Notícias admin 10 de março de 2015 (0) (118)

Correr é democrático

As férias com a família, no início deste ano, no Rio de Janeiro – leia-se namorado e três adolescentes, de 16, 12 e 9 anos – tinham programação certa: do surfe ao skate; mas Andrea Longhi logo imaginou que o ponto alto seria levar sua turma para conhecer a Rocinha, maior favela do Brasil, com cerca de 700 mil habitantes. Quem é leitor habitual da CR já deve ter reconhecido esse nome. "Sou corredora séria, meu namorado é corredor sério e nossos filhos vivem isso olhando de soslaio. Mas eles entenderam como aquela comunidade é única e linda. O projeto Rocinha me enche de alegria e gostaria mesmo de ter mais tempo para criar e buscar oportunidades ali", disse a gerente de marketing da Asics, uma das maiores fabricantes de equipamentos esportivos do mundo.
Desde o ano passado, a marca fornece material esportivo para os atletas da Equipe Rocinha e ajuda na inscrição para as provas de corrida. Por pura coincidência, no mesmo ano a comunidade ganhou a Corrida Rocinha de Braços Abertos, evento organizado pela X3M Sports Business, empresa do atleta e empresário Bernardo Fonseca e patrocinada pela multinacional. Segundo Andrea, uma coisa não levou à outra, mas deixou as duas ainda mais legais. "Nós conhecemos o projeto do Bernardo mais ou menos ao mesmo tempo em que um amigo nosso, o Daniel Levy, nos apresentou a Equipe Rocinha. Não há razões logísticas, econômicas ou estratégicas para esse apoio. A causa é muito simples: o mais importante é estarmos próximos e conectados a esses corredores de verdade, que correm, treinam e se esforçam como todos os outros", frisou a gerente, corredora há 15 anos.
Quando fala de corredores de verdade, Andrea se refere a pessoas que, a despeito da idade ou do ofício, não vivem sem um par de tênis e uns bons quilômetros. Gente que, assim como ela, tem um expediente puxado, cuida da família e, mesmo assim, é capaz de se dedicar aos treinos para uma maratona. Gente como Antonio Carlos Ferreira da Silva, o Cacau, presidente da Associação dos Corredores da Rocinha, nome oficial da equipe criada há 25 anos sobre o forte pilar de sua paixão pela corrida, esporte que aprendeu a amar ainda garoto, nos tempos da escola. Por um desses caprichos da vida, Cacau não conseguiu cursar a faculdade de Educação Física. Já fez muita coisa na vida para sustentar a família – foi ambulante, motorista de "transporte alternativo" e hoje é balconista numa farmácia. Só não se perdeu da corrida.
O grupo criado, na época, informalmente, é hoje um de seus maiores orgulhos. "Com o passar do tempo, além de crescer, fomos ficando mais conhecidos e organizados, graças à ajuda que sempre recebemos", lembra Cacau. Hoje, a equipe está nas redes sociais, tem um site e até um tesoureiro – que administra a verba doada, no ano passado, pelo Banco Santander, e o apoio da Rede Masan, responsável pelas cestas básicas que a garotada da equipe leva para cada todo mês – além de treinadores.
Se, no início, o negócio era se enfiar num par de tênis e correr, hoje, planilhas, periodização e educativos fazem parte do cotidiano dos corredores da Rocinha. Os treinamentos regulares começaram há cerca de seis anos, quando o educador físico Marcelo Vaz conheceu a equipe, trabalho que foi continuado por Iazaldi Feitoza, da equipe Carioca Runners, dois anos depois, e atualmente é capitaneado pelo triatleta Percy da Silva. Nesse quarto de século de existência, a equipe se fortalece pelas muitas histórias e, sobretudo, o suor na camisa.
Tanto pessoas quanto apoio, muitos já passaram por ali. Mas nenhum caiu tão bem quanto a Asics, que tem seu nome criado em cima do acrônimo para a fase latina "anima sana in corpore sano", traduzida para o português "mente sã em corpo são", e endossado por Andrea Longhi. "O que mais me chama a atenção não é a ajuda que damos ou o retorno que temos; mas sim que todos nós, os corredores, somos iguais. Cacau na Rocinha ou a gente aqui no conforto da capital paulista nos conectamos em um lugar único que o esporte nos dá: somos irmãos. Irmãos de tênis, irmãos de performance, irmãos de objetivos, irmãos de treinos. Enfim, o que nos une é a mesma coisa e é isso que me encanta neste projeto: a oportunidade de achar os iguais num lugar visto como o tão diferente."

GENTE SIMPLES. A Equipe Rocinha reúne moradores da comunidade de todas as idades, dos 14 aos 70 anos, num total de 50 corredores. A turma treina quase que diariamente nas areias de São Conrado, a praia mais próxima da comunidade. No início, eram cinco ou seis pessoas. "Sempre participávamos da Corrida de São Sebastião, que na época era na Rocinha (hoje é no Aterro do Flamengo), e sempre nos encontrávamos correndo. Resolvemos montar uma equipe." Foi simples assim. Ou quase. "Para fazer o uniforme e pagar outras despesas, tínhamos de passar caixinha. Cada um ajudava com o que podia", lembra Cacau, frisando que a essência do grupo, de ser uma família improvisada, ainda existe. "Estamos sempre juntos, não só em dias de treinos ou de provas. Aqui, um ajuda o outro; o suporte é emocional também", disse, lembrando que a violência vive à espreita na comunidade.
Nesse tempo todo, alguns, certamente, já foram perdidos, mas para muitos, ainda há esperança. Uma prova de que vale a pena persistir é Edimicio Batista Ramos. Remanescente do grupo inicial, o eletricista, de 57 anos, nascido e criado na Rocinha, é uma dessas almas salvas pelo esporte, como Cacau gosta de definir. Hoje, Edimicio vê na corrida sua segunda chance. Foi com a ajuda dos treinos na Equipe Rocinha, uma passada atrás da outra, que ele se livrou dos sofrimentos causados pelo alcoolismo e deu um novo sentido à sua vida. "Acordo todo dia às 6 horas para correr. Além dos treinos com a equipe, corro a cidade inteira. Leme, Vista Chinesa, Paineiras; não tem asfalto no Rio de Janeiro que meus pés não conheçam", orgulha-se.
Desde muito cedo frequentando o projeto, David Magno da Silva, de 14 anos, vem treinando e se destacando na equipe. Cacau não esconde o orgulho pelo garoto franzino e rápido, que considera ter futuro no mundo das corridas – seu melhor tempo é 21:50 nos 5 km. Foram seus bons resultados nas pistas e os efeitos positivos que eles estavam levando para a personalidade do garoto que chamaram a atenção de seu pai. Natural de Barbacena, Minas Gerais, Nilo, 36 anos, está radicado na Rocinha há 19 anos, onde constituiu família. Ex-trabalhador rural, agora armador na construção civil, Nilo deu suas primeiras passadas inspirado pelo filho e, como foi bom o exemplo e fala mais alto o DNA, hoje já obtém bons resultados. Sua primeira corrida de 5 km pela equipe já foi abaixo dos 30 minutos. Em sua primeira meia-maratona, cravou um tempo de 1h31, e hoje Nilo já corre abaixo de 20 minutos nos 5 km e na etapa paulista da Golden Four fechou os 21 km em 1h24, tornando-se uma verdadeira revelação na equipe.

PELO SOCIAL. Há cinco anos, a equipe criou o projeto "Rocinha Correndo Para o Futuro". O objetivo é incentivar jovens moradores da comunidade, de 13 a 17 anos, a entrarem no mundo do esporte. No momento, um grupo de dez adolescentes recebe material esportivo, assessoria técnica e uma cesta básica mensal para integrar a equipe. A exigência, além da disciplina e o comprometimento com o esporte – o trato é perder, no máximo, três treinos por mês -, é estar matriculado na escola e ter boas notas no boletim. Inicialmente selecionados pela "Corrida de Natal da Rocinha", uma prova para crianças que a equipe chegou a organizar durante alguns anos, os jovens participantes do grupo agora são encaminhados pelas ONGs que funcionam na comunidade.
Adailton Pereira da Silva, estudante de 20 anos, tinha apenas 13 quando venceu a distância de 800 metros da "Corrida de Natal", que mudaria sua vida. Natural de São Luís do Maranhão, o rapaz veio para o Rio de Janeiro bem pequeno, com os pais, há 12 anos, em busca de uma vida melhor. Hoje, Adailton, que cursa Educação Física, faz parte do grupo adulto da Equipe Rocinha e ajuda a treinar os mais jovens. "No início, eu nem gostava de correr, mas achei tão legal as pessoas da equipe que passei a gostar de corrida também", ri o jovem, cujo sonho é subir ao pódio da Meia Maratona do Rio de Janeiro, sua distância preferida.
Cacau faz questão de frisar que o objetivo do projeto não é a formação de campeões. Para ele, o principal é dar uma chance à garotada de conhecer os benefícios que o esporte traz para a vida pessoal, e afastá-lo das coisas ruins que qualquer comunidade tem. Cacau ainda sonha com a realização das obras do PAC 2 (Programa de Aceleração do Crescimento) na Rocinha, prometidas pelo governo federal. O PAC 1, que permitiria a ampliação do projeto, já furou, mas a esperança de ter uma pista de atletismo na comunidade vem sendo renovada com a segunda parte do programa. "Se a pista for mesmo construída, as crianças da comunidade, e não apenas os adolescentes, poderão participar do nosso projeto, já que não precisariam sair da favela para treinar", disse o presidente da Equipe Rocinha.

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