No Foco – Marcio Dederich – fevereiro 2007
“Se AINDA CORRO pra TENTAR BAIXAR TEMPO? MAS É CLARO QUE SIM! ADORO MANTER VIVA ESSA SAUDÁVEL RIVALIDADE COMIGO MESMO. É NESSE CONSTANTE DESAFIO PESSOAL QUE ENCONTRO ENTUSIASMO PARA CONTINUAR CORRENDO”.
Para uns, como médico, ele literalmente cai do céu e, santo, chega sempre na hora certa; para outros, como especialista no tratamento de câncer, vem materializando a última esperança de poderem levar a jornada adiante de forma digna. Circunstâncias completamente diferentes, no meu caso o Dr. Drauzio Varella veio como presente de Papai-Noel: às vésperas do Natal, num Ibirapuera ainda semi-amanhecido pelo horário de verão, correr e entrevistá-lo ao mesmo tempo não tinha preço.
Nascido em São Paulo em 03/05/43, Drauzio pouca oportunidade teve de conviver com a mãe, falecida ainda jovem. Assim como os três irmãos, herdou do pai, um espanhol que chegou menino ao Brasil, a crença obstinada na honestidade, na solidariedade social e no trabalho duro como filosofia de vida. Fortalecida e solidificada na experiência adquirida ao longo do tempo, até hoje segue a cartilha.
Da infância passada entre jogos de bola, guerras de mamona e rodas de pião nas ruas do Brás, até se formar em medicina pela Universidade de São Paulo (USP), o percurso de Drauzio foi duro. Já no primeiro ano da faculdade começou a dar aulas de química em cursinho vestibular (foi um dos fundadores do Curso Objetivo) e a contribuir financeiramente com o pai na manutenção da família.
No início dos anos 70, quando ainda não havia nas faculdades a cadeira de Oncologia, já então como médico, começou a trabalhar na área de moléstias infecciosas do Hospital do Servidor Público de São Paulo. Durante 20 anos dirigiu o setor de imunologia do Hospital do Câncer e de 90 a 92, o serviço de câncer do Hospital do Ipiranga, ambos em São Paulo.
Drauzio foi também um dos pioneiros no tratamento da AIDS no Brasil. Trabalhando como médico voluntário, em 89 concluiu uma pesquisa sobre a prevalência do vírus HIV na população carcerária da Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo. Desse seu trabalho nasceram tanto o livro como o filme “Estação Carandiru”, ambos de grande sucesso. Além de Carandiru, Drauzio tem diversos outros títulos publicados. Mais recente deles, “Borboletas da alma – escritos sobre ciência e saúde”, foi lançado em outubro passado.
Atualmente, além da clínica que mantém em São Paulo e das diversas atividades que desenvolve como comunicador, Drauzio dirige no rio Negro um projeto de análise de plantas brasileiras cujo objetivo final é obter extratos para testes experimentais no combate a bactérias resistentes a antibióticos e ao câncer. Visitar o projeto para acompanhar de perto as pesquisas na região amazônica lhe toma dias e, em certas ocasiões, semanas.
Mesmo em meio a tantas atribulações, três vezes por semana o Drauzio médico tira o jaleco, calça o tênis e deixa a receita por conta do Drauzio corredor. Como disse na abertura, tive a oportunidade de acompanhar uma dessas transmutações. Acostumado a correr atrás de entrevistas, desta feita foi preciso acelerar e continuar falando e ouvindo. Não fosse ele tão gentil, não o teria conseguido acompanhar.
Nos parágrafos acima você conheceu o Dr. Drauzio. Deixe-me agora apresentá-lo ao corredor.
Contra-Relógio: No livro “Por um fio” o senhor comenta ter sido um bom corredor na infância. Deixando de lado a época das brincadeiras de rua no bairro do Brás, quando e por que resolveu começar a correr de verdade? Imagino que não tenha sido por recomendação médica.
Drauzio Varella: Não, nada disso. A razão chega a ser curiosa, além de engraçada. Foi em 1993. Andando pela cidade encontrei um velho amigo. Conversa vai conversa vem, ele perguntou minha idade. Ao responder que estava com 50 anos ele me disse que dali em diante é que a porca ia torcer o rabo. Que as dores começariam a aparecer, que a vida ficaria mais complicada, que tudo seria mais difícil, essas coisas. Refletindo sobre tamanho pessimismo, procurei pensar no oposto, em algo que pudesse fazer e que significasse energia, vitalidade, disposição. Assim nasceu a idéia de correr não uma maratona, mas sim a maratona de Nova York.
CR: Alguma razão especial para escolher Nova York?
DV: A aura, o simbolismo e o fascínio que essa prova sempre exerceu sobre mim e tantas outras pessoas. Como buscava algo que fosse ao mesmo tempo grandioso, marcante e desafiador, vencer pela primeira vez a distância correndo em Nova York me parecia excepcionalmente motivador. Afinal de contas, pelo menos no meu caso, ter feito 50 anos era motivo de alegria e comemoração, não de lamento e depressão.
CR: Conseguiu se preparar? Deu certo?
DV: Deu. Aliás, deu certíssimo! Um outro amigo, esse otimista e já experiente em corridas, me ajudou no treinamento. Montamos um programazinho básico e fui à luta. Procurei encaixar as corridas na minha rotina e cumpri o planejado dentro das possibilidades. Como Nova York acontece no início de novembro, tive apenas seis meses para me preparar. A verdade é que quando o tempo é escasso a gente sempre dá um jeito e aprende a usá-lo melhor. O resultado foi que estreei em 93 fechando com 4h01.
CR: Deu-se por satisfeito ou o tal do “bichinho das corridas” também lhe mordeu?
DV: Satisfeito nada. Depois dessa voltei lá e tive o prazer de vencer aquele percurso mais dez vezes! Minha série só foi interrompida em 99, quando não pude ir porque estava lançando o livro “Estação Carandiru”. Meu melhor tempo ficou em 3h38. O pior foi 4h10. Além de Nova York também já corri uma vez a maratona de Blumenau. Já fiz duas São Silvestre, mas não gosto dela. Embora não tenha o hábito de participar de provas, continuo correndo regularmente três vezes por semana. Este ano pretendo correr a Maratona de São Paulo. Falo por experiência própria: pegar o bichinho das corridas é mil vezes melhor que o da febre amarela.
CR: Em todos os seus trabalhos é possível notar-se o esmero, o cuidado com os detalhes, com a precisão, com o rigor científico. Faz o mesmo em relação às suas corridas?
DV: Nem tanto. Técnico, por exemplo, nunca tive. Corro de uma forma bastante intuitiva, sempre procurando ouvir e atender aos reclamos e anseios do meu corpo. De modo geral procuro não me prender nem aos mitos nem a certos dogmas das corridas. Se nunca somos os mesmos a cada dia, por que nossas corridas haveriam de ser? Antes de sair para correr, por exemplo, prefiro tomar dois copos de água de coco que comer qualquer outra coisa, carboidrato que seja. Me sinto melhor assim.
CR: Numa passagem em “Por um fio”, comparando-se ao seu irmão, o senhor diz nunca ter tido paciência para trabalhos manuais. Embora o façamos com as pernas, correr durante três ou quatro horas exige muita paciência. Mentalmente falando, como são suas corridas?
DV: Interessante isso. Quando corro meu pensamento não se fixa particularmente em nada. Melhor dizendo: nunca começo uma corrida com intenções de refletir sobre determinado problema ou situação. Isso sempre acaba acontecendo, mas de forma espontânea e natural. Vagando livre, meu pensamento “visita” os mais diversos aspectos e assuntos da minha vida. Não fico surpreso quando, por exemplo, a palavra que tanto procurava para arrematar um texto me aparece por encanto depois de alguns quilômetros. É correndo que muitas vezes encontro as melhores soluções.
CR: Por falar em soluções, na série “Tempo, o dono da vida” para o programa “Fantástico”, o senhor abordou aspectos da longevidade humana. Como situa as corridas dentro desse contexto?
DV: Estou cada vez mais convencido que a maneira como se vai chegar à velhice depende do uso que se faz do corpo agora. Como espécie, se por um lado somos heróicos ao defender nossa existência quando ela se encontra ameaçada, por outro somos incapazes de mudar hábitos de vida que fatalmente nos levarão a doenças gravíssimas no futuro. Devemos lembrar que o corpo humano é uma máquina construída para o movimento. Com uma grande diferença em relação às demais desenhadas com a mesma finalidade: enquanto as outras se desgastam, o organismo humano se aprimora com o movimento. Como toda atividade física, se feitas de forma adequada, as corridas somam positivamente na longevidade. Se entregar ao sofá é que não ajuda nada.
CR: Dizem que a ciência levará o homem a duplicar sua atual expectativa de vida. O senhor acredita que um belo dia chegaremos a ter nas corridas a faixa etária dos acima de 120 anos?
DV: Já se afirmou que o homem poderia chegar aos 160 anos de idade. De minha parte não estou convencido disto. Muitos estudos desmentem esta previsão. A duplicação da expectativa de vida ocorrida no século passado se deveu ao saneamento básico, ao controle das doenças infecciosas, às vacinas, aos antibióticos. Não há como dobrá-la novamente. Só para ter uma idéia, se conseguíssemos acabar com o câncer a expectativa de vida aumentaria apenas alguns poucos meses. Quanto a ter corredores centenários, estou certo que os teremos. Embora falte um bocado, desde já me apresento como inscrito.
CR: Além das corridas, que outra atividade física o senhor faz?
DV: Acho musculação importante, mas não gosto de freqüentar academias e por isso não faço. Adoro subir e descer escadas. Moro no 14º andar e sempre que posso deixo de lado os elevadores e encaro os degraus. Faço isso várias vezes ao dia.
CR: Como vê as corridas na atualidade?
DV: No passado distante o ato de correr estava diretamente relacionado à sobrevivência: além da necessidade de fugir dos predadores, nossos ancestrais corriam para alcançar a caça e prover o sustento da família. Exceto pelos que competem profissionalmente e por alguns outros, hoje o hábito me parece estar mais ligado a fatores estéticos que propriamente de saúde. Muitos correm pensando primeiro em perder a barriga e assim mudar a aparência, não em ficar mais saudável. É preciso inverter esse raciocínio.
CR: O senhor disse no começo da conversa que pretende correr a Maratona de São Paulo este ano. Pensa em baixar seu tempo na distância ou esse ímpeto já ficou para trás?
DV: Para trás não senhor. Continuo correndo contra o relógio. Quero fazer abaixo de quatro horas. A verdade é que ainda tenho um enorme prazer em me desafiar. Quando a gente fica mais velho não quer perder a chance de fazer tudo melhor. Adoro manter viva nas corridas essa saudável rivalidade comigo mesmo. É nesse constante desafio que encontro boa parte do entusiasmo para continuar correndo. Engraçado: até os 50, quando aquele amigo me disse que a porca ia torcer o rabo e resolvi enfrentar uma maratona, jamais havia imaginado correr em toda a vida. Nunca pensei que fosse chegar tão longe.
CR: Torcemos para que ao completar 70 o senhor encontre o tal amigo novamente. Temos muitas ultramaratonas boas por aí…
DV: Eu também. No mínimo para o agradecimento que fiquei devendo durante todo esse tempo.