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Analgésicos: quando prevenir pode ser pior que remediar

SAÚDE – Marcelo Dederich – AGOSTO 2009

Comrades, maratona do vale da morte, deca ironman, xterra… Em termos esportivos, os sinônimos para superação surgem mais criativos a cada nova temporada. Na busca por melhores resultados, sublimar a dor é objetivo comum a praticamente todos os atletas, em todos os níveis. Sabedores de que a extenuação física poderá representar tanto a desclassificação de hoje (adeus premiação, adeus patrocínio ou adeus medalha) como a dor de amanhã, muitos antecipam a dose de analgésico, tomando-a antes ou durante a própria competição. Será essa uma boa prática? Será que vale a pena copiá-la? Será?

 

Resposta orgânica a algo de errado que está ocorrendo no corpo, a dor é uma sensação desagradável, que varia do desconforto leve ao insuportável. É, portanto, um aviso, um sinal de alerta, uma forma de proteção. Um mecanismo de defesa que permite ao ser humano evitar tanto as causas como seus fatores de piora. Enquanto certas dores são características de determinados órgãos ou tecidos, outras não permitem que sua origem seja identificada com exatidão, sendo comum que se irradiem.

Para efeito de classificação médica, a dor é dividida em duas categorias: as agudas – que duram de algumas horas a poucos dias e têm causas geralmente conhecidas, e as crônicas – que acontecem em períodos maiores, não raro semanas ou meses, e têm causa desconhecida ou mal definida. Esta última categoria aparece quando o mecanismo da dor não funciona adequadamente ou doenças associadas a ele tornam-se contumazes.

Por tratar-se de uma sensação, a dor não pode ser medida por outras pessoas. Nem pelos médicos, que dependem da explicação do paciente para melhor avaliá-la. As referências ao tipo de dor – queimação, fisgada, cólica, pressão etc, assim como sua localização, intensidade, duração, forma de início, piora e alívio variam de indivíduo para indivíduo e dependem do grau de sensibilidade e tolerância de cada um. Exames clínicos, laboratoriais e de imagem ajudam a determinar causa e gravidade da situação.

Tal qual o diagnóstico, o tratamento também pode ser amplo e variado. Científico ou não, o arsenal de combate às dores é vastíssimo em recursos. Passando por rezas, dietas, massagens, acupuntura, ungüentos, choques térmicos e pelos próprios exercícios, pode ir do velho e bom repouso até a indesejável e sempre arriscada cirurgia. Nos casos em que o médico não detecta risco, remédios para o manejo da dor podem ser usados isoladamente. São os analgésicos.

 

Os analgésicos agem… Se a contribuição das dores agudas para a sobrevivência da espécie é incontestável, difícil continua sendo apontar um papel evolucionário positivo para as dores crônicas. Submetido rotineiramente às duas, o homem aprendeu a conviver com ambas. Mas nem por isso deixou de tentar dominá-las. Nos casos mais graves a tentativa de dominação vira escravidão: analgésicos “pesados” agem no sistema nervoso central, alteram a percepção do indivíduo e acabam por criar dependência. Felizmente são de uso restrito.

Também chamados de drogas antiinflamatórias não-esteroidais (AINES), os analgésicos leves (não opióides) fazem parte da cesta básica dos medicamentos humanos há mais de 100 anos, sendo usados em caso de dores menos intensas. Com prós e contras, ácido acetil salicílico, dipirona, paracetamol, ibuprofeno e naproxeno sódico agem de acordo com suas propriedades químicas.

Sinônimo popular de analgésico e velho parâmetro no controle da dor, a aspirina é também conhecida pelo nome técnico de ácido acetil-salicílico – AAS. Ao prevenir a sensibilização das células nervosas especializadas em sentir a dor (nociceptores), sua atuação se dá, em parte, por suprimir a produção de prostaglandinas, hormônios envolvidos nas reações inflamatórias.

Em contraposição às drogas tipo aspirina, há um grupo de substâncias capaz de bloquear diretamente a sensibilização das células da dor. Atuando por um mecanismo que antagoniza a dor inflamatória, este é o grupo ao qual pertence a dipirona. Já o paracetamol é um analgésico que suprime a dor agindo diretamente nas terminações nervosas. Extremamente potentes, ibuprofeno e naproxeno sódico são analgésicos que, como a aspirina, agem inibindo a produção das prostaglandinas.

 

… e os organismos reagem. Consagrada no posto de analgésico mais antigo, a aspirina tem contra si o AAS, componente que interfere acentuadamente tanto no sistema gastrointestinal, como na coagulação sangüínea. Literalmente a aspirina não é remédio para qualquer um (leia box nesta matéria).  Em alguns países, o uso do AAS foi banido para tratamento terapêutico.

Principal analgésico da terapêutica brasileira, a dipirona tem como atributo positivo o fato de apresentar pouca ou nenhuma interferência sobre o sistema gastrointestinal e a coagulação sangüínea. Mas pode provocar queda de pressão arterial e já esteve relacionada à redução drástica de granulócitos, uma das células brancas do sangue, que servem à defesa do organismo.

Substituto da aspirina e normalmente tomado nas mesmas doses, o paracetamol não apresenta o risco da síndrome de Reye. No entanto, se tomado em excesso, pode causar danos letais ao fígado, principalmente em bebedores inveterados. Nos EUA e na Grã-Bretanha, é a principal causa de hepatite tóxica fulminante, em geral por consumo excessivo. Mesmo em doses usuais, o paracetamol pode aumentar o risco de lesão do fígado, bastando que o uso esteja associado a fatores como febre elevada, hepatite viral, diarréia intensa, jejum prolongado, vômitos abundantes, ingestão de bebida alcoólica e uso simultâneo de certos medicamentos.

A Administração de Alimentos e Drogas dos Estados Unidos (FDA) aprovou o ibuprofeno como medicamento para venda sem receita em 1984. Dez anos depois fez o mesmo com o naproxeno sódico. São, portanto, drogas relativamente recentes. Embora os dois sejam comparativamente mais brandos sobre o estômago que a aspirina, já se sabe que ambos devem ser evitados por pessoas com úlceras ou alérgicas à aspirina. Eles também podem prejudicar o fígado, interferir na coagulação do sangue e aumentam as probabilidades de desenvolver hipertensão, inibindo a dilatação dos vasos sangüíneos e provocando a retenção de sódio.

Os médicos atestam e os trabalhos de pesquisa confirmam: o racional existente por trás dos analgésicos não-esteroidais é simples e de fácil entendimento – dependendo da dosagem e do uso eles passam de mocinho a bandido. Por terem seus princípios ativos presentes em vários outros medicamentos, raramente quem os toma tem noção exata da quantidade que está tomando, o que aumenta os riscos e potencializa o problema.

 

O uso preventivo é desaconselhado. Muitos corredores gostariam de dizer “dor nunca mais.” Entende-se tal desejo. Oposta ao prazer, a dor é uma percepção sensorial aversiva e desagradável. Prejudica o desempenho, confisca pódios, tira patrocínios e rouba medalhas. Preveni-la tem sido um sonho olímpico. “O uso de aspirina e antiinflamatórios como preventivo da dor vem de longa data. Ambos atuam inibindo a função plaquetária através da acetilação das enzimas COX 1 e COX 2 e têm sido usados largamente em atletas. Durante as olimpíadas de Atlanta e Sidney, foi a medicação mais utilizada pela equipe canadense”, afirma Rogério Lachtermacher, médico da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) e da Federação de Atletismo do Rio de Janeiro (FARJ).

Mestre em ciências médicas e envolvido no esporte há 27 anos, Rogério tem uma visão bastante clara a respeito: “Não considero benéfico o uso indiscriminado de nenhum  fármaco para aumentar a capacidade esportiva de alguém, não interessando se é ou não atleta de alto rendimento. Associada aos efeitos negativos que produzem (risco cardíaco, úlcera gástrica,  coagulação sangüínea demorada, possível sangramento intracraniano após pequeno trauma), a banalização no uso destes medicamentos deve ser muito bem avaliada, seja pelo médico que recomenda, pelo treinador que sugere ou pelo esportista que aceita tomá-los. Por inibir o processo de dor, podem levar o atleta a não parar quando apresenta pequenos traumas, agravando assim a lesão.”

 

Camiseta, boné, barra de cereal, isotônico… Embora a prática ainda não tenha chegado por aqui, abrir o kit de largada de uma maratona e nele encontrar amostras de analgésico ou antiinflamatório não chega a ser exatamente uma novidade para quem já participou de provas no exterior. Em meio a mapas e regulamentos, mais que ação agressiva de marketing, ao corredor pouco informado fica a impressão de que a droga é uma recomendação. Não é. Não passa de propaganda. “Nenhum tipo de analgésico deve ser tomado antes de termos a sensação dolorosa, já que muitas vezes é a própria atividade física que ‘nos medica’ contra o processo da dor“, afirma Ricardo do Rêgo Barros.

Coordenador do grupo de trabalho em medicina desportiva da Sociedade Brasileira de Pediatria, como maratonista Ricardo Barros  acredita ser o uso preventivo dos analgésicos um procedimento antiético e condenável: “Deveríamos considerar o uso pré-competição como uma forma de obter melhores resultados perante os oponentes, como um doping. Sou formalmente contra o uso de tais medicamentos nessa situação”, pontua ele.

Números e estatísticas ajudam a entender melhor a questão. Das consultas feitas a médicos esportivos, 85% são de corredores. O corredor sofre, em média, 2,5 contusões e perde um mínimo de sete dias de corrida por ano. De acordo com a revista Runner’s World, dois em cada três corredores se machucam todo ano. Voltar a correr novamente é o que todos querem. E isso o mais depressa possível.

“Em corredores treinados, as dores musculares pós atividade física (Dor Muscular Tardia) não são comuns, e quando surgem têm um tempo limitado, durando em torno de 24h a 48h. No entanto, a dor de origem osteoarticular também é freqüente nesses mesmos atletas, e quando negligenciada pode trazer conseqüências desastrosas como, por exemplo, as fraturas por estresse, principalmente na tíbia e no pé, e as lesões de cartilagem na articulação do joelho”, alerta Moisés Cohen.

Professor livre docente e chefe do Centro de Traumatologia do Esporte da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, e diretor do Instituto Cohen de Ortopedia, Reabilitação e Medicina do Esporte, embora contrário ao uso de qualquer substância que mascare a dor ou ajude a melhorar o desempenho, Moisés Cohen admite que teoricamente o usuário de analgésicos pode sim levar vantagem no momento da competição. “No entanto, para esses atletas, praticantes de esportes de longa duração, fazer uso crônico, preventivo ou não, dessas drogas é mau sinal. Elas podem comprometer seu futuro na modalidade”, alerta mais uma vez.

 

Prevenção natural é melhor. Embora a analgesia preventiva ainda seja discutida na prática da medicina esportiva, uma coisa é o uso preventivo de medicamentos contra a dor que eventualmente poderá aparecer nas provas mais exaustiva; outra bem diferente é a dor que certamente irá aparecer, seja em função de alguma patologia vigente ou por ainda não estar totalmente curada. “A meu ver, nesse segundo caso, o uso preventivo de substâncias caracteristicamente analgésicas ou antiinflamatórias jamais deve ser feito”, diz Osmar de Oliveira, ortopedista e médico do esporte. Em outras palavras, o uso sistemático deve ser evitado. Nesses casos o correto é procurar tratar a causa, não apenas o efeito.

Mas a prevenção contra a dor não é feita apenas com medicamentos. Além dos cuidados com o programa de treinamento e com a escolha de equipamento adequado, vários outros aspectos naturais podem e devem ser observados diretamente pelo próprio atleta. “A recomendação que considero a mais importante é o repouso. Todo atleta precisa descansar pelo menos um dia durante a semana“, diz David Homsi, fisioterapeuta especialista em fisioterapia esportiva. “O fortalecimento muscular também é muito importante. Músculos fortes absorvem melhor os impactos da corrida. Outro aspecto que nunca deveria ser negligenciado pelo corredor é o aquecimento: é ele que prepara e ajusta o corpo às solicitações do exercício. Nas baixas temperaturas torna-se ainda mais fundamental”.

Há muitas boas razões para que se faça atividade física regularmente. Entre outros benefícios, o exercício ativa a função cardíaca, fortalece os ossos, ajuda a controlar o peso, aumenta a flexibilidade e desenvolve a clareza mental. Nas corridas, em meio a tantas coisas boas e entendida de forma correta, a dor não é exatamente uma vilã. Passa a ser em duas situações: quando pouco sabemos a seu respeito ou quando decidimos ignorar os limites que nos impõe. Tendo chegado até aqui, para você que agora se encontra na situação dois, uma última recomendação: prevenir é bom; prevenir naturalmente melhor ainda.

 

A VOZ DA EXPERIÊNCIA

 

Não tem pra ninguém. Acredite: depois de você mesmo, quem mais quer lhe ver correndo é o seu treinador. A razão é simples: quando um corredor pára, o derrotado é sempre o técnico. No caso do uso preventivo de analgésicos, mais que prestar atenção aos ensinamentos acadêmicos que transmitem, ouça-lhes a voz da experiência. Afinal de contas, nas corridas, base é tudo.

 

Márcio Puga. Formado em Educação Física em 1973, treina corredores desde 85: “Usei muito Melhoral na década de 80. Tudo por conta das canelites. Não usava em qualquer prova. Só nas maratonas e só nas do Rio. Não me lembro se esse uso foi por recomendação de alguém. Provavelmente tenha sido de algum médico que corria no grupo. Psicologicamente ou não, o fato é que em termos práticos eu sentia menos dores. Não acho que chegava a influenciar nos meus resultados, mas na performance com certeza. Sem tanta dor, era mais fácil correr. Enquanto o pescoço ficava com a medalha, quem pagava o pato era o estômago.

Atualmente, como treinador, não recomendo o uso preventivo. Mas aconselho quem está interessado a perguntar ao seu médico. Até porque hoje existem analgésicos melhor direcionados para isso. Inclusive em algumas provas longas eles chegam a ser ofertados. Entendo que essas preocupações com analgésicos e antiinflamatórios deveriam ser estendidas a outros produtos. Por exemplo, os saches de gel. Antes eles eram só de carboidratos; hoje têm cafeína, alguns inclusive em dose dupla. Questiono os atletas que transferem para tais produtos suas expectativas de melhoras, não fazendo nada sem eles, quando a eficácia pode ser apenas psicológica. E lembrar que antigamente só bebíamos água. São dessa época meus melhores resultados.”

 

Vanderlei Carlos Severiano, o “Branca”. Professor de Educação Física e treinador de ultra maratonistas desde 1992: “Sim, como corredor cheguei a tomar analgésicos de forma preventiva. Tinha (e ainda tenho)  problemas de má formação na cabeça do fêmur, que se refletem no quadril. Tomava Advil por recomendação e com acompanhamento médico. Não fazia isso nas provas, apenas nos treinos longos acima de 30Km.  Na época, o motivo era a sobrecarga de treinamento diário. Como não tenho mais a preocupação nem o compromisso de competir, e quando treino procuro variar os treinos, não mais necessito desse uso.

Hoje em dia, como treinador, se alguém vem com alguma queixa qualquer, eu normalmente recomendo que marque consulta com um especialista para receber a devida orientação. Independente
de recomendação ou não, sabemos que uma boa parte dos atletas toma por conta própria e sem orientação vários medicamentos.
Porém, como  acompanhamos de perto a evolução dos nossos alunos-atletas, detectamos quando eles lançam mão desses recursos. Particularmente, sempre peço aos meus que tenham consciência e notifiquem a mim ou à equipe de profissionais se estiverem usando ou tomando algo. Se não nos notificarem, e ficarmos sabendo através de algum exame ou só depois de algo errado ter acontecido, com certeza correrão o risco de não mais receberem nossa orientação.”

 

Janete Mayal. Atleta olímpica, representou o Brasil nos jogos de 92, em Barcelona. Desde 2002 treina e forma atletas de alto nível: “Apenas tomei antiinflamatórios quando estive lesionada no tendão de Aquiles. Tomava nos períodos em que a dor ficava insuportável e o balde  com gelo, que costumava usar diariamente, não  era suficiente para eliminá-la. Essa dor me incomodou durante vários anos, até que precisei recorrer à cirurgia. Atualmente, como treinadora, sempre que algum aluno me questiona sobre este assunto, eu recomendo que se dirija ao seu médico, pois ele é a pessoa certa para o aconselhar.”

 

Tadeu Natálio Tymowicz. Pós-graduado em fisiologia e treinamento desportivo; Presidente da Associação Pró-Correr de Curitiba, PR: “Corredor há 38 anos, em algumas situações cheguei a usar sim. Por exemplo, em 1995. Havia feito a maratona de Nova York, e uma semana depois estava correndo a de Curitiba. Tinha chegado no sábado, estava cansado e com dores. Tomei meia hora antes da largada. Fiz a prova normalmente, mas no dia seguinte as dores musculares eram muito intensas. Demorei mais de uma semana para me recuperar. Tomei sem consultar ninguém. Fiz do meu corpo algo que não se deve fazer: um laboratório. Mas quando tive uma lesão no tendão de Aquiles, treinava às vezes sob efeito de antiinflamatórios que eu mesmo pedia. A dor aliviava, mas a contusão continuava. Acabei tendo que fazer uma cirurgia para resolver o problema.

Usei poucas vezes, e não tive tempo para notar diferença nos resultados. Com certeza a dor é um incomodo a mais para o atleta. Quando elimina essa dor quimicamente, ele tem um fator a menos para se preocupar e o desempenho melhora. O que não significa que ele diminui seu tempo, coisa que só os treinos fazem. Não recomendo essa forma de uso aos meus atletas nem aos amigos. Recomendo, sim, muito treino, paciência e determinação.”

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