Antigamente, quando a ciência e a tecnologia não eram responsáveis pelo conhecimento e o uso que dele se faz, correr era algo que se fazia de modo espontâneo e do jeito particular de cada indivíduo ou cultura.
As pessoas corriam e percebiam o esforço físico por meio de critérios subjetivos que se orientavam pelas sensações de vigor, cansaço, fadiga e exaustão.
Nequelas épocas remotas, eram os pés que ditavam o ritmo, indicavam a direção e traçavam o percurso. Não havia dúvidas sobre a capacidade de realização de tal esforço, pois o mesmo era conduzido pelas próprias sensações que emergiam do corpo.
O contato direto com o solo – não um solo feito de asfalto, porém de terra, areia ou grama; não com calçados especiais, mas com os pés descalços – juntamente com a aceleração das funções fisiológicas, proporcionava uma eficácia do mecanismo proprioceptivo que, de modo natural, ajustava o organismo conforme a intensidade e a duração do esforço solicitado.
Com o desenrolar da história da humanidade, entretanto, a relações sociais mudaram, os novos conhecimentos avançaram sobre o saber popular, o mundo transformou-se pela economia.
UMA NOVA DÚVIDA. Aproveitando o debate acerca da temática da edição de julho de 2012 da CR sobre "Ser escravo do corpo ou das planilhas?", lanço aqui outra discussão que segue, entretanto, a mesma perspectiva: deve-se correr com os pés ou com a cabeça?
O que parece óbvio, num primeiro momento pode, todavia, não ser tão evidente. Há certa confusão, algo que fica meio nebuloso quando se procura fazer distinções deste tipo. Afinal, todos correm com os pés, naturalmente! Porém, são os pés responsáveis pelos esquemas táticos adotados durante os treinos e as competições?
Assim, seriam os pés – aqueles que conduzem – os conduzidos? Manda a cabeça e os pés obedecem? Retomando os primeiros parágrafos, a resposta é "sim". No mundo contemporâneo, onde a ciência e a tecnologia se impõem como conhecimento e instrumento legítimos da ação humana, nada mais normal do que correr com a cabeça!
Claro que, nesses modos distintos de fazer a mesma coisa – correr – há algumas diferenças básicas. Quem corre com a cabeça, geralmente tem todo um esquema prévio – um planejamento – de todos os passos que serão dados, seja no treinamento ou na competição.
Esse é o modo racional de correr, fruto de um processo social determinado pela racionalidade científica que se propôs como a maneira "correta" de se conhecer o mundo. Para se fazer uma boa corrida, portanto, o indivíduo deve ser capaz de planejá-la em seus pormenores, dividi-la e subdividi-la em quantas partes forem necessárias para se poder alcançar a sua "essência".
Correr com a cabeça implica olhar a corrida de longe, fazer um mapeamento do percurso, das possibilidades, fazer testes, ajustar esforços por meio artificiais, utilizar o conhecimento da ciência e os equipamentos que a tecnologia oferece como suporte para o desenvolvimento da ação.
O CONHECIMENTO MANDA. Correr com a cabeça é ter orientação técnica de um profissional especializado – aliás, de vários, pois de quantos especialistas precisa um corredor para bem correr? Educadores físicos, nutricionistas, fisiologistas, cardiologistas, fisioterapeutas… Dessa forma, correr com a cabeça é estar submetido à lógica da fragmentação do conhecimento.
Ainda mais, quem corre com a cabeça deve estar preparado para absorver as novidades do mercado de equipamentos esportivos que, de modo sistemático e impressionantemente regular, lança ao consumo "ferramentas" forjadas em materiais cada vez mais sofisticados pela indústria.
Porém, quem corre com os pés, não leva nada disso em consideração. Correr com os pés é deixar-se conduzir pelo percurso, que os próprios pés vão traçando, enquanto se corre. São os pés que direcionam o corpo para subir uma montanha ou não, fazer esta ou aquela trilha, seguir por este ou aquele caminho. A cabeça acompanha, maravilhada!
É quase uma intuição, correr com os pés. Há de se ter tal confiança na própria vontade ou capacidade de esforço que nenhum teste psicológico ou emocional ainda está habilitado a desvendar tais mistérios do corpo. Quem assim o faz, descobre novos horizontes que vão se abrindo a cada passo.
Quem corre com os pés tem a sensação da liberdade do "sentir-se vivo", pois se encontra livre de todo o aparato conceitual e instrumental que fazem do mundo uma complexidade de eventos e um emaranhado de situações que acabam por retirar do indivíduo a sua capacidade de ser sujeito de suas próprias ações.
Além do mais, quem corre com os pés resgata a ancestralidade primordial do ser humano, quando os humanoides desceram das árvores para, num impulso de necessidade, partir, eretos, em busca de melhores condições de existência.
Correr com os pés, portanto, é "rememorar" uma origem histórica ancestral; correr com a cabeça, fica na conta da modernidade, do contemporâneo. Afinal, a ciência e a tecnologia que permeiam o mundo esportivo ainda não completaram cem anos de vida. Mas o homem corre há, pelo menos, sessenta e cinco milhões de anos!
Dito todas essas coisas, chega-se à conclusão – apressada – de que correr com os pés é melhor do correr com a cabeça! Porém, não se trata de afirmar o que é certo ou errado, melhor ou pior. Tudo tem seu tempo e sua época. E o mundo de hoje, com toda a diversidade com que se apresenta, tem espaço para todo tipo de manifestação.
Entretanto, pode-se afirmar, sem medo de errar, que são coisas diferentes esse negócio de correr com os pés ou com a cabeça. Se este ou aquele "método" é mais ou menos eficiente (= produtivo) tal julgamento deveria ficar para cada um em particular.
Por outro lado, por que não fazer as duas coisas? Por que não experimentar coisas diferentes daquelas que se faz rotineiramente e que nunca se pensa nas causas ou consequências? No cotidiano urbano, principalmente, as coisas são feitas quase que de modo "robotizado"!
Assim, para quem só sabe correr com os pés, por que não vivenciar o universo da ciência e da tecnologia para, quem sabe, ampliar ainda mais o conhecimento de si, do mundo e da vida? Ciência e tecnologia estão aí para nos auxiliar naquilo que não podemos fazer por si só. Infelizmente, muitos enxergam o conhecimento científico e os recursos tecnológicos como crenças sagradas e dogmas invioláveis que, infelizmente, mais atrapalham do que ajudam.
CORRIDA LIVRE. Por outro lado, para os metódicos e constantes no uso da tecnologia e na aplicação dos conceitos científicos, por que não reservar um dia da semana para correr de modo livre, leve e solto sem preocupação com cronômetros, GPS, monitor cardíaco, lactato, VO2 etc?
Ser escravo do corpo ou das planilhas? Seguir a objetividade científica ou ser intencional e intuitivo? São dilemas do mundo contemporâneo que espreitam e interpelam os corredores a cada passo. Mas, afinal, o que vale mesmo é fazer o que se gosta, de modo autêntico – seja orientando-se por este ou aquele princípio ou, ainda então, buscar a "mistura" ideal para cada caso em particular.
Para quem corre com a cabeça, siga o planejamento em detalhes, pois ele pode ser a chave do sucesso. Para que faz o mesmo – correr – todavia seguindo o "instinto" natural de seus pés, aproveite e desfrute o prazer desse momento.
Mas, para quem souber mesclar os elementos, elabore o plano, mas não seja rígido em sua execução. A flexibilidade é o segredo. Corra com a cabeça até onde os pés permitirem. Ou seria o inverso? Afinal, dá para ser competitivo correndo só com os pés? Dá para ter prazer na corrida, fazendo isso só com a cabeça?
Deixo a resposta para você, amigo corredor!
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Muito legal! Sempre que fico um tempo sem correr me permito esse “treino ancestral”, corro sem qualquer preocupação com o tempo ou a quilometragem, as vezes só para chegar até a casa de um amigo. A sensação de liberdade me devolve o desejo de continuar correndo sempre.