Releitura Redação 1 de fevereiro de 2021 (0) (356)

De médico e louco todo corredor tem um pouco

Saúde – Por Yara Achôa – Outubro 2009

Atire o primeiro comprimido quem nunca tomou um analgésico ou um antiinflamatório por conta própria para encarar um treino importante ou uma prova. Mas isso pode ter consequências…  

Quando comecei a correr, um treinador me disse: “A partir de agora, todo dia você sentirá uma dor nova”. Não é exagero – quem corre sabe que é quase isso. No início são as dores musculares provocadas pela adaptação do corpo aos exercícios. Depois, além das musculares, podem surgir as dores causadas por inflamações (as inúmeras “ites”, como canelite, bursite, tendinite) e lesões, decorrentes da biomecânica da corrida, uso de tênis inadequados, postura, treinos muito fortes, aumento de volume, falta de alongamento, entre outras coisas. Uma recente pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos em Esporte e Ortopedia, coordenada pelo médico Rogério Teixeira da Silva, também presidente do Comitê de Traumatologia Desportiva da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia, só vem confirmar essa história.

Mais do que constatar que a maioria dos corredores brasileiros (72%) sente algum tipo de dor ao correr, o trabalho revelou que esses atletas geralmente tratam o problema sem ouvir um médico. “O tratamento por conta própria amplia as chances de tornar crônico o quadro doloroso, de aumentar as lesões ou do indivíduo ser atingido por incômodos provocados pelos próprios medicamentos ingeridos”, diz Teixeira.

O estudo foi baseado em entrevistas com 7.731 corredores de rua amadores (homens e mulheres), que competem em diferentes tipos de prova ou que somente fazem corrida. Destes, 62,3% praticam a atividade sem supervisão técnica e 89,3% correm provas de até 10 km. E 71% disseram ter sofrido alguma dor que precisava ser investigada, porém não foram ao médico. O que fizeram ao invés de procurar um especialista? Consultaram amigos e treinadores ou agiram por conta própria. Para tentar driblar a dor, 45,9% aplicaram gelo no local, 42% ficaram sem correr até passar e 30,6% tomaram antiinflamatório, além de utilizar as medidas anteriores. “Esses remédios possuem tarja vermelha, são de prescrição obrigatória e não poderiam ser vendidos sem receita. Pessoas que não médicas que recomendam medicamentos de prescrição obrigatória estão agindo ilegalmente”, alerta o médico.

 

NENHUM REMÉDIO É INOCENTE

“Um único comprimido de antiinflamatório é capaz de causar efeitos adversos em quem nunca apresentou complicações gastrointestinais. Se a pessoa já tem predisposição, a incidência é ainda maior”, alerta o médico Décio Chinzon, professor de pós-graduação da disciplina de gastroenterologia clínica da Universidade de São Paulo (USP) e diretor científico da Federação Brasileira de Gastroenterologia (FBG).

Os antiinflamatórios não esteróides (AINEs) tradicionais (como ácido acetilsalicílico, diclofenato e naproxeno) estão entre os medicamentos mais vendidos no mundo e também no topo das queixas digestivas em prontos-socorros no Brasil, devido aos efeitos colaterais. “Para cada comprimido de antiinflamatório prescrito, outros sete ou oito são tomados”, alerta Chinzon. Ou seja, tem muita gente se automedicando. Acontece que seus efeitos adversos atingem vários órgãos do trato digestivo, como esôfago, intestino, fígado, sendo mais freqüentes no estômago e duodeno, e podem causar de azia a gastrite e até úlcera.

O uso indiscriminado pode, ainda, anular a eficácia ou potencializar os efeitos adversos de outros medicamentos (um dos grandes riscos da automedicação é a interação medicamentosa), além de mascarar sintomas ou agravar doenças. “A automedicação leva à cronificação da dor. Isso significa que faz a dor aguda não tratada se tornar crônica. Leva ao agravamento de lesões, como tendinites, piorando os resultados no tratamento, tanto clínico quanto cirúrgico, bem como favorece efeitos adversos cardíacos e renais”, afirma Teixeira.

 

O QUE FAZER COM A DOR

A dor é o quinto sinal vital, ao lado de pressão arterial, frequência cardíaca, temperatura e respiração. É a maneira encontrada pelo corpo de chamar atenção para um problema. Portanto, não é normal sentir dor – e ninguém gosta de sentir. Daí que diante de um quadro doloroso (ou até prevendo esse quadro, que provavelmente surgirá ao longo de uma maratona, por exemplo) algumas pessoas logo ingerem antiinflamatório para saná-la, porque o medicamento conta com propriedades analgésicas.

“Isso é um erro”, diz o reumatologista Daniel Feldman Pollack, professor adjunto da disciplina de reumatologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Os antiinflamatórios são importantes aliados no combate à dor, desde que usados de maneira racional. O médico informa que todo processo doloroso que tenha inflamação em sua essência é passível de ser controlado ou até debelado. “Apesar disso, nem toda dor responde a esse tipo de droga e nem todo antiinflamatório trata qualquer dor”, esclarece Pollack.

O melhor é ficar alguns dias sem correr do que meses de molho, não? Ainda mais sob o risco de mais complicações. Por isso, a dor precisa ser avaliada por um especialista, levando em conta intensidade, frequência e duração. “No caso dos esportistas, desde que não seja uma dor de trauma, que necessite atendimento imediato, aquela dorzinha que persiste por mais de uma semana deve ser devidamente investigada por um médico, que indicará a terapia apropriada”, sugere Teixeira.

 

MEDICAMENTO NO KIT

Em várias maratonas no exterior, entre os brindes do kit é comum o corredor encontrar amostras grátis de analgésicos, estimulantes e energizantes. Ou seja, alguns organizadores, por conta de patrocínio, estariam promovendo a automedicação. “Acho uma atitude bastante preocupante. Pode ficar parecendo normal e até obrigatório para o corredor a ingestão de certas substâncias diante de uma prova mais dura”, diz o ortopedista Rogério Teixeira da Silva, do Núcleo de Estudos em Esporte e Ortopedia, de São Paulo. Quem não estava pensando em tomar qualquer medicamento, acaba tentado a experimentar, já que faz parte do material oficial distribuído. E quem já faz disso uma prática, teria acesso ainda mais facilitado.

Você experimentaria analgésicos ou compridos e bebidas energizantes que estivessem em um kit de corrida, mesmo sabendo dos riscos da automedicação? Participe de mais essa discussão, acessando nosso blog www.revistacontrarelogio.com.br/blog e nosso Twitter www.twitter.com/contra_relogio.

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