto mais potente e econômico.

 

Coordenação motora

Fugindo um pouco da ideia de performance e lesões, o uso destes exercícios também serve a outro propósito igualmente nobre, o de melhorar a coordenação motora do indivíduo como um todo. Inúmeros corredores têm a corrida como seu único esporte, então é importante que encaremos a corrida como uma modalidade que deve proporcionar um bem-estar global ao indivíduo. E a corrida não é, ao menos para a maioria de nós, uma atividade que requeira muita coordenação motora e agilidade nas intensidades mais baixas, onde a maioria dos corredores concentra seus treinos. Dessa forma, se podemos utilizar um pedaço da sessão de treino para melhorar outros aspectos de nossa aptidão física e ainda correndo o risco de melhorar a corrida em si, por que não?

Infelizmente, todas estas possibilidades de melhora com a implementação de exercícios de técnica de corrida em sua planilha de treinos são especulativas, e possuem um grau de evidência científica muito baixo ou nulo, no sentido de que ninguém nunca estudou os efeitos deste tipo de exercícios. Nos poucos relatos, se observa que é possível sim fazer com que corredores alterem sua postura para mais próximo daquele padrão ótimo que comentamos, porém isto parece não trazer alterações imediatas em economia de movimento, que seria um dos objetivos dos exercícios.

 

Quando, quanto e como

Por serem considerados de moderado a alto impacto, os exercícios de técnicas de corrida não devem ser simplesmente jogados dentro da periodização de treino. Em primeiro lugar, eles devem aparecer no início de um ciclo de treino, ou seja, costumeiramente no período de base. Isso facilita a assimilação da nova carga, e não se corre o risco de que os novos exercícios possam prejudicá-la, seja por fadiga inesperada ou mesmo alguma lesão.

Incluir algumas centenas de saltos por dia quando se está a poucos dias do evento principal do treinamento nunca é uma boa ideia. Consideremos como exemplo a lista de 8 exercícios (existem diversos outros) que já mencionamos. O corredor pode começar com sequências de 15 m ou 20 m de cada exercício, uma ou duas vezes cada, progredindo até séries de 30 m ou 40 m, três ou quatro vezes cada. Estas recomendações abrangem o que é recomendado por vários treinadores, excluindo os “extremos” de cada um, então temos aí o que parece ser um consenso de custo-benefício. O volume destes exercícios pode acompanhar o desenvolvimento do volume geral de treino, ou seja, aumentar progressivamente durante a fase de base e diminuir até uma carga simples de manutenção durante a fase específica de treino, onde possivelmente duas séries de 20 m já sejam suficiente.

Tais exercícios devem ser feitos de preferência entre o aquecimento e a série principal do dia. Alguns treinadores sugerem que sejam executados após ou mesmo nos intervalos  das séries principais, como forma de trabalhar a força e a resistência muscular de áreas específicas. Tal proposta é possível, porém se já não existe um consenso sobre a validade de tais exercícios quando realizados no início do treino, empregá-los no meio da série se torna ainda mais nebuloso. Outra vantagem de se realizar os educativos imediatamente antes da série principal é que logo após o aquecimento o corredor costuma relaxar um pouco, e as séries de técnicas ajudam a trazer de volta a concentração e o foco para o treino.

Um corredor nunca deve realizar suas séries de técnicas apenas por fazer. Um dos objetivos primários do exercício é aumentar a percepção do corredor sobre o seu próprio gesto e possibilitar que ele consiga otimizá-lo conscientemente num estágio inicial, até que a nova forma seja assimilada como o estilo natural de corrida. Para tal é necessário estar concentrado e realizar todos os exercícios tentando extrair o máximo de cada um deles. Para que se consigam os efeitos desejados sobre força e resistência muscular, também é necessário que eles sejam feitos em alta velocidade, uma vez que o corredor já tenha coordenação o suficiente para tal. Caso contrário, seremos apenas alguns malucos saltitando pelos parques durante as manhãs.

 

 

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