Notícias admin 31 de janeiro de 2017 (0) (217)

Dick Vigarista

Quem tem mais de 40 anos lembra bem do personagem dos desenhos infantis Dick Vigarista, principalmente na "Corrida Maluca". O corredor (de carros, nesse caso) que usava de todos os artifícios ilegais para tentar derrubar os adversários e vencer a prova. O que nunca conseguia, é verdade, nem com a ajuda do parceiro Muttley, o famoso cachorro do "medalha, medalha, medalha".
Com os mesmos objetivos, de "medalha, medalha, medalha", ou "troféu, troféu, troféu", ou "índice, índice, índice" ou até, em uma versão mais moderna, de "curtir, curtir e curtir" nas redes sociais", os Dick Vigaristas estão proliferando pelas corridas de rua, no Brasil e exterior.
Basta uma simples análise nos resultados nas faixas etárias acima dos 60 anos e, depois, comparar na internet os números de peitos com as imagens distribuídas pelas dezenas de fotógrafos espalhados pelas provas, para perceber que se a pessoa não encontrou a famosa fonte da juventude, não há como aquele senhor da faixa dos 75-79 anos que aparece com um tempo digno de aplausos ser o garotão que sai fazendo festa durante os 42 km e até pose.
Essa história não é uma ficção para a matéria; a Contra-Relógio fez essa busca e o exemplo foi encontrado na São Paulo City Marathon, realizada este ano. Só lembrando que, acima dos 60 anos, há desconto de 50% no valor da inscrição segundo a legislação brasileira. Enviamos os dados para a Iguana e o corredor foi desclassificado. Mas quantos outros podemos encontrar na mesma situação e que acabam impunes?
Na primeira edição do Desafio Boost, da Adidas, em São Paulo, houve atraso de mais de duas horas na programação pela quantidade de homens correndo com chip de mulher ou fazendo parte da prova para as esposas ou namoradas, com um "revezamento" no meio dos 10 km. Lembrando, todos corriam 10 km + 5 km. Os 100 homens mais rápidos na soma dos tempos líquidos iam para uma bateria de 1 km, assim como as 50 mulheres. A premiação? Uma medalha e uma camiseta a mais. O golpe era para isso!

TUDO PELO ÍNDICE – Outro fator que vem se espalhando pelas provas (não é de agora, mas se intensificou) é a obtenção de índices, principalmente para a Maratona de Boston. Nesse caso, há dois fatores. Gente que cobra pelo "serviço" e, outras que fazem na amizade, na camaradagem, inclusive dentro dos grupos de corredores e de assessorias esportivas. Os sistemas, contados à reportagem por quem participou deles, são inúmeros e, inclusive, usuais em algumas Majors. Vale tudo, menos treinar e se preparar para baixar o tempo nos 42 km. No restante, a temporada do golpe é aberta.
Este é um dos mais simples. Duas pessoas se inscrevem na prova. Retiram o kit normalmente e, então, trocam os chips. Os dois estarão na corrida, aparecerão nas fotos, serão vistos e ninguém irá desconfiar, mesmo porque nesse caso a fiscalização da organização é maior (tapetes de cronometragem a cada 5 km, por exemplo, com transmissão ao vivo). Tudo estará dentro do regulamento, em tese, claro.
Para quem cobra pelo serviço, a situação é a mesma. Vale para homens e mulheres. Tudo é estudado antecipadamente. Na maioria das vezes, a questão passa inclusive pelo tempo possível. Não adianta baixar muito e chamar a atenção. Por exemplo, a pessoa tem 3h45 na maratona e precisa de 3h35 para entrar em Boston. O "corredor contratado" vai lá e, então, corre para 3h30. Ou seja, cinco minutos de vantagem, um tempo não absurdo em termos de melhora de desempenho; ninguém desconfiará e a vida segue.
De vez em quando, porém, há problemas. Usando o mesmo exemplo, também real e relatado à Contra-Relógio, mas de um caso feminino. Uma corredora precisava do mesmo índice, 3h35 e tinha os mesmos 3h45, porém, o contratado (um homem) foi lá e fez perto da casa dos 3h10. Exagerou. Para piorar, com esse tempo ficou em primeiro lugar na faixa etária, mas a segunda colocada era da mesma assessoria esportiva, sabia que a concorrente não teria condições de fazer aquele tempo e nem a viu na frente durante a prova. Nem é preciso dizer que a confusão foi enorme!
Em provas menores, então, no Brasil e na América do Sul, essa situação é extremamente comum. Corridas com poucos controles de passagens ou nenhum tapete intermediário, menor fiscalização, poucos fotógrafos, ou seja, a situação fica extremamente tranquila. Mesmo nas grandes maratonas lá de fora, os brasileiros já são conhecidos dos organizadores por largarem nos 21 km ou mesmo faltando 10 km e então fazerem a festa na chegada, na maior cara de pau, pegando a medalha e depois postando no face…
A situação chega a ser tão esdrúxula que, muitas vezes, não há segredo algum no esquema. Em postagem no Facebook sobre Boston no ano passado, um corredor comentou que estava empolgado, pois iria participar da edição seguinte. Recebeu, então, uma pergunta de quando e onde tinha feito o índice. Ele respondeu, abertamente, que ainda não tinha feito, mas que iriam fazer para ele no final de semana seguinte. Sem demostrar qualquer vergonha, achando a conversa a mais natural possível e, claro, sem peso na consciência.

SÓ PARA CURTIR. Há quem faça os golpes sem um objetivo de troféu na faixa etária ou de um índice específico, apenas para ser popular nas redes sociais, ganhar mais curtidas no Facebook ou no Instagram, destaque entre os amigos, na assessoria, no grupo de corrida. Algumas são "figurinhas carimbadas". Viajam para Chicago, Berlim e mantêm o ritual, de correr uma parte, cortar caminho em outra… Fazer os primeiros 21 km em 1h42 e a segunda parte em 1h12. Um fenômeno!
Outro fator reforçado por algumas assessorias e treinadores/grupos de corrida tem relação com as trocas de kits. Ou seja, há 30 inscritos, sobram alguns e passam o material para outros usarem os números e chips, mesmo sendo homem correndo com vaga de mulher, mudanças de faixas etárias… Sem falar na divisão dos kits. Uma inscrição segue para três corredores. Um usa o número, o outro o chip e o terceiro fica com a camisa do evento.
A única diferença entre o Dick Vigarista dos desenhos animados e os atuais do mundo das corridas é que enquanto o personagem sempre acabava levando a pior, os modernos acabam vencendo, indo para Boston, ganhando troféus, medalhas de top 100, entrando para o ranking de maratonistas da Contra-Relógio, ficando bem colocados em provas, tendo desempenhos bem abaixo dos divulgados.
Existem formas de coibir ou pelo menos tentar reduzir essas burlas, como o editor da CR apresenta nas páginas seguintes. E os organizadores tem papel fundamental nessa mudança, como fazem os lá de fora, que não só desclassificam os maus caracteres, como os colocam em uma lista negra, para não mais conseguir se inscreverem.
Lógico que o ideal é que houvesse uma mudança de mentalidade, mas isso já é uma outra história, que esperamos algum dia aconteça.

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