20 de setembro de 2024

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Releitura Redação 24 de setembro de 2018 (0) (175)

De luz e sombra – nov/2006

LAUTER NOGUEIRA – NOVEMBRO/2006

“Por mais que haja dor e agonia
Por mais que haja treva sombria
Existe uma luz que é meu guia
Fincada no azul da amplidão
É o claro da estrela do dia
Sobre a terra da promissão.”

      Tarde de chuva no meu Rio é um problema sério. Além das costumeiras catástrofes urbanas (congestionamentos monumentais, ruas submersas, carros fazendo teste de resistência a grande profundidade etc), costumo pensar. Pior, costumo questionar coisas óbvias. Às vezes penso até em me mudar para o Death Valley, nos Estados Unidos, onde a última vez que choveu foi durante o evento de inauguração da Arca de Noé. Mas aí eu me lembro que bem na entrada desse deserto infernal (literalmente) fica um lugarejo chamado Zabriskie Point, local onde foi rodado e deu título a um filmaço de Antonioni, nos idos de 1970. Pois é, o danado do filme, além de ser ótimo, nos induz a …. pensar!!!

     Bem, já que estou condenado a fazer aquilo que me diferencia das outras espécies animais ( e de alguns “cartolas” do combalido futebol carioca também), pelo menos vou tentar dar início aos trabalhos logo, afinal já se foram quase dois enormes parágrafos. Então, lá vai:

      O que leva algumas pessoas, incluo aí nós seis (vocês cinco renitentes leitores, e eu em escala muito menor, claro), a se tornarem corredores de longa distância?

       Não, com certeza não é por desacreditar no sistema de transporte coletivo de nossas cidades, nem em função do caos diário no trânsito em nossas ruas e estradas. Provavelmente, alguns iniciam seu flerte com as corridas pensando em perder peso, diminuir a pressão arterial, tornar-se mais saudável, diminuir o estresse, curar feridas deixadas por ausências dolorosas etc, etc, etc… Mas existe no fundinho da alma peregrina que habita o corpo magro de um corredor algo mais.

 

Por mais que a canção faça alarde
Por mais que o cristão se acovarde
Existe uma chama que arde
E que não se apaga mais não
É o brilho da estrela da tarde
Na boina do meu capitão

     Existe algo que não se consegue traduzir em palavras, algo que só se consegue entender quando se abre a porta da rua e ganha-se o mundo. Mundo esse que começa lentamente a passar por sob seus tênis de corrida. Tem-se a pura sensação de domínio. Corpo e alma fundem-se, embebidos de suor e vida. Algo além do que entendemos, mas percebemos, invade nossas moléculas, como uma pororoca (ô nome feio, esse!), revertendo o fluxo complacente e previsível de nossas vidinhas. Arrasta o que tem de inerte e amplia seu leito e, sem a menor cerimônia, nos conduz pra dentro de nós mesmos.

      Um escritor inglês, Alan Sillitoe, tentou, com algum sucesso, explicar essa busca a algo que não se entende, mas sabe-se que a cada passada, mais próximos nos encontramos, num belo livro chamado “A solidão de um corredor de longa distância”, que logo depois se tornou filme, belo também.

E a gente
Rebenta do peito a corrente
Com a ponta da lâmina ardente
Da estrela na palma da mão.

    Mas a melhor maneira de tentarmos desvendar esse mistério, resolver essa charada transcendental, é da forma que vou fazer daqui a pouquinho: calçando o tênis, esticando os músculos e, como teclei linhas acima, ganhando o mundo. Mas antes de abandoná-los por uma causa nobre, gostaria de dizer que talvez o maior benefício de ser um corredor de longa distância seja a potencialização de nossas virtudes e a minimização dos defeitos. Heim????? Parece discurso de político desesperado às vésperas das eleições, né? Vou tentar ser mais claro:

– O corredor de longa distância tende, repito: tende, a ser uma pessoa melhor, pois costuma, como num processo de autoconhecimento, acertar as arestas de sua alma, correndo. Sim, quando nos encontramos sós, diante apenas de nós mesmos, quando corremos, temos acesso a nossa “caixa preta”, e aí, tomamos as rédeas de nossas vidas nas nossas mãos.

Por mais que a paixão não se afoite
Por mais que minh’alma se amoite
Existe um clarão que é um açoite
Mais forte e maior que a paixão
É o raio da estrela do noite
Cravada no meu coração.

 

   O grande corredor e ser humano Emil Zatopek disse uma vez : “Na vida, nossas grandes batalhas são travadas na solidão. Assim são também as corridas de longa distância. E tanto numa como na outra é a sensação da vitória que nos faz seguir em frente”. Nada mais verdadeiro. Nada mais a acrescentar

E a gente
Já prepara o chão pra semente
Pra vinda da estrela cadente
Que vai florescer no sertão

Igual toda lenda se encerra
Virá um cavaleiro de guerra
Cantando no alto da serra
Montado no seu alazão
Trazendo a estrela da terra
Sinal de uma nova estação” **

**Estrela da terra((Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro)

 

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