POR NELTON ARAÚJO | @_nelton
Entre os vários mitos que circudam o universo dos maratonistas, é provável que sua gênese e distância sejam os mais longevos. Embora não existam fontes históricas consistentes e consenso sobre a existência do famoso mensageiro grego Fidípedes e a bela história de que, após correr aproximadamente 40 quilômetros da cidade de Maratona até Atenas, para avisar ao povo sobre a vitória dos gregos sobre os persas, teria caído morto, ela continua no imaginário coletivo até hoje.
As únicas certezas sobre os fatos acima é de que a história entrou para o folclore popular mundial como exemplo de força e superação. Isso aconteceu especialmente ao longo do século 19, quando o famoso poeta Robert Browning escreveu um poema sobre esta saga. E tal simbolismo foi usado pelo Barão de Coubertin na criação do evento “maratona” na primeira Olimpíada da Era Moderna, em 1896, justamente em Atenas. Quanto à distância, veremos que ela é fruto da aleatoriedade e acabou por se padronizar devido ao emblemático evento de 1908, nos jogos Olímpicos de Londres.
Entre os defensores da lenda e da distância, há o argumento de que, entre as várias rotas da cidade de Maratona até Atenas, aquela que é mais plana, porém mais longa, pois evita a íngreme subida do Monte Pinteli. E teria sido a que Fidípedes percorreu, com aproximadamente 40 km. No entanto, se nos atemos às fontes oficiais, a expressão “maratona”, em sua primeira definição, não significa um evento de corrida com determinada distância.
NA PRIMEIRA, 40 KM. Ela representava, no atletismo, o evento de mais longa duração, cujo objetivo é premiar aquele que tem mais resistência física e mental. A distância, em si, era bem aleatória. Tomando por exemplo somente as maratonas olímpicas anteriores à de Londres, em 1908, temos uma ideia dessa falta de padronização. A primeira, em Atenas, cobriu cerca de 24,85 milhas, pouco menos de 40 quilômetros. Nos jogos seguinte, em Paris, ela passou a ter exatas 25 milhas (aproximadamente 40,225 km). Quatro anos depois, 1904, na “corrida maluca” em St. Louis (abordada na CR de fevereiro), ela voltou às 24,85 milhas. Pelo menos isso era o que estava descrito no programa oficial, uma vez que, hoje, com toda sorte de tecnologia a favor da medição exata das distâncias, se conteste a real quilometragem de tais eventos.
Após a desastrosa maratona olímpica de 1904, muito se questionou sobre a permanência dessa modalide em Londres. Faltando apenas quartoze meses para a realização dos jogos o Comitê Olímpico Internacional deliberou que a competição iria continuar. Aí começava o “jogo de empurra” para quem iria montar o percurso.
Primeiramente o COI incumbiu a Associação Olímpica Britânica da tarefa de organizar uma prova de longa distância entre 24 a 26 milhas. Esta delegou a incumbência para a Associação Atlética de Amadores Britânicos. O problema é que esta ultima não tinha nenhuma experiência em organizar corridas de rua, quanto mais uma de tal comprimento. Ao final, o “abacaxi” foi entregue (somente em fevereiro de 1908) para o clube “Polytechinic Harriers”, da Escola Politécnica, formado por alunos da Universidade de Westminster, em Londres. Um ano mais tarde, esse mesmo grupo criaria sua própria maratona, palco de quebra de inúmeros recordes mundiais e considerada a maratona nacional, até ser eclipsada pela criação da Maratona de Londres, em 1981.
SEM DEMANDA DOS REIS. Desde o início, o grupo da Escola Politécnica tinha em mente uma rota de “cerca de 25 a 26 milhas de distância”, cujo percurso já havia sido anunciado nos jornais, saindo a partir de Castelo de Windsor e terminando no ainda inacabado Estádio Olímpico, o Grande White City. Isso leva a uma conclusão precipitada por muitos, de que a família real interferiu diretamente na criação do percurso. Ainda mais que o rei Eduardo VII e a rainha Alexandra foram assistir a uma competição em Atenas em 1906, comemorando os dez anos do início dos jogos modernos.
Segundo suas declarações, eles ficaram encantados com a maratona e criou-se uma lenda de que estes pediram aos organizadores para que o evento em seu país começasse do terraço leste do Castelo de Windsor, perto da janela do viveiro real, para que a princesa de Gales e seus filhos pudessem assistir ao início do evento, e terminasse em frente ao camarote real do Estádio Olímpico, nas vistas do Rei e da Rainha. No final, foi este o percurso que aconteceu, mas não houve nenhuma demanda real por isto, afinal, tirando a Princesa Mary, toda a família real encontraria-se em seu camarote do White City.
A ideia de sair do Castelo de Windsor partiu dos próprios organizadores, visando controlar a multidão e otimizar a largada dos maratonistas, sem qualquer interferência. Eduardo VII, tendo a garantia de que ninguém, além dos atletas e organização, entraria no espaço real, e certamente influenciado por ter presenciado um evento que o cativou dois anos antes, concedeu a permissão para que a prova começasse debaixo da tal janela.
No evento teste, em abril de 1908, já se delineava a distância da maratona. Na revista divulgada à imprensa, o percurso teria 26 milhas até o estádio, e usaria a entrada real do White City como túnel, levando os atletas direto a uma volta anti-horário na pista, o que daria, além das 26 milhas, mais 586 jardas e 2 pés (536 metros). O evento-teste terminou em frente ao White City, pois ele ainda não estava pronto. E quando, enfim, foi inaugurado, a comissão organizadora percebeu um problema: a entrada real não era a ideal para a boa visão do público e, sobretudo, da família real, da chegada dos maratonistas.
Transferiram então o acesso dos atletas para uma entrada comum e, mudando para o sentido horário, o percurso foi levemente encurtado, tendo assim, como está escrito no programa “nada menos que 26 milhas e 385 jardas” no sistema imperial. Ou seja, de forma aleatória e arbitrária, a competição teria, enfim, a mística distância de “nada menos que 42 quilômetros e 195 metros”. Mas, a título de curiosidade, não foi ali que se correu realmente tal distância: no final dos anos 1990, mediram novamente o percurso dessa maratona olímpica e perceberam que a primeira milha, na verdade, tinha 159 metros a menos.
SEM FAVORITOS. No dia 24 de julho de 1908, sob um sinal dado pela princesa Mary em seu carro oficial, a maratona olímpica teve seu início. De longe, era, entre todas as edições até então, a mais internacional, com 55 atletas de 16 países. Apesar disso, não havia nenhum participante ou grupo franco favorito, embora o público e os jornais britânicos apostassem suas fichas nos seus 12 atletas, maioria entre os inscritos.
O dia quente (26 graus) e a alta umidade foi o único e principal fator interviente para os corredores, uma vez que agora não corriam com a interferência de animais, outros corredores ou, pior, engolindo quilos de poeira levantada pelos carros que o acompanhavam, como tinha sido em St. Louis. Somente a partir do décimo quilômetro, cada participante teve a companhia de dois ciclistas para o suporte.
Os atletas do primeiro pelotão foram abandonando já na marca de oito quilômetros. Dos 12 britânicos, apenas quatro concluíram, para decepção do público. Ao final de 32 quilômetros, o canadense Tom Longboat, que liderava a prova, também abandonou, deixando apenas três corredores com reais chances de vencer. Bem à frente estava o sul-africano, naturalizado inglês, Charles Hefferson. Quase três minutos atrás dele estavam o americano Johnny Hayes, vendedor de lojas de varejo, e o italiano Pietri Dorando, chefe de uma pastelaria na cidade de Carpi e que tinha vencido uma maratona apenas dezessete dias antes deste evento olímpico.
A liderança folgada até a marca dos 40 quilômetros deu a Hefferson a falsa impressão de que a prova já estava ganha. Mas na última milha ele foi ultrapassado pelo italiano e logo depois pelo americano. O motivo, além do cansaço e do calor foi dito pelo próprio atleta em entrevista: “Faltando duas milhas, eu aceitei uma taça de champanhe e esse erro me custou a corrida. A bebida me deu cãibra uma milha depois e então perdi a liderança”.
CHEGADA DRAMÁTICA. Se o sul-africano estava andando com cãibras, o italiano estava em situação pior. Ao tirar três minutos em menos de duas milhas e ultrapassar Hefferson, Pietri Dorando pagaria um alto preço quando entrou ao estádio de White City, dando origem a um dos maiores incidentes da história das maratonas olímpicas. Já cambaleando, o italiano errou a mão da direção da volta final, e quando os organizadores o informaram, ao virar o corpo para o sentido horário, ele caiu. Em colapso, levantou-se, tentou correr mais um pouco, tropeçou e caiu novamente. Em menos de 200 metros, Dorando foi ao chão cinco vezes.
O diretor da corrida e o diretor médico da prova interviram e, faltando apenas 18 metros, seguraram seus braços, e ele cortou a fita da vitória em 2:54:46, sendo levado imediatamente de maca para uma tenda médica, sem ver os aplausos efusivos da multidão e da rainha Alexandra. Sir Arthur Conan Doyle, sim, ele mesmo, o célebre criador de Sherlock Holmes, e que cobria a corrida para o jornal Daily Mail de Londres, descreveu o estado do italiano naquele momento: “Eu vi o semblante do maltrapilho, rosto amarelado, olhos como se fossem de vidro, inexpressivos”.
Enquanto isso, o americano Johny Hayes também pagava o preço de uma péssima estratégia. Primeiramente largando muito forte e passando os dez quilômetros no ritmo de 3:44/km, algo muito forte para aquela época. Seu segundo erro foi relatado pelo próprio alguns dias depois em entrevista: “Eu não levei nada para comer ou beber no caminho, o que foi um grande erro. Antes de começar eu tinha comido 60 gramas de carne, duas fatias de torrada e uma xícara de chá.”
Assim, mesmo correndo de forma já robotizado, e tendo como único suplemento água e conhaque, que eram dados pelo público, Hayes viu Pietri Dorando o ultrapassar e começou a acelerar como possível. Acabou passando por Herferson na entrada do estádio e depletado, mas não em colapso como o italiano, fez a sua volta e terminou a maratona em 2:55:18.
A comissão americana logo informou ao seu atleta que Dorando tinha sido ajudado e foram à organização para impugnar o resultado. Não era a primeira vez que os americanos reclamavam: na abertura do evento, não havia a bandeira dos Estados Unidos, e, momentos antes da largada da maratona, novamente foram pedir a desclassificação do canadense Tom Longboat, sem sucesso, denunciando-o de receber pagamentos para correr, o que era veementemente proibido na época.
Dessa vez, a comissão organizadora acatou o pedido, desqualificando Pietri Dorando e anunciando Johnny Hayes como o ganhador da medalha de ouro. Quatro anos antes, na maratona de St. Louis, coisa semelhante tinha acontecido com o vencedor da maratona, Thomas Hicks, conduzido por sua equipe até a linha da chegada, e que não foi desclassificado imediatamente. Outros tempos, outras regras. Agora, no entendimento dos juízes, “Pietri Dorando teria sido incapaz de terminar a corrida sem a assistência prestada na pista, e assim, portanto, o protesto dos EUA é acatado.”
CAMPEÃO MORAL. O público, incluindo a família real, e mesmo o Sir Arthur Conan Doyle, embora sabendo das regras e que não havia como contestá-las, consideravam o italiano como o verdadeiro vencedor, e todo seu esforço para chegar à vitória e ser desclassificado como uma “tragédia”. No relatório olímpico oficial, o diretor técnico da prova, Jack Andrews, sabia que estava colocando a vitória de Dorando em risco, mas se defende ao dizer que “era impossível deixá-lo lá, pois parecia que ele poderia morrer na presença da rainha.”
No dia seguinte, a medalha de ouro de Hayes foi ofuscada pela presença de um sorridente Pietri Dorando já recuperado, a convite da rainha Alexandra, que lhe presenteou com um cálice de ouro, para aplausos efusivos do público. Pietri tornou-se um herói nas páginas dos jornais, estimulou uma mania pela maratona olímpica, até então desprestigiada e com dias contados, e até se tornou tema de uma canção de um dos compositores ícones de musicais na época, o americano Irving Berlin. Pietri e Hayes se encontrariam mais quatro vezes, tendo o italiano vencido as proclamadas “revanches” por duas vezes na casa do adversário, ou seja, provas de longas distâncias em Nova York e São Francisco. Em uma ambos abandonaram, e apenas uma vez Johnny Hayes levou a melhor.
A maratona olímpica foi memorável por todo seu drama digno de um roteiro de cinema. Um exemplo de como o público no White City, naquele 24 de Julho, estava maravilhado com o evento pode ser resumido no cartão postal enviado por uma das milhares pessoas que estavam no local: a foto icônica de Pietri Dorando cruzando a fita, com a frase “Acabei de assistir a maior corrida de todos os tempos”.
Nas duas maratonas subsequentes, em 1912 e 1920, foram utilizadas distâncias diferentes, fora outras maratonas não olímpicas, como a de Boston e da Escola Politécnica em Londres, que também não tinham um padrão exato de distância. Apenas em 1921, a IAAF impôs que a distância padrão para uma competição ser considerada “maratona” teria que ter exatos 42,195 quilômetros, omitindo, até os dias de hoje, a razão da escolha por tal quilometragem esdrúxula.