TUDO EM CIMA – Márcio Dederich – Abril 2009
Se correr é de fato um exercício tão saudável, por que corredores continuam morrendo ao praticar tal atividade? Sob calor ou frio, em esteiras ou nas ruas, treinando ou competindo, estatisticamente falando é possível afirmar que vários outros morrerão durante corridas no mundo inteiro ainda este ano, a maioria devido a doenças do músculo cardíaco, as chamadas miocardiopatias. Em todas essas ocorrências, enquanto alguns irão culpar as maratonas (sacrificam demais!), outros apontarão o dedo para as provas mais curtas (o corredor exagera no ritmo!). Quem está com a razão? Será a distância a grande vilã ou haverá um terceiro culpado?
Com base em pesquisas, vários especialistas admitem que a prática regular de exercícios físicos vigorosos como as corridas, reduz consideravelmente os riscos de mortalidade. Executados de forma regular e em bases crônicas, tais exercícios têm de fato se mostrado um fator de proteção considerável. Indivíduos que mantem essa prática parecem viver mais e melhor. No entanto, além de alertarem para a existência de paradoxos surpreendentes no binômio saúde-doença, esses mesmos especialistas afirmam não haver qualquer garantia a tal respeito, podendo cada novo treino ou corrida significar um risco potencial para certos corredores.
Para Ricardo Stein, que no momento atua como professor consultor em Cardiologia do Exercício na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, mesmo que não se manifeste através de sinais ou sintomas, basta a presença de alguma doença pré-existente para que o exercício vigoroso possa vir a atuar como um “gatilho” e assim provocar tanto o desencadeamento de arritmias malignas, quanto algum outro processo maléfico ao coração. “Agora, se o indivíduo está devidamente preparado e não existem evidências de qualquer enfermidade potencialmente deletéria sob o ponto de vista cardiológico-clínico, o risco passa a ser muito pequeno”, afirma Stein.
Estudos demonstram que embora a curva de ganhos continue ascendente, os benefícios à saúde aumentam menos intensamente quando se corre pouco. Em 1997, analisando 8283 corredores, foram comparados os que corriam mais de 80 km semanais com os que corriam menos de 16. A conclusão foi que os níveis de colesterol bom (HDL) ofereciam 2,5 vezes mais proteção e davam 50% menos chances de os atletas de alta quilometragem sofrerem de hipertensão. A mensagem não poderia ter sido entendida de forma mais direta pelo público interessado: quanto mais correr, melhor.
Mas não é bem isso que acontece. Sendo o coração um músculo, e não havendo limites de distância ou esforço para as competições modernas (sempre aparecem novos desafios), é preciso bom-senso. “Considerando que existem provas que levam o ser humano ao limite, é razoável que a estas sejam atribuídos riscos maiores e, portanto, cuidados extras. No entanto, sob o ponto de vista prático, é muito difícil, quase impossível, afirmar que o risco de morte súbita é maior nas maratonas do que em provas menores. Não é a prova que determina o risco, mas sim a situação clinica de quem a está fazendo”, diz Ricardo Stein.
Frequência cardíaca ou duração da atividade?
Embora a distância percorrida em um maratona seja quatro vezes maior que numa prova de 10 km, é o ritmo em que se corre que determina o quão vigoroso está sendo o exercício. Neste caso, considerando um mesmo atleta, qual deveria ser julgado o fator de risco mais relevante: a freqüência cardíaca ou a duração da atividade? Cardiologista do Hospital 9 de Julho, em São Paulo, José Luiz Cassiolato acredita que os dois componentes devem ser observados em conjunto.
Para ele, “é fundamental que qualquer praticante de atividade física vigorosa saiba sua FC limítrofe (o chamado limiar anaeróbico do teste ergoespirométrico) e realize sua tarefa preservando esse dado, pois é nesta faixa que os exercícios vigorosos trabalham (80 a 85% da FCmáx ). Esta FC deve ser relacionada ao tempo da atividade proposta. Quanto maior o tempo exigido, mais cuidados é preciso ter com eventuais reposições liquidas, nutrientes e eletrólitos, minimizando os riscos do esforço físico prolongado e vigoroso”.
Cassiolato vai um pouco mais longe nas suas observações. Afirma que as respostas do coração são adaptativas às várias fases de treinamento e competição, sendo que indivíduos que se preparam para provas com desafios maiores devem estar cientes das condições as quais serão submetidos – aclimatação ao local, temperatura, altitude, época do ano e limitações nutricionais são apenas alguns dos elementos que irão atuar sobre seu organismo.
Se, por um lado, atividades físicas vigorosas como corridas são “dolorosas”, por outro o corredor sabe seu nível de tolerância a essa “dor”. Do ponto de vista médico, Cassiolato se considera um tanto radical: “Qualquer indivíduo que esteja correndo e se sinta desconfortável, deve, no mínimo, diminuir a intensidade. Persistindo o sintoma, melhor parar. Todo e qualquer sinal clínico deve ser valorizado pelo praticante, sendo que sudorese excessiva ou fria, palpitação, dificuldade de respirar, dor torácica ou tontura necessitam, além da interrupção da atividade, uma avaliação criteriosa”.
Em relação às distâncias, a opinião de Cassiolato é que um maior risco de morte súbita não depende da prova em si. Para ele, “um indivíduo bem avaliado, com prescrição adequada de treinamento, sabedor das características da prova a que irá se submeter, consciente da necessidade de reposição hídrica durante a prova e sabedor de seus limites, terá sempre menor risco de morte súbita. E que o atleta não se esqueça do período de recuperação, fase que também faz parte da prova”.
Coração de maratonista
Bastante empregado entre corredores, o termo “coração de maratonista“ em princípio reflete orgulho. Transmite a idéia de um coração maior, mais potente, saudável e altamente eficiente, desenvolvido através de intensa atividade física. Até aí, beleza. Mas nem sempre o quadro é verdadeiramente esse. Embora também aumentem a massa e o volume do coração, as miocardiopatias hipertróficas são um problema patológico grave que o tornam um órgão defeituoso, fraco, não confiável e extremamente perigoso.
Doutor em medicina pela Unifesp e cardiologista intervencionista dos hospitais Bandeirantes e São Luiz, ambos de São Paulo, Marcelo Cantarelli alerta para a necessidade de o atleta manter em dia as avaliações médicas periódicas funcionais e anatômicas do coração, capazes de detectar prováveis patologias. “Já que sabidamente o teste de esforço não é suficiente para detectar todos os fatores de risco, após consulta médica ao cardiologista e a pedido deste, o corredor poderá ser solicitado a fazer exames complementares como Ecodopler, Holter, ressonância, teste ergoespirométrico etc.”.
Em relação ao risco de morte súbita cardíaca durante o exercício, Cantarelli afirma que estudo realizado na década de 90 mostrou que o risco relativo de sofrer infarto agudo do miocárdio é 5,9 vezes maior no período de uma hora após a atividade vigorosa, e que esse mesmo risco diminui quando a prática é regular e a frequência semanal aumenta. Assim, enquanto exercícios moderados não aumentam o risco de morte súbita, formas mais vigorosas associam-se a riscos cinco a sete vezes maior.
Respeito à individualidade.
A prática regular de exercícios físicos vigorosos leva a fenômenos orgânicos adaptativos. Ponto. As alterações funcionais e anatômicas tem maior impacto sobre o sistema músculo-esquelético e cardiovascular. Outro ponto. Embora possam situar-se fora dos limites da normalidade, seus significados clínicos e prognósticos são controversos. Vírgula.
A resposta individual ao exercício não está relacionada apenas à duração ou intensidade, mas também a fatores intrínsecos como idade, sexo, raça e componentes genéticos. Estes últimos ganham relevância quanto ao desenvolvimento de hipertrofia ventricular esquerda, acentuando diferenças nas alterações cardíacas para um mesmo dado esforço.
Atualmente, a busca por atividade física regular tem aumentado não só pelo público jovem, que procura resultado principalmente estético, mas também pela turma da terceira idade, estes correndo atrás da prevenção cardiovascular. Em ambos os casos, é possível notar nas academias a exigência quanto a avaliação física prévia, o mesmo não acontecendo em relação à parte cardiológica.
Médico responsável pelo serviço de cardiologia intervencionista do Hospital Check-up, de Manaus (AM), Rizzieri Moura alerta: “Jovens ou nem tanto, indivíduos portadores de miocardiopatia hipertrófica secundária à atividade física devem estar cientes de que se trata da principal causa de morte súbita cardíaca. Lembrando mais uma vez, que o fato deve ser investigado e acompanhado intensivamente, já que é uma alteração estrutural adquirida que se desenvolve a longo prazo e de forma evolutiva.”
Tomando por base um mesmo corredor, Rizzieri afirma que o risco de morte súbita cardíaca é maior em maratonas que em provas menos longas. Segundo ele, “o remodelamento miocárdico varia de intensidade conforme o tipo de atividade física a qual é submetido, sendo as atividades prolongadas e contínuas as responsáveis pelas alterações morfológicas e funcionais mais importantes.”
Como se vê, controvérsias à parte, o importante é que o corredor mantenha plena consciência de suas reais condições de saúde. Que realize acompanhamento periódico com especialista para não ser surpreendido por sinais ou sintomas graves em estágio avançado. Que respeite seus limites individuais. Que a corrida – tenha ela a distância que tiver, exija o esforço que exigir – seja praticada dentro da capacidade cardiovascular, pulmonar e osteo-muscular a qual o indivíduo está adequadamente treinado e adaptado.
Isso feito, as estatísticas ficarão para o passado distante.