A maioria dos corredores em algum momento já ouviu falar dessa prova sul-africana. Para os ultramaratonistas ela encabeça a lista de desejos. Para quem não conhece, segue uma rápida introdução: é a mais antiga, mais popular e maior, em número de inscritos, ultramaratona de asfalto do mundo. Criada em 1921 por um soldado para homenagear seus companheiros de combate, este ano comemorou 90 edições. São 89,2 km nos anos pares, descendo de Pietermaritzburg para Durban, e 87,7 km nos anos ímpares, no sentido oposto.
Relatos sobre a Comrades você vai encontrar aos montes, desde o planejamento de viagem, as planilhas de treino, toda a tradição da prova, o hino sul-africano, a shosholoza, o canto do galo na largada, o tamanho da medalha. O que tento fazer nas linhas a seguir é mostrar outro lado, de uma pessoa que não gostava de correr e acabou fazendo uma ultra.
Para contar um pouco de tudo isso, penso que devo falar antes da minha relação com a corrida, já que um dia eu não corria, não gostava de correr e atravessar uma distância dessas correndo não fazia parte dos meus pensamentos, nem mesmo dos mais insanos.
Na infância e adolescência eu corria, mas com um objetivo único e simples: atrás da bola. Eu adorava jogar futebol. Levava a sério, treinos 4 vezes na semana, jogos aos domingos. Ponta direita do time feminino da minha cidade. Dos 13 aos 16 anos foi assim. E eu corria muito, afinal de contas futebol de meninas dessa idade não é jogado na bola, todo mundo sabe. É aquela correria e gritaria, e eu corria o campo todo com a bola e atrás dela.
Depois de um tempo, o futebol não fazia mais a cabeça e eu fui patinar e pedalar. Tudo menos correr, porque no início dos anos 2000 correr não era "legal", como é hoje. Até que os patins me levaram ao ski, e para quem pensava que era só deslizar, fui pega de surpresa; a corrida fazia parte dos testes físicos que eu teria que passar para me manter na equipe brasileira, que era meu objetivo. De 2008 a 2010 a corrida se resumia a isso para mim, melhorar a minha condição física para poder esquiar.
Morando em um país tropical, meus treinos eram realizados com o rollerski (um esqui com rodas, versão de verão utilizada por todos os atletas deste esporte, da elite nórdica aos primos pobres tropicais desprovidos de neve, que é nosso caso), bike e corrida. Esta para acumular horas de treino e volume, nada específico do treino de uma corredora, mas sim para construir uma esquiadora.
O plano deu certo. Melhorei bastante minha condição física, já que o ski cross country exige muito, somos os maratonistas da neve. Esquiava cada vez melhor. Para quem em 2007 não sabia nem esquiar, muito menos aguentava correr, em 2009 eu já era vice campeã sul-americana de biatlo de inverno (ski cross country combinado com o tiro de carabina, esporte militar). De lá para cá são 17 medalhas em campeonatos sul-americanos, vários outros títulos e participação nos últimos 4 campeonatos mundiais da modalidade defendendo a equipe nacional.
INTERESSE PELA CORRIDA. Mas como tudo nessa vida não acontece em fatos isolados, fora do "meu inverno" que era de julho e agosto e depois de dezembro a fevereiro no hemisfério norte, aconteciam muitas outras coisas no verão e no asfalto, e eu cada vez mais interessada pela corrida. Nossas escolhas e interesses são muito parte do que somos como pessoa, mas muitas coisas podem ser iniciadas pela influência de outras. E na corrida foi assim pAra mim.
Meu preparador físico do ski na época (e o mesmo até hoje) era corredor, e em nossas conversas sempre me contava as histórias de suas corridas. Foram essas histórias contadas por ele que me levaram à primeira prova de rua em setembro de 2010, a primeira de montanha em março de 2011, a primeira ultra em março de 2013.
Junto a esse treinador (Beto Carnevale), estavam as pessoas que ele treinava e que corriam junto com ele, e foi por conta dele e de todo esse pessoal que comecei a competir em provas de revezamento, maratonas, provas de pista, de montanha, todo tipo de corrida. E parece que eu escrevi aqui que não gostava de correr? Sim. Mas hoje não me vejo sem a corrida.
Toda essa história de ski no meio de um texto sobre uma ultramaratona no asfalto sul-africano pode parecer um devaneio. Mas é justamente o oposto. É para mostrar a realidade. O mundo da corrida às vezes parece que é feito por gente que correu a vida inteira, que nasceu correndo desde que o mundo é mundo, que fez muitas provas, tem muita experiência. Amedronta quem está chegando agora, e de cara já pensa que nunca vai correr como esse povo todo corre, ou pelo menos fala que corre.
NA COMRADES. Histórias à parte, cada um tem seus desafios pessoais, seja na vida pessoal, profissional e na corrida. Narrar aqui quantas batatinhas eu comi durante a ultra africana, em que subida eu caminhei ou deixei de caminhar, quantos "green numbers" (quem completou mais de 20 Comrades) eu vi abandonarem a prova, não atingiria, você leitor, do jeito que eu realmente gostaria. Fico muito mais feliz se causar uma reflexão: é mesmo necessário fazer uma ultra?
Sofri muito durante a prova, mesmo estando acostumada a isso. Meu esporte de inverno gera muito desconforto e sofrimento. Realizar esforços iguais ou maiores que de uma corrida a temperaturas negativas não é nada prazeroso. Estaria mentindo se dissesse que senti algum prazer quando estava no asfalto de Durban a Pietermaritzburg.
Não fiz a prova que queria; poderia ter concluído em um tempo menor, que as 9h11. Tampouco fiz os treinos que deveria. Me machuquei faltando 4 semanas para a Comrades e meu treino mais longo foi de 44 km; gostaria de ter feito pelo menos um de 60. Mas nem tudo sai como a gente quer, na verdade quase nada.
E se você, nesse momento tem mais dúvidas do que certezas, sobre as suas corridas e se deve encarar uma ultra, eu também tenho minhas ultra dúvidas, se volto ou não em 2016 para descer em busca do meu back to back. Nem todo mundo tem o desejo, vontade, perfil, seja lá o que for, para realizar uma ultra.
Não se deixe levar por essa onda exagerada de alguns corredores. Tem gente que mal saiu dos 10 km e já está falando em maratonas ou mais. Cada um sabe onde mete seu nariz, mas a corrida sem treinos gradativos e distâncias progressivas, respeitando a individualidade de cada um, cobra e cobra caro, lhe deixando do jeito que você menos gosta: longe da corrida.
Talvez se a gente pensar como os africanos, no sentido de a prova ser muito mais uma questão de crença, quase que uma peregrinação, nossa visão mude. Todo o respeito a esse povo apaixonado pelas longas distâncias. Se alguém neste mundo nasceu correndo, foram eles.
Vitória sul-africana
A 90ª Comrades, dia 31 de maio, na África do Sul, teve dobradinha sul-africana no masculino e feminino e 13.006 concluintes, sendo 87 brasileiros, de acordo com resultados publicados no site oficial, o www.comrades.com.
Os vencedores foram Gift Kelehe, com 5:38:36 (ritmo de 3:52/km) e Caroline Wostmann, com o tempo de 6:12:22 (4:15 por km), nos 87 km. Os melhores brasileiros foram Famese da Silva, em 6h54, e Mika Picin, colaboradora da CR, que fechou em 9h11. A próxima edição, em 2016, será em "descida", com 89 km.
Em função dos 90 anos, a prova teve 22.379 inscritos (costuma ser menos de 20 mil), dos quais 117 brasileiros. A ultramaratona tem largada às 5h30, ainda escuro, neste ano saindo de Durban, litoral, e subindo para Pietermaritzburg, na distância total de 87 km.
Apesar dos mais de 22 mil inscritos, 20 a 25% não costuma aparecer para pegar o kit. Como as inscrições são feitas com muita antecedência, por vezes problemas diversos acontecem com o corredor (principalmente não ter se preparado como gostaria ou deveria), que acaba desistindo de enfrentar a longa distância. Há pontos de corte no percurso, mas apenas 10 a 15% não consegue completar no tempo-limite exato de 12 horas, com exceção dos anos com temperatura elevada, que são raros.
A absoluta maioria dos participantes é formada por corredores sul-africanos e predominam pessoas brancas, apesar da população da África do Sul ser majoritariamente negra. A Comrades foi, durante muitos anos, proibida para negros e mulheres.
Para quem já correu várias maratonas, a ultramaratona sul-africana é quase imperdível. Desde que a CR passou a destacar a prova, e especialmente depois que o editor Tomaz Lourenço fez a Comrades duas vezes (descendo e subindo), para comemorar seus 60 anos, a presença de brasileiros, que era inexpressiva, começou a crescer e tem ficado em torno de uma centena nos últimos anos.
Segundo o editor, "o melhor da Comrades é treinar para ela, por vários meses, sentindo a melhora no condicionamento, com longões cada vez maiores, que precisam necessariamente passar de 60 km, para que, lá na África, completar seja um imenso prazer e se tenha uma sensação de vitória indescritível."