Perfil admin 5 de março de 2012 (2) (202)

Edgard Freire: a locomotiva paulista

Era dia 26 de dezembro do ano que se encerrou, um dia após o Natal, mas Edgard Freire estava ali, firme e forte nos treinos. A planilha do dia mandava trabalho técnico, com alguns exercícios de biomecânica e depois dez tiros em rampa. Período de base para uma temporada que promete.

Na verdade, poderíamos citar aqui um dia de treino qualquer e lá estaria ele, sempre pronto para seguir o que manda a recomendado pelo treinador. Quem conhece esse personagem das nossas corridas sabe muito bem que dia de treino é dia de treino, mesmo aos 81 anos de idade. E essa disciplina não vem de hoje, vem de muito tempo atrás.

Para isso, vamos retroceder um pouco na história e ir direto a 1947, quando Edgard era apenas um jovem de 16 anos em busca de emprego. Nascido em São Paulo, no bairro da Penha, seu primeiro trabalho foi numa fábrica de brinquedos. Pouco tempo depois, começou a trabalhar como tapeceiro. "A fábrica fechou e fiquei sem emprego. Levantava todo dia às 5h para comprar o jornal e sair em busca de uma oportunidade", lembra Edgard. Foram três meses de procura, até que um colega o alertasse que a Escola Paulista de Medicina estava precisando de gente. Edgard começou a trabalhar lá como servente, fazendo faxina e tudo mais que aparecia.

O contato com a corrida aconteceu apenas quando serviu o Exército, aos 18 anos. Até então, sua experiência em esporte se resumia a partidas de futebol nos fins de semana. Na primeira prova que participou já venceu. Edgard lembra que não havia nenhum tipo de treino específico para representar o Exército. "Era simplesmente chegar e correr", conta ele, que corria descalço na época. Mesmo mostrando habilidade e talento para o atletismo, Edgard deixou o Exército e também a corrida, pelo menos naquele momento.

No entanto, um acontecimento marcante nos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952, na Finlândia, o levou definitivamente para as pistas de atletismo. O recorde mundial no salto triplo de Adhemar Ferreira da Silva fez Edgard pensar em tentar algo no esporte. "Quero ser alguém no esporte", pensou ele. Coincidentemente, o mesmo Diário Popular, tanto usado para procurar emprego anos antes, trazia um anúncio do São Paulo F. C., clube de Adhemar, procurando atletas para defender as cores do time.

 

O TESTE NO SÃO PAULO F.C. E lá foi Edgard ao Canindé, onde a equipe de atletismo do clube paulista treinava, sob a orientação do técnico alemão Dietrich Gerner, orientador de Adhemar. Com tênis todo rasgado, costurado especialmente para esse dia, Edgard compareceu à pista para participar do que seria uma espécie de seletiva. Sob o olhar de um assistente de Gerner, que naquela sábado acompanhava a seleção paulista no Campeonato Brasileiro de Atletismo e não estava presente, Edgard já mostrou logo de cara a que veio. Incumbindo de fechar um treino-teste de revezamento de 4 x 100 m, Edgard voou na pista, de bastão na mão. "Eu só lembro que passei a mão naquele bastão e levei minha equipe à vitória. Pediram para que eu voltasse na terça, quando o Gerner me avaliaria", conta Edgard.

Mas seu tênis costurado não sobreviveu àquele teste. Envergonhado, no primeiro encontro com o alemão, Edgard inventou uma desculpa para não ir para a pista. "Disse que estava com uma dor na perna e não podia treinar. Mas na verdade eu não tinha tênis. Ele percebeu o que estava acontecendo, me chamou num canto e pediu para o roupeiro me dar o uniforme completo do clube. Era tênis, calção, camisa, agasalho", lembra Edgard, que começou ali sua trajetória no atletismo, no início de 1953.

Com os treinos, Edgard melhorou rapidamente e logo se sobressaía em provas do Campeonato Paulista e de algumas de rua, como a tradicional Volta da Penha, onde foi o 7º colocado. Em junho do mesmo ano, participou de uma seletiva para representar a equipe no Rio de Janeiro. "Eu nunca tinha saído de São Paulo. O Gerner perguntou se eu queria ir para o Rio. ‘Claro que sim', respondi. Corri na pista uma prova de 5.000 m junto com o grupo que definiria os representantes da equipe. Já saí na frente e em certo momento a definição estava entre eu e outro corredor. Eu tentava passar e ele dizia: ‘Não passa que você não aguenta'. Não fui. Na última volta, ele puxou o ritmo e fiquei para trás. Fui o 2º, mas mesmo assim consegui ir para o Rio. Ao final do teste, o Gerner me perguntou: ‘Por que você não ultrapassou quando dava?'. Na minha inocência, respondi: ‘Ele disse que eu não ia aguentar'. E o Gerner emendou: ‘Você sabe quem é ele? É o Pedro de Andrade, recordista brasileiro dos 5.000 m',", diz Edgard, que a partir daquele momento não respeitou mais nenhum de seus adversários. Foi o 7º colocado no Rio, batendo vários outros atletas, inclusive o recordista brasileiro. 

 

VITÓRIA NA PRELIMINAR DA SS. A estreia na São Silvestre aconteceu no primeiro ano de atletismo, em 1953. Quinze dias antes, Edgard ganhou a preliminar, realizada no mesmo percurso da prova (de 7,3 km), que definia o representante do Estado na prova. Entre os grandes nomes presentes, estava lá o tcheco Emil Zatopek, conhecido como a Locomotiva Humana. Algo muito curioso aconteceu na largada. "A prova largou e vi o Zatopek ainda de agasalho. Ele tirou o agasalho e saiu atrás, buscando todo mundo. O homem corria todo desengonçado, mas era uma máquina mesmo. Passou por mim no km 3 e ganhou a prova com 20 minutos. O 2º colocado foi o iugoslavo Franjo Mihalic", conta Edgard, que naquele ano ficou em 24º lugar.

"Eu não sabia muito sobre a prova, mas lembro que vinha atleta do mundo inteiro para participar sem cachê. Era uma época diferente. Todo mundo queria correr no Brasil em troca de conhecer o país e de uma medalha ou troféu. Era apenas isso que os primeiros colocados ganhavam", diz ele, lembrando também que Luis Gonzaga Rodrigues, o mesmo da tradicional Gonzaguinha, foi naquele ano o melhor brasileiro.

Um ano se passou e a São Silvestre do ano seguinte, em 1954, estava para marcar para sempre sua história. Novamente ele ganhou a preliminar e foi para a prova com a intenção de vencê-la. "Foi um ano bom, com vitória em quase todas as competições que participei. Lembro que, sentando num canto, muitas vezes eu pensava comigo: ‘Tenho que vencer essa prova'. Treinei muito para isso. Fazia 10 tiros de 400 m para 62" com descanso de 1:30 na pista de carvão. Preparei-me muito para vencer."

Como a grande dificuldade de Edgard era com aclives e a São Silvestre na época era definida na subida da Gabriel Monteiro da Silva, mais ou menos na metade da prova, o atleta foi preparado para vencer. "O Gerner me levou um dia à noite para fazer repetidas vezes essa subida. Eram 800 metros. Ele de carro e eu a pé. ‘A chave da São Silvestre estava ali', dizia ele."

 

EM SEGUNDO LUGAR. Chegou finalmente o grande dia. Deu o tiro e Edgard já saiu logo na frente  brigando pelas primeiras posições com mais quatro atletas estrangeiros e só ele de brasileiro. A prova largava e chegava na frente do antigo prédio da Gazeta, no centro da cidade. "Estávamos todos juntos e a rádio Pan-Americana, que fazia a transmissão da prova, nos acompanhava de moto. Na subida da Gabriel, Franjo Mihalic, que venceu em 1952 e foi vice em 1953, fugiu alguns metros sem que eu percebesse. Quando pegamos a Ipiranga e entramos para entrar no Largo do Arouche, faltavam apenas 200 metros para o final. Tentei decidir a corrida ali, já que eu tinha uma boa chegada e dificilmente perdia uma prova no final. Consegui me livrar dos três homens que me acompanhavam e assumi a 2ª colocação. Cheguei a engavetar o Mihalic, mas não o suficiente para chegar à sua frente."

Edgard lembra desse momento pós-chegada com grande emoção: "Fui vice-campeão e melhor brasileiro. Carregaram-me no colo após cruzar a linha. Cheguei antes de virar o ano. Só os bons conseguiam isso. Na época, o caminho até a chegada era iluminado por tochas. A sirene da Gazeta tocava à meia-noite. Comemorei tudo o que tinha direito, com bandeira do Brasil e Hino Nacional."

Tudo tinha acontecido muito rapidamente desde que ele começou no atletismo, em 1953. "Lembro que fui levado naquela madrugada para um palacete na Avenida 9 de Julho para comemorar com os diretores do clube, mas não me sentia no meu ambiente. Preferi ir para casa, onde minha família, que ouviu a prova pelo rádio, e meus amigos e moradores do meu bairro me esperavam. Foi uma festa quando cheguei", lembra ele, que no dia seguinte viu estampada sua façanha na primeira página do jornal, numa manchete que o chamava de "A Locomotiva Paulista", uma alusão a Zatopek. De premiação, foram muitos troféus, placas e medalhas. E nada mais. Entre os troféus recebidos, um tem significado especial, recebido das mãos do então governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, que dois anos depois virou presidente do Brasil.

Mas, se em 1954 Edgard viveu a glória na São Silvestre, o ano seguinte, em 1955, seria muito diferente. "Quando você vence ou se coloca muito bem numa competição, tem muitos amigos. Todo mundo quer levá-lo para casa. Mas no ano seguinte, fui mal. Cheguei em 8º e não consegui ser o melhor brasileiro. Nas manchetes dos jornais estava estampado ‘A locomotiva paulista vira o fio'." Naquele ano, Edgard viveu exatamente o oposto do anterior. Sem comemorações e festejos, não havia ninguém para levá-lo para casa. "Peguei um ônibus e cheguei quase às 2h da manhã."

No ano seguinte, em 1956, mais uma vez ele foi o melhor brasileiro, na 4ª colocação. Os anos passaram e Edgard continuou sua carreira no atletismo. Casou-se em 1956 com a também atleta e então recordista brasileira do salto em altura e dos 200 m, Deise de Castro Freire, com quem teve um casal de filhos.

 

RECORDE BRASILEIRO. Da mesma forma que perseguiu uma vitória na São Silvestre, ele tinha o sonho de bater o recorde brasileiro dos 5.000 m, que era de 15:01. A marca tão desejada veio alguns anos depois, em 1963, no Campeonato Brasileiro disputado em Porto Alegre. Além do recorde, Edgard se consagrou como o primeiro brasileiro a correr a distância abaixo dos 15 minutos, com 14:55, marca estampada num diploma que os atletas na época recebiam. No mesmo torneio, Edgard conseguiu o recorde brasileiro nos 4 x 1.500 m.

Apesar de um grande ano, Edgard já não se sentia muito confortável treinando e competindo e resolveu parar com o atletismo no auge da carreira. "Corri um pouco ainda, mas já não era a mesma coisa. O esporte não é eterno e, depois de uma São Silvestre não muito feliz, resolvi parar para estudar", diz Edgard, que queria ser alguém na vida também fora das pistas. Um novo sonho então tomou conta dele: "Eu queria ser doutor."

Mesmo como atleta, Edgard nunca deixou o emprego da Escola Paulista. Sua carga horária de trabalho, no período da manhã, era conciliada com um segundo emprego, no Jockey Club, na parte da tarde, e os treinamentos eram realizados nas noites de terça, quinta e sábado. Treinava das 18h30 às 20h ou 21h e chegava em casa por volta das 23h. Essa era sua rotina quando era atleta.

Ao abandonar o atletismo, continuou trabalhando na Escola Paulista. Fez supletivo e conseguiu prestar vestibular em 1973. A ideia inicial era prestar odontologia, mas o destino o levou à biomedicina. Aos 42 anos, Edgard entrou na faculdade e começou ali sua carreira universitária, fazendo o curso no período da noite e trabalhando de dia. Assim que se formou, começou a trabalhar no departamento de fisiologia da Escola Paulista como técnico, ajudando a preparar as aulas práticas para os professores. Depois da graduação, Edgard fez mestrado e começou então a ministrar a mesma aula que preparou durante anos.

A história de Edgard continuou e voltamos aqui novamente a um fato do passado, mas agora não muito distante. Em 1994, um projeto do Cemafe, Centro de Medicina de Medicina da Atividade Física e do Esporte, sob o comando do fisiologista Turíbio Leite de Barros, queria provar que um sedentário há 30 anos, da terceira idade, poderia voltar à ativa e correr uma maratona.

 

SUB 4H EM NOVA YORK. Aos 64 anos, a Locomotiva Paulista retornou aos treinos nesse projeto um tanto quanto ambicioso para a época. Cercado de todos os cuidados e com uma equipe multidisciplinar à sua volta, com técnico, ortopedista, nutricionista, cardiologista e tudo mais, Edgard estreou na Maratona em Nova York, em 1995. Correu seus primeiros 42 km em 4h32. Em 1996, voltou à Big Apple com uma meta ainda mais ambiciosa: quebrar a barreira das 4h nos 42 km. Na companhia do técnico Wanderlei de Oliveira, um dos grandes responsáveis por seu retorno ao atletismo, que serviu nessa prova como coelho, Edgard cruzou a linha de chegada no Central Park em 3h53.

Depois disso, muitas outras provas vieram. Foram vários os pódios na categoria em corridas espalhadas no Brasil e exterior. Em 1998, por toda a sua história no atletismo, foi escolhido para levar a bandeira do Brasil na cerimônia da abertura dos 30 anos de comemoração da Maratona de Nova York.

Nestes anos todos, ele não perdeu a característica de chegar forte numa corrida e descer sempre embalado em percursos morro abaixo. Sua dificuldade em subidas ainda está presente. Mas, sempre brincalhão, seu lema nos treinos para essa sua nova fase passou a ser "para mim, toda subida é uma descida". Edgard já fez mais oito maratonas e um número incontável de meias. Na do Rio de Janeiro de 1998 completou em 1h41 aos 67 anos.

Patrocinado pelo Pão de Açúcar desde o início do projeto, Edgard deu um tempo com as maratonas em 2000, mas jamais deixou de participar de uma São Silvestre desde o seu retorno. Em 2004, o ano em que comemorava o 50º ano do vice-campeonato da prova, foi surpreendido pelos amigos na mais famosa corrida de rua do Brasil, que o aguardaram com faixas e cartazes comemorativos na subida da Brigadeiro Luis Antonio, para cruzar junto com ele a linha de chegada na Avenida Paulista. "Foi emocionante", lembra.

Retornando no nosso túnel do tempo, passaram-se Natal, mais uma São Silvestre e a virada para um novo ano. E claro que o personagem da nossa história continua ali firme nos treinos, alegrando os colegas de equipe Run for Life (do técnico Wanderlei de Oliveira) com suas brincadeiras e obedecendo à risca a planilha, faça chuva, faça sol.

Aquele que foi conhecido como a Locomotiva Paulista tem seus sonhos e objetivos mais uma vez renovados. Depois de 12 anos longe das maratonas, Edgard Freire se vê diante de novo desafio: retornar à Maratona de Nova York, agora aos 81 anos. Serão nove meses até o grande dia. Com certeza, quem acompanha o mundo das corridas terá muito ainda o que ouvir a respeito de Edgard, não só sobre sua história do passado, mas também sobre sua sempre renovada trajetória em busca do futuro. 

 

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2 Comments on “Edgard Freire: a locomotiva paulista

  1. Exemplo de vida!
    Parabens, muita saúde e muitos anos de vida, para nos passar
    sua experiencia e dar incentivo aos jovens.

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