“Lapidar minha procura, toda trama
Lapidar o que o coração com toda inspiração
Achou de nomear gritando… alma
Recriar cada momento belo já vivido e mais,
Atravessar fronteiras do amanhecer,
E ao entardecer olhar com calma e então….”
Fala-se muito dela. Tentam fotografá-la, mas desistem, talvez por não a terem achado tão fotogênica assim. Tentam pesá-la, pensando que assim poderão decifrá-la. Mas, me responda com toda a sinceridade d’alma (pronto, falei!): Será que a alma de um Pinochet ou de um delegado Fleury pesam o mesmo que as de Neruda ou Zuzu Angel? Cartas para a redação.
Normalmente costumo me preocupar com o peso de um tênis novo de competição, ou com o meu próprio, quando percebo que lembro perfeitamente do último churrasco, mas tenho que fazer muita força para lembrar da minha última corrida. Me preocupo também, com menos intensidade, claro, com o peso do tempo nos meus ombros, mas, besta e irresponsável que sou, dou de ombros.
Lembro agora que a algumas edições atrás (podem ser 5 ou 6, ou até mesmo nunca, pois vindo daqui, nunca se sabe…) escrevi uma frasezinha meio despretensiosa, que com o tempo acabei me afeiçoando a ela. Era sobre a alma peregrina que habita o corpo magro de um corredor de longa distância, ou algo assim. Tenho algumas dúvidas quanto ao formato da frase e, principalmente, quanto ao autor, pois além da minha notória falta de criatividade, sofro também de uma forte inclinação para apoderar-me de frases alheias rotineiramente. Mas, sem tentar distraí-los e fugir, divagando, do motivo principal deste nosso contato mensal, peço que me acompanhem de perto nas próximas linhas…
“Alma vai além de tudo que o nosso mundo ousa perceber
Casa cheia de coragem, vida tira a mancha que há no meu ser
Te quero ver, te quero ser
Alma…”
Cento e sessenta gramas é muito pouco para conter o que certas almas contêm. Quanto deviam pesar as almas de Adhemar Ferreira da Silva em Roma (1960) e Abebe Bikila no México (1968), dois bicampeões olímpicos que, doentes e cansados, participaram de suas últimas Olimpíadas apenas numa reverência ao Olimpismo e em apoio aos seus companheiros mais jovens.
Bikila escondeu de todos que tinha uma fratura na perna, alinhando heroicamente para a largada e, enfim, abandonando, com dores insuportáveis no quilômetro 17. Desse seu ato de heroísmo, brotou o ouro no peito de seu discípulo mais querido. Mamo Wolde vence a maratona olímpica mais difícil de todos os tempos e dedica esta vitória a Bikila. Da brava lição de humildade de Adhemar, faz nascer um medalhista olímpico (1968 e 1972) e, acima de tudo, um grande homem, Nelson Prudêncio e uma escola de excelência de triplistas mundiais, que se mantém firme até os dias de hoje.
Gostaria de passar a todos vocês cinco, seis ou, otimista que sou, sete fiéis leitores, uma historinha contada enquanto sorvíamos um delicioso café, pelo Adhemar aí de cima, num dos poucos e deliciosos encontros, sempre regados a muito café, que tivemos…
Dizia ele que a ouviu de Bikila, ao se encontrarem ao fim dos Jogos de 68, no México, onde Adhemar tinha ido a convite do Comitê Olímpico Internacional e Bikila se despedia da vida esportiva. Contou-me sobre um japonezinho chamado Tsubaraia. Era um corredor de longa distância, que tinha começado uma carreira promissora em maratonas lá pelo início da década de sessenta, mas também era soldado do exército japonês. Conforme seus resultados iam melhorando, Tsubaraia ia se tornando menos soldado e cada vez mais um maratonista de verdade. Enfim, foi convocado para representar seu país nos Jogos de 64, justamente em Tóquio. Seria o orgulho máximo, poder lutar pelo ouro na Maratona em casa, pelas ruas e esquinas de sua Tóquio.
Treinou como um louco, dia após dia, chovesse, nevasse ou fizesse sol. Dizia aos colegas de treinos que poderiam até vencê-lo na maratona dos Jogos, mas teriam que provar que tinham mais alma do que ele. E provaram. Bikila vence com novo recorde mundial, Heathley, da Inglaterra, consegue suportar a pressão de um japonezinho exausto e desesperado por míseros 3 segundos, deixando Tsubaraia com a medalha de bronze e uma frustração do tamanho do Monte Fuji.
Não satisfeito com o desfecho amargo desta Olimpíada, ele volta aos treinos com mais fúria e determinação. Treina insanamente durante quase 3 anos. Melhora seus tempos, acalma aos poucos sua alma sofrida até que, numa tarde fria, ao final de um desgastante treino no gramado em frente ao Estádio Olímpico de Tóquio, seu lugar preferido para os treinos longos, para purgar feridas antigas, como dizia ele, sofre um acidente gravíssimo. Esse acidente lhe deixa hospitalizado por mais de 3 meses e, ao receber alta, descobre que nunca mais poderia correr.
Em janeiro de 1968, dois meses depois de deixar o hospital e a apenas nove meses dos Jogos Olímpicos do México, Tsubaraia se suicidou. Deixou apenas um bilhete enfiado no tênis usado na Maratona Olímpica. Este bilhete tinha três palavras: “Não corro mais”
“Viajar nessa procura toda de me lapidar nesse momento agora
De me recriar, de me gratificar de custo alma, eu sei
Casa aberta onde mora o mestre, o mago da luz, onde se encontra o templo
Que inventa a cor animará o amor onde se esquece a paz
Alma vai além de tudo que o nosso mundo ousa perceber
Casa cheia de coragem, vida todo afeto que há no meu ser
Te quero ver, te quero ser
Alma.”***
*** Anima (Milton Nascimento e Fernando Brandt)