Como treinador, além dos resultados obtidos com seu principal atleta, desde o início Adauto só acumulou títulos. Confira entrevista exclusiva com Adauto Domingues, que fala do seu início de carreira como atleta e de toda a sua trajetória até virar um dos técnicos brasileiros mais respeitados.
Você começou cedo na corrida de rua. Como foi esse ingresso? Eu tinha 9 anos. Existe uma entidade filantrópica em São Caetano do Sul chamada Patrulheiros Mirim (na época, Guarda Mirim). Eu passava muito tempo na rua jogando bola e minha mãe colocou meu irmão e eu nessa entidade. Havia duas coisas paralelas: as aulas de Educação Física e a banda (ou fanfarra). Ou você entrava para a banda ou ia para o esporte, ou para as duas coisas, como aconteceu comigo. Como não havia verba para esporte coletivo, como montar jogo de camisa e tudo mais, era mais fácil correr. Eu corria quase todas as provinhas. E todas as distâncias, até velocidade. No início, eram provas de garotada. Em paralelo a isso, eu levava a música. Toco sax ainda hoje devido a isso, e por partitura. Chegou um momento em que comecei a me destacar na corrida. Fazia alguns treinos onde joga hoje o São Caetano. Coincidentemente, o diretor do atletismo do Sesi de Santo André, Armando Corujeira, morava em frente ao estádio. Ele me viu treinando e me convidou para treinar com o professor Asdrúbal Baptista. Eu tinha 17 para 18 anos e uns 300 troféus em casa, mas quase não treinava. Só corria as provas. Quando ele me convidou, eu estava na época do Exército. "Se você for dispensado, você vem para o clube", ele disse. Meu pai tinha falecido em 1979 e minha mãe vivia só da aposentadoria e algumas coisas que fazia. Meu irmão também trabalhava. Eu tinha feito Senai e era metalúrgico. Não havia muito desemprego na época e minha mãe falou: "Pelo que você ganha agora, tenta um ou dois anos. Se der certo, você continua. Se não der, volta a trabalhar". Arrisquei. Acabei nem ficando no Sesi de início. Me colocaram no projeto "Adote um Atleta" e eu recebia um valor para isso. Passei a treinar no período da manhã no Centro Olímpico com o Carlão (Carlos Gomes Ventura). Entrei em abril ou março e já no final do ano tinha evoluído muito. No ano seguinte, havia terminado o 2º grau e fazia faculdade na parte da manhã. Tive que transferir o treino para tarde e passei a treinar com o professor De José (Francisco de José, o DJ). Fui melhorando ainda mais os resultados. Em 1982, já fui 2º nos 1500 m do Troféu Brasil.
Sua carreira deslanchou a partir daí? Ainda não. Um fato aconteceu em 82, quando fui vice do Troféu Brasil. Cheguei para o Corujeira e disse que iria parar e voltar para a metalúrgica. Eu saía da Vila Alpina, em São Caetano, e tinha que ir para o Ibirapuera. O dinheiro do "Adote" não vencia o mês. E eu só gastava com passagem. Minha mãe era viúva e estávamos pagando a casa, meu irmão ralando e eu, já com 21 anos, não achava justo pedir dinheiro para ela. O Corujeira pediu duas semanas para responder. Minha mãe não queria que eu parasse, meu irmão também não. Ela dizia: "Mas seu pai gostava tanto?" É verdade. Meu pai foi meu maior admirador. Ia ver todas as minhas provas, mas veio a falecer em 1979 e não acompanhou meu auge. Minha mãe até ia em algumas provas, mas não gostava muito porque achava que eu fazia muita careta e sofria demais. Depois dessas duas semanas, o Corujeira voltou a falar comigo e disse que eu seria contratado como estagiário na Prefeitura. Faltava um ano para me formar em Educação Física. Passei de 8 mil do "Adote" para 38 mil. Eu estudava de manhã, trabalhava à tarde e treinava no final do dia. Não treinava dois períodos porque não aguentava. Poucos atletas conseguiam apenas treinar. Trabalhei normal de 82 a 87. Depois que ganhei o primeiro Pan, em 1987, ainda continuei trabalhando, mas daí com algumas facilidades.
Nessa fase que passou a treinar mais direcionado, tinha já uma distância específica? Fazia de tudo, menos obstáculo, porque não gostava. Fui campeão da categoria júnior nos 5000 e 3000 m. E o resultado mais interessante nessa época foi o de 1982, no Troféu Brasil, em Curitiba, em que fui vice nos 1500 m com 20 anos, numa prova em que estavam grandes atletas. Eu era molecão, mas tinha uma chegada muito boa. Treinava ainda com o DJ, mas então o Asdrúbal me tirou do Centro Olímpico e fui treinar no Sesi. Foram 10 anos, até ele falecer.
Quando e como o 3.000 m com obstáculo entrou na sua vida? Foi por acaso. Em 1983, ano do Pan de Caracas, eu corria 1500, 5000 m e provas de rua, e houve um Campeonato Universitário no Ibirapuera. Eu ia correr os 800 m, às 11h; deu 12h30 e nada; estava tudo atrasado. Eu estava com fome e resolvi ver o que tinha de prova mais tarde para poder almoçar. Só tinha 3000 m com obstáculo. Pedi para me colocar nessa prova porque queria almoçar. Tinha 9:27 como melhor marca, o que era ruim, mas acabei vencendo em 8:59. Depois acabei entrando na prova no Troféu Brasil e ganhei com 8:45.03. Era índice para o Pan, mas já fora do prazo. Como prêmio de consolação, fui levado para correr o Ibero, em Barcelona, e fiz 8:40. Entrei meio sem querer e num espaço muito rápido melhorei muito minha marca.
A partir daí e especialmente em 1985 aconteceu muita coisa boa na sua carreira. Em 85 tive um salto de qualidade. Fui para o Campeonato Mundial Universitário e bati o recorde brasileiro, com 8:32, que durava 10 anos e era do José Romão. Fui 4º. Foi um baita resultado. Eu cheguei a ficar em 20º no mundo. Depois, em 1992, o Clodoaldo do Carmo bateu meu recorde, com 8:19. Ganhei sete vezes seguidas o Troféu Brasil, de 83 a 89. Foi um ano muito bom. Fui 3º na São Silvestre, no ano em que o José João ganhou e o Rolando Vera foi o 2º. Foi meu melhor resultado na São Silvestre; até então tinha um 8º lugar. Com 24 anos, comecei a me estabilizar como atleta.
No Pan de Indianápolis, você foi ouro nos 3000 m com obstáculo e prata nos 5000 m. Como foi sua trajetória até chegar aos Jogos Olímpicos de Seul e ao Pan de Havana? Em Indianápolis 87, ganhei do grande nome da época no obstáculo, que era o americano Henry Marsh. Era o 4º ou 5º do mundo e tinha 8:09. Fiz 8:23, bati o recorde pan-americano e novamente o brasileiro. Foi minha melhor marca pessoal. A prata nos 5000 m veio dois dias depois; perdi para o mexicano Arturo Barrios. Nesse mesmo ano fui 5º na São Silvestre. E veio 1988, ano olímpico. Nunca tinha tido lesão e nesse ano tive uma no joelho. Perdi muito treino. Não estava mal, mas não conseguia recuperar. Passei na preliminar e fiquei na semifinal. Já em 1991, no Pan de Havana, fui como favorito. O Clodoaldo (Lopes do Carmo) tentou fazer o índice na Europa e eu, que estava machucado, optei por fazer aqui. Só eu consegui. Uma coisa boa da época era que as provas não eram fracas aqui no Brasil. Nosso obstáculo tinha muita qualidade e isso ajudava a evoluir. Infelizmente, é algo que não aconteceu com o Marilson, que ficou sem ter adversário local que gerasse essa competitividade.
Você conseguiu grandes resultados na pista, mas antes disso chegou a correr muitas provas de rua. Eu tinha facilidade para correr na rua, porque eu vinha da rua. Eu entrava em quase todas e me dava bem, em parte porque a elite da época era um pouco mais velha que eu. No período em que tive a evolução das minhas marcas na pista, ganhei duas ou três Gonzaguinhas, subi quatro vezes ao pódio da São Silvestre e cheguei a correr uma meia em São Paulo em 1:02:50, o que para mim, que treinava para 1500 m e obstáculo, era muito bom.
Como eram as provas de rua na época? Não havia essa estrutura de hoje. Cansei de correr prova sem batedor em que você descobria que entrara numa rua sem saída. Ou dava a largada e de repente você passava no meio de uma feira. As pessoas falam que somos saudosistas, mas era uma época muito legal. Lembro que havia um período em que sentia dor; não podia nem tocar. Hoje você tem gelo, massagem, fisioterapia. Era pauleira até o corpo aguentar. Saíamos para rodar 20 ou 25 km e quem parasse para beber água era motivo de gozação. Os tênis que usávamos eram nacionais e muito duros e, por isso, as lesões vinham se acumulando.
Quando você parou de competir e virou treinador? O Asdrúbal faleceu em 1992. Fiquei 10 anos treinando com ele. Eu já era formado e mantinha o trabalho na Prefeitura. Como eu era o mais velho ali, fui chamado para ajudar com os meninos, entre eles o Clodoaldo (Gomes da Silva) e o Marilson (Gomes dos Santos), que era bem novinho, tinha 15 anos. Chegou de Brasília para treinar no Sesi com o Asdrúbal e ele faleceu. Daí convidaram o DJ para ser treinador. Eu era atleta ainda, estava com 31 anos e o DJ sugeriu que eu ficasse com o grupo de 800 m, 1.500 m e obstáculo e ele com o grupo maior, de fundo (5.000 m, 1000 m, meia-maratona e maratona). Quando o Hudson de Souza veio, ele caiu nesse grupo comigo. O Clodoaldo e o Marilson ficaram com o DJ. Eu treinava com o grupo de fundo e fazia as planilhas para o outro grupo, com a ajuda do DJ. Quando ele saiu, voltei a assumir o grupo todo, mesmo sendo atleta ainda. Até o dia em que tomei um "chapéu" do Marilson numa prova de 10000 m na pista. Aí resolvi parar. Foi em 1996. O Marilson tinha 19 anos, mas era um cara diferenciado desde cedo. Tanto ele quanto o Clodoaldo pegaram tudo o que você possa imaginar de Seleção. Levei esse grupo um tempo também como atleta, mas minhas lesões foram ficando mais próximas uma da outra. Não sei se eu gostava de competir. Gostava de ganhar. Comecei a perder e isso me incomodou um pouco, até porque fiquei 10 anos sem perder no Brasil, dos 1.500 m a 5.000 m.
Como foi essa passagem de atleta-treinador para só treinador? A mesma preocupação que tinha como atleta de querer ganhar tinha quando virei treinador. Fiz todos os cursos da IAAF, do nível 1 ao 5. Tentei me preparar e trocar informações com outros treinadores. Algumas deficiências que achava que tinha, como trabalho de força, falava com colegas, como o Neíton Moura. Trabalhei no projeto Xerox da USP, com o próprio Neíton, o Nakaya, o Pedro de Toledo. Pegávamos o atleta em potencial e via todo o processo. Esse foi o melhor aprendizado que tive. Eram meninos de 10 anos, de pré-mirim e mirim; durou cerca de 8 anos. Lembro que havia um Campeonato Brasileiro Infanto-Juvenil em Ipatinga. No primeiro ano que fomos, não fizemos nenhum pódio. Quatro anos depois, ganhamos o campeonato com atletas desenvolvidos na USP.
O fato de você ter sido atleta de alta performance contribui no seu trabalho de técnico? Ajudou e muito. O corredor de fundo é meio sistemático. Se ele acha que tem que fazer alguma coisa e você diz que não, e der errado sua indicação, você perdeu o cara. Em compensação, o inverso também acontece. Na minha época sempre fui muito tático nas provas, ou seja, se alguém me vencesse por pouco, dificilmente me venceria de novo. Eu analisava os pontos fortes e fracos. Tanto que fiquei sem perder aqui por 10 anos. Acho que isso eu levei para os meninos. O Marilson, por exemplo, que era um cara lento, chegou a um ponto que falei: "Você está melhorando, mas com essa corrida você vai liderar todas e perder sempre. Precisamos criar uma situação para que você comece a ganhar. Não dá para ser eterno segundo". Entendia que não dava para ele fazer um final estupendo porque não é a característica dele, mas podíamos melhorar durante a prova e criar um mecanismo a favor. Eram coisas como "em tal lugar o atleta vai fazer isso na prova, ele vai te atacar em tal ponto". Acho que só consigo fazer isso devido a essa coisa prática, de ter sido atleta e por ter pensando sempre assim. Só com isso você não forma um atleta, mas quando consegue conciliar tudo é que vai ter algum êxito.
Como foi e é o planejamento da carreira do Marilson? O Marilson chegou aqui, com 14 ou 15 anos, vindo sozinho de Brasília. Ficou em alojamento, teve vontade de voltar e chorou para isso. Com ele vieram mais três garotos muito bons, sendo o Marilson o mais lento, mas com uma capacidade de resistência grande. Existe uma idade cronológica e uma biológica. Não tínhamos na época como avaliar, mas visivelmente você via que ele era mais novo biologicamente. Enquanto os meninos da mesma idade estavam com rosto todo barbadinho, o Marilson ainda não. E o nível de força dele era mais fraco que o dos outros. Assim, a ideia era que ele treinasse menos. Ele se queixava: "Como vou ganhar destes caras se eu treino menos?" Ele era muito bom, tanto que já tinha vencido em Brasília provas de 10 km com 11 anos. Mas minha preocupação era que ele tivesse uma capacidade de suportar a carga de treino. Era como trabalhar com iniciação. Tem uma frase básica para isso: "Uma criança não é um adulto pequeno". Não é só diminuir a dosagem de treino, dividir pela metade e fazer a mesma coisa. Há outros trabalhos. E ele caía nesse processo. E se queixava porque perdia mesmo. Corria, puxava na frente e perdia. Isso logo no começo, em 93 e 94. Mesmo assim, ele conseguia melhorar os resultados pessoais. Com o tempo, passou a suportar mais carga. Mesmo não treinando tanto quanto os outros, ele pegou todas as seleções de menores e juvenis. Foi campeão sul-americano de menores e campeão mundial universitário de meia-maratona duas vezes. Além de ser muito disciplinado, sempre foi muito competitivo e tem um grande diferencial, que é a capacidade de suportar pressão e lidar com isso. Essa evolução dos resultados tem a ver com o amadurecimento biológico também. E hoje, voltando lá atrás, acho que minha grande virtude tenha sido principalmente na condução da carreira dele. Eu podia tê-lo colocado para correr todas as provas. Ele ia ganhar, mas seria só mais um.
Ele foi bicampeão da Maratona de Nova York. Você imaginava esse feito? Eu não esperava. Mas os resultados foram me mostrando que ele podia. Quando começou a melhorar as marcas de pista, imaginei que poderia correr para 2h06 e tentar chegar perto do recorde do Ronaldo da Costa (2:06:05 em Berlim 1998). A primeira vitória dele em Nova York, em 2006, foi um divisor de águas, para mim e para ele. Achava que podia fazer um resultado expressivo, pois já havia feito 2h08 em 2004. Mas uma coisa é fazer a marca, outra é competir de igual para igual e ganhar. E ali em Nova York ele quebrou o tabu. Depois foram aparecendo as marcas, como 59:33 (recorde sul-americano) na meia.
O que você espera para ele nas Olimpíadas? Queria que ele saísse de lá com uma medalha. Seria coroar toda uma carreira. Seria botar a cereja no bolo. Se ele não ganhar essa medalha, para mim particularmente ele não vai ser menos atleta do que foi até agora. Mas, se tem um cara que merece isso pela dedicação, este cara é o Marilson.
Você viu o percurso de Londres quando acompanhou o Marilson agora na maratona em abril. O que você pode dizer? Dei uma volta no percurso. É duro. Tem uma volta pequena de quase 4 km e depois mais três maiores. São 90 curvas no total. E curvas fechadas. Tem muita curvinha de 180 graus. Há também umas duas ou três subidas, que serão repetidas nas voltas. Vai ser uma prova meio travada, dura e com muitas quebras, o que pode nos favorecer.
Dos outros atletas que você treina, quais têm chance de fazer bons resultados daqui pra frente? Tenho uma que é excepcional, acima da média, que é a Juliana (campeã pan-americana dos 1500 m no Rio 2007 e recordista brasileira da prova), esposa do Marilson. Ela ganhou agora o Troféu Brasil (nos 800 m e 1500 m) voltando depois da maternidade. Ela é muito competitiva e acho que para 2016 vai ser um grande nome. Pode ser finalista nos Jogos. Há também alguns meninos bons na marcha surgindo, como o Jonathan Riekmann (5º nos 50 km de marcha no Pan 2011), que está empolgando também. Tem o Reginaldo Oliveira Campos Jr nos 10.000 m, que é um talento, e também o David Benedito de Macedo, com bom potencial. Além disso, há dois moleques nos 1500 m. Vamos ver se conseguimos que esses atletas atinjam o nível de excelência que estamos procurando.
Não temos nenhum representante nos Jogos de Londres dos 1500 m aos 10000 m. O que podemos esperar para 2016, aqui no Brasil? Temos um bom grupo surgindo e vamos ter vários, mas vai demorar um pouco mais. Alguns dos atletas hoje dos 800 m vão correr um bom 1500 m. Há dois meninos bons, os gêmeos Gilberto e Gilmar Lopes, que treinam com o Henrique Viana. O problema é que perdemos uma lacuna grande e temos que encurtar isso. Quando acontece isso, você perde gerações e tem que trabalhar para recuperar. O que não podemos deixar acontecer é perder a geração que está vindo.