Releitura Redação 10 de setembro de 2018 (0) (174)

Bate canela que eu quero ver…

“Sente na pele a língua do sol
Sente lamber o sol
Lambe com ela a língua do som
Fala de um tempo bom…”

       Miro o espelho sonolento (eu, não o espelho) e levo um baita susto. Não que esteja acostumado a me ver assim, morto de sono e com a escova inerte, enfiada na boca. Mas o que me assusta é não saber se esse ritual diário está se repetindo mecanicamente para dar como encerrado mais um dia, ou, tomara que não, dar início a mais uma tentativa desse planetinha outrora azul, de dar uma volta inteirinha nele mesmo. Eu hein! A Terra e eu já tivemos ambições maiores ao acordarmos.

Desfeita a dúvida, calço meu tênis surrado, visto qualquer coisa idem, engulo 1 xícara do que deveria ser um encorpado e aromático café, mas na verdade tem aspecto e gosto de chá de casca de batata doce, e sigo meu caminho, tentando ganhar as ruas neste finzinho de madrugada, naquele momento crítico, onde desfilam por aí dois tipos especiais de gente: os que partem pra cima do dia com fome de vida e os que dão por encerrada a jornada e voltam pra casa com fome de paz. Gosto de presenciar e participar deste sombrio momento, onde a luz fria e artificial cede espaço a explosão multicor do nascente.

Travo rápido contato com um legítimo representante do grupo rival, o vigia do meu prédio, que bêbado de uma noite insone, grita impropérios contra as minhas primeiras passadas no asfalto frio da minha cidade ainda sonolenta. Em poucos minutos deixo as calçadas para a turma da limpeza urbana e a galera que traz, diariamente, notícias do mundo pro meu café da manhã. Deixo também o sono e a preguiça na última esquina antes de chegar a Lagoa. O ritmo já é outro, agora sim, tenho completo domínio do meu corpo. Já começo a sentir na pele a língua tímida do sol, sinto o sol me lamber. Inclino o meu tronco um pouco mais para a frente e encaixo um ritmo mais forte, quase numa reverência ao Deus Sol. Agora o barulho gostoso das minhas pisadas no cascalho se confunde com o pulsar forte em minhas têmporas.

Já não piso mais o chão do Rio de agora, corro pelas ruas da minha verdadeira cidade, do meu Rio de décadas atrás. Sinto juventude correr em minhas veias. Ouço zumbir em meus ouvidos, músicas que já não tocam mais. Quando me dou conta, sigo em ritmo estonteante, quase olímpico, a sinuosa descida do rio que banhou a minha infância de água e sonhos mornos. Agora é hora de diminuir um pouco, afinal piso firme em solo sagrado e macio gerado pela lava endurecida do Kilauea. O sol e o vento do Pacífico tentam em vão secar meu suor. Deixem ele correr, acarinhando as rugas que não tenho mais. O rio da minha infância se funde e confunde com o Sena, que é um braço do São Francisco, que desemboca no Tejo e vai desaguar no Pomba ou no Doce. Voltar pra casa, contornando a Lagoa hoje, é contornar a Pampulha, Okanagan, Skaha, Vitória e todos os lagos e lagoas do mundo.

Ouço vozes que há muito se calaram e ainda tinham tanto pra me dizer… Travo diálogos improváveis e longos com quem nunca me escutou, discuto seriamente com quem nunca discordou. Sinto-me dono das ruas, dono do tempo…

 

“…Fala por nós a voz do tambor
Voz que traz o meu amor
Lambe com ela o som de bater
Bate canela que eu quero ver…”

    Deixo pesaroso a companhia da Lagoa e do mundo, e de todo mundo, pra trás. A cidade segue agora frenética sua rotina de saltos, assaltos e sobressaltos. E eu retomo às calçadas, trotando leve a caminho de casa. Faço as pazes com o presente, antes de entrar no velho prédio de 4 sonolentos andares. Abro a porta, ainda trazendo comigo os suores dos quatro cantos (geográficos e sonoros) do mundo. Enfim, me dou conta, enquanto alongo um corpo quase cinqüentenário e encharco um tapete quase novo, que o melhor lugar do mundo é aqui, e agora…

  Essa viagem quase lisérgica, misto de alucinação, alumbramento, experiência extra-corpórea (eu, hein, devolvam meu corpo cansado de guerra, já!!) ou pura insanidade pós traumática (o café estava horrível mesmo, juro), costuma ser experimentada por mim de vez em quando. Mas não é algo único, inusitado e a ser pesquisado por cientistas da Nasa ou Arcebispos do Vaticano. Me é relatado com muita freqüência por quem compartilha comigo o hábito viciante de correr. Gente que costuma sair por aí, desafiando a inércia em saborosas corridas mundão afora. Gente que, quando a correria do dia-a-dia ou as mazelas desse cotidiano insano apertam o nó que mantemos desatado em nossas gargantas, volta a se sentir gente, ouvindo o bater ritmado de seus pés no chão doce e às vezes hostil de nossas terras. Como tambores nos chamando para a paz.

 

lauter@lauternogueira.com.br

A Voz do Tambor (Celso Fonseca – Ronaldo Bastos)

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