Já se passaram mais de dois anos desde a última vez que falamos sobre corrida descalça ou quase nesta seção da CR, e a abertura daquele texto colocava essa forma de correr como um fenômeno novo, que ainda não sabíamos se era passageiro ou tinha chegado para ficar. Agora já sabemos: a corrida descalça ou com tênis mínimo é uma realidade crescente, com cada vez mais adeptos. O movimento é forte o bastante para que as grandes empresas de produtos esportivos lancem suas próprias versões de calçados minimalistas.
Aliás, é incrível como a indústria consegue dar a volta em tudo para não perder mercado. O interessante é que junto com o interesse do público e o aparecimento de novos produtos, cresce também a atenção de pesquisadores sobre o assunto, e de 2010 para cá diversos trabalhos surgiram tentando entender o que tão especial acontece quando se começa a correr descalço ou quase, ao invés de algum tênis "convencional" nos pés.
A desconfiança de que os tênis não são tudo o que se pensava não é nova. Já não é de ontem que existe um certo "pé atrás" (com o perdão do trocadilho) quanto à real eficácia do uso de calçados. Pesquisas mostram que corredores tocam o solo com mais força quando acreditam estar usando calçados melhores, o que prejudicaria qualquer efeito positivo do tênis em si. Da mesma forma, se dissermos para um corredor experimentar um tênis ruim e um tênis bom, sua pisada mudará significativamente, para pior com o tênis "bom", ainda que na realidade os dois calçados sejam exatamente iguais.
Para alguns cientistas, o uso de calçados faz com que o pé perca parte sua capacidade de propriocepção, que é o mecanismo através do qual o corpo percebe a si próprio, por assim dizer. Nosso pé, por exemplo, possui sensores de pressão que teriam função de registrar o impacto causado pela pisada "prejudicada" pelo amortecimento dos calçados. Mesmo que exista um calçado "trabalhando" no lugar dos sistema de propriocepção, os defensores da corrida descalça afirman que, ao se desligar estes mecanismos de percepção do organismo, nosso corpo mais facilmente se expõe a mecânicas de corrida menos favoráveis, que propiciam o aparecimento de lesões. Isso ocorreria porque se nosso sistema proprioceptivo estiver funcionando corretamente, nossa passada na verdade se torna mais irregular, com pequenos ajustes a cada passo, dependendo do tipo de solo, velocidade etc. Com o calçado, a passada se tornaria mais engessada em torno de um mesmo padrão, o que aumentaria o estresse sobre algumas poucas estruturas.
Ainda com relação à eficácia do uso de calçados para evitar lesões, outro ponto fraco diz respeito ao tipo de pisada. Este sempre foi um dos principais argumentos de venda de um tênis de corrida: além do amortecimento em si, eles ajudariam a controlar os desvios excessivos causados por deformações do arco plantar. Corredores podem apresentar três tipos de pisada: os chamados supinadores, que possuem um arco acentuado embaixo dos pés; os pronadores, com os arcos desabados (pé chato); e os neutros, com arcos normais.
EVITAR LESÕES? Boa parte da tecnologia dos calçados é desenvolvida em torno de oferecer mais suporte para os pronadores, para evitar movimentos excessivos da articulação do tornozelo, e mais flexibilidade de movimento para os supinadores. Apesar dos calçados específicos para os tipos de pisada serem a regra, ainda existe quem se pergunte se eles realmente ajudam no combate às lesões.
No entanto, medir este tipo de variável é difícil e isso coloca a vantagem do lado dos fabricantes, pois pelo menos teoricamente seus argumentos fazem sentido. Um dos maiores estudos neste campo foi publicado em 2009, realizado com recrutas do exército americano. Utilizar soldados é uma excelente opção neste tipo de pesquisa, pois é possível exercer grande controle sobre a rotina dos participantes.
O trabalho em questão contou com cerca de 3.000 participantes, que foram divididos em um grupo controle e um grupo intervenção. Todos os recrutas realizaram um teste de pisada antes do início de um programa de nove semanas de treinamento. Dependendo do tipo de pisada (neutro, supinador ou pronador), os recrutas do grupo de intervenção receberam uma lista de tênis que poderiam ser utilizados, dependendo de como os produtos eram classificados pelos próprios fabricantes. Os participantes do grupo controle, por outro lado, receberam um tênis para pisada neutra, o New Balance 767ST.
O principal resultado do trabalho foi que ao final das nove semanas a incidência de lesões que poderiam ser atribuídas ao tipo de calçado foi a mesma nos dois grupos, o que levou os autores a concluir com a recomendação de que o exército não precisaria mais fazer o teste de pisada nos novos recrutas. Ou isso ou o 767ST é o melhor calçado da história e ninguém percebeu, o que infelizmente não parece ser a melhor explicação.
NOVO ESTILO DE PISADA. Se os calçados não são tudo aquilo que se imaginava, o que muda quando simplesmente se deixa de utilizá-los? A principal mudança ocorre no estilo de corrida. Quando se corre de tênis, uma proporção muito maior de corredores utiliza o calcanhar como ponto inicial de contato com o solo. Assim, todo o impacto é transferido diretamente para as estruturas superiores, o que podem levar a lesões mesmo que parte do impacto tenha sido absorvida pelos calçados.
Quando se está descalço, a tendência é iniciar o contato com o solo utilizando o terço dianteiro do pé, pois dessa forma a articulação do tornozelo e o pé em si ajudam a amortecer o impacto com o solo. Esta mudança ocorre porque aterrisar diretamente com o calcanhar é simplesmente muito dolorido quando se está descalço, o que aliás é apontado por alguns como um sinal de que não deveríamos fazê-lo, ao invés de inventar os tênis.
Mas mudar o ponto de contato inicial com o solo não é uma tarefa simples. A mudança da passada exige toda uma alteração na coordenação muscular, e com isso músculos que antes estavam inativos passam a ser mais exigidos, e vice-versa. Especialistas da área sugerem que este tipo de corrida é muito mais eficiente e menos propenso a lesões crônicas.
Daniel Lieberman, antropologista da Universidade de Harvard, defende que os humanos evoluíram ao longo de milhões de anos como corredores de longa distância, e durante este período nossa evolução sempre foi em torno da corrida descalça. Apenas muito recentemente é que começamos a utilizar calçados com amortecimento, e nossa estrutura anatômica ainda não está adaptada aos calçados. Lieberman defende que as diferenças mecânicas entre a corrida descalça e com calçados podem ter um papel crucial no desenvolvimento de lesões crônicas, pois segundo ele "lesões têm mais a ver com como as pessoas correm do que com o que elas têm nos pés, mas o que elas têm nos pés pode definir a maneira com elas correm".
Surge aqui um ponto de extrema importância: o importante talvez não seja correr descalço ou não, e sim as mudanças mecânicas que surgem quando se corre descalço. Ou seja, não adianta correr descalço se a técnica não mudar junto. Um estudo publicado em 2011 por médicos da academia militar de West Point, em Nova York, relatou dois casos de corredores experientes com fraturas por estresse no segundo metatarso (um dos ossos do pé), algumas semanas após terem iniciado na corrida descalça. Este tipo de lesão é comum em corredores, especialmente naqueles que costumam fazer o contato com o solo primeiramente com o calcanhar.
A conclusão dos médicos foi de que estes corredores possivelmente começaram a correr descalços sem no entanto modificar sua pisada, o que pode ter aumentado subitamente a carga imposta aos seus pés. Para que a corrida descalça seja experimentada com sucesso é preciso que o processo seja feito lentamente, substituindo-se pequenas partes do volume total de corrida ao longo de semanas, até que se esteja preparado para uma transição completa. É possível, por exemplo, começar substituindo 30% do volume de corrida por treinamento descalço, e cada uma ou duas semanas aumentar em dez pontos percentuais, para que evite lesões de sobrecarga causadas por falhas técnicas.
CORRIDA MAIS ECONÔMICA. Mecanicamente, a corrida descalça força o corredor – em tese – a utilizar o terço dianteiro do pé para tocar o solo. Com isso, a passada tende a ficar mais curta, pois o joelho precisa flexionar um pouco mais para colocar o pé em posição. Esta parece ser outra vantagem desta técnica de corrida, aliás. Durante a corrida "calçada", é comum que corredores toquem o solo muito à frente do seu centro de gravidade, o que é ineficiente, pois o pé trava o deslocamento do corredor.
Com a corrida descalça, como a passada fica mais curta, o pé toca um solo mais diretamente abaixo do centro de gravidade do corpo, sem gerar forças para trás, permitindo ao corredor utilizar menos energia para o seu deslocamento.
Existe também outro motivo pelo qual poderia se esperar que a corrida descalça seja mais econômica que a calçada: o peso dos calçados. Quando colocados no pés qualquer magnitude de peso cria um tipo de pêndulo, e para se ter uma ideia da importância do peso dos calçados na performance, já foi calculado que para cada 100g a mais nos calçados existe um aumento de 1% na demanda energética da corrida. Um aumento desta magnitude, se ocorresse na região de cintura por exemplo, nem de longe teria um impacto tão grande no custo metabólico da corrida.
Baseados nestas duas hipóteses, diversos trabalhos já procuraram comparar a demanda fisiológica entre a corrida descalça e com tênis. Um trabalho de 2010, também americano, investigou justamente esta questão: se correr descalço estava relacionado ou não com um menor consumo de oxigênio (que é equivalente ao custo metabólico na maioria das intensidades). Correndo a 70% de sua capacidade máxima, os corredores tiveram uma menor frequência cardíaca, menor sensação de esforço e menor consumo de oxigênio quando descalços comparados com quando calçavam seus próprios calçados. A magnitude das diferenças, calculada pelos autores, seria o suficiente para alterar a performance em uma maratona em cerca de 18 minutos, número que chama a atenção de qualquer corredor, e quem sabe, o convença a experimentar a novidade.