Releitura Redação 7 de novembro de 2018 (0) (246)

“Caretas de Paris e New York, Sem mágoas, estamos aí…” ** – Dez/2006

Lauter Nogueira – dezembro 2006

Bem, já que começo o meu contato mensal com todos vocês 5 ou 6, roubando escancarada e cinicamente os versos geniais de Caetano, acho que ele não vai ficar muito irritado se eu continuar nessa gatunagem que um dia há de me levar aos tribunais ou, tietagem deslavada, à primeira fila do seu próximo show, e furtar discretamente mais um petardo tirado da genial “Vaca Profana” para poder desaguar na Maratona de Nova York afinal, porque o tempo e as linhas estão passando, e nada de Marilson…

 “Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada…”**

Pode ser essa a síntese do que senti durante a Maratona de NY deste ano, ao acompanhar, primeiro pela internet, depois por jornais e tvs do mundo todo, a vitória de Marilson dos Santos numa prova em que entrou como mero coadjuvante e roubou a cena lá pelos 30 quilômetros e não devolveu mais. Eram muitos os candidatos a protagonistas, artistas principais desta grande obra: tínhamos o recordista mundial da distância (Paul Tergat), o campeão e o vice olímpicos (Baldini e Meb Keflezighi). Tínhamos também Hendrick Hamaala, vencedor ali em 2004 e 2º no ano passado, num duelo sensacional com Tergat. Havia ainda um grupo de corredores do nordeste da África (Etiópia e, principalmente, Quênia) com tempos muito fortes, bem abaixo das melhores marcas de Marilson.

Mas, as maratonas do mundo já estavam ficando meio “caretas”, com essa mania dos africanos de vencerem sistematicamente tudo. Seja Paris, New York (escrevi assim para justificar o título, tá!), Reikjavik (ah, que saudade), Mazatlan (nenhuma saudade), Cuzco… enfim, onde tiver uma maratoninha, lá estão eles para mostrar o caminho aos demais e, literalmente, faturar. Mas as ruas de Nova York este ano nos reservaram uma linda e grata surpresa. Surpresa?

Nem tanto, afinal, Marilson já flerta com bons resultados em maratonas há algum tempo(lembremos Paris, Chicago e o mundial de atletismo em Helsinque) e neste ano ele fez, e muito bem, diga-se de passagem, o dever de casa nas pistas: bateu os recordes sul-americanos nos 5 mil e 10 mil metros. Desta forma, ele fez um upgrade (argh!, perdoe-me, Aurélio) orgânico e biomecânico, colocando-o em condições de brigar, e até vencer, com os melhores do mundo na maratona.

Como já salientei, inclusive mencionando o próprio Marilson como exemplo, em algumas edições atrás: é fundamental, para ser um grande maratonista internacional, tornar-se antes um corredor de fundo (5 mil e 10 mil) de alto nível. Para cada 30 segundos a menos nos 10 mil, você pode baixar absurdos 2 minutos e meio na maratona. Magia negra? Não, fisiologia do exercício!

Esse dever de casa, magistralmente comandado pelo excelente Adauto Domingues (como corria bem os 3 mil com obstáculos, esse cara, na década de 80!), provou-se perfeito durante a prova, pois Marilson teve fôlego (com o upgrade no limiar de lactato) e pernas (melhora biomecânica na velocidade de deslocamento) para acompanhar confortavelmente todos os líderes que se revezaram até o começo da 1ª Avenida, nos 30 quilômetros. A partir daí, ele mostrou que, além de fôlego e pernas, ele tem alma de sobra também. Teve coragem para se despedir de nobres acompanhantes e partir célere, como um menino travesso, rumo ao Central Park.

Não teve Tergat, Baldini, Meb ou qualquer outro medalhão que o acompanhasse.  Pela primeira vez na história da Maratona de Nova York, que nasceu  em 1970, numa brincadeira entre amigos corredores, um corredor sul-americano cruza a linha de chegada no coração do Central Park em primeiro lugar.

Confesso que algumas lágrimas tentaram brotar dos meus olhinhos míopes e cansados, mas foram rechaçadas de imediato, por uma sonora gargalhada, quase um canto latino, de um canto qualquer dessa minha América ladina. Pensei, quase sem fôlego: não acreditaram quando ele resolveu acabar com a brincadeira, e “puxar” durante 5 km (dos 31 aos 36)  o ritmo a exatos 3 minutos por quilômetro, e quando viram que  o moleque, além de travesso, era muito bem treinado, já era tarde demais e seu peito tocava a faixa de chegada, explodindo de orgulho e felicidade. Deu no que deu.

Caretas de Paris, New York, Chicago, Londres …, sem mágoas, estamos aí.

**Vaca Profana (Caetano Veloso)

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