Por Nelton Araújo
Tudo soa grandioso quando falamos da Maratona de Chicago, que completa 41 anos no dia 7 deste mês. Só na última edição, os 40 mil corredores, oriundos de mais de 100 países, que ultrapassaram a linha de chegada fizeram dela a quarta maior Major, movimentando mais de 150 milhões de dólares em atividades econômicas para a cidade.
E grandioso também é a palavra ideal para falarmos dos atletas de elite que já estiveram presentes por lá, onde quatro recordes mundiais foram batidos (dois masculinos e dois femininos): Greg Meyer, Steve Jones, Rosa Mota, Joan Benoit, Ingrid Kristiansen, Khalid Khannouchi, Catherine Ndereba, Paula Radcliffe, Samuel Wanjiru, Tsegaye Kebede, Eliud Kipchoge – sim, até ele! – e Dennis Kimetto.
Porém, se você olhar com atenção os nomes acima, pode perceber que eles estão divididos em grandes atletas dos anos 1980 e do final dos anos 1990 até os dias de hoje. Esse vácuo tem uma explicação, que torna esta maratona ainda mais fascinante: ao contrário das outras Majors, que conseguiram rapidamente estabelecer-se graças ao seu pioneirismo, como Boston, ou a opulência de seus patrocinadores, como Nova York e Londres, Chicago demorou a se tornar uma prova de nível mundial, chegando a ter seus dias contados no final dos anos 1980 e início dos 1990. E o que os corredores de elite brasileiros tem a ver com isso? É o que veremos a seguir.
RECOMEÇO DIFÍCIL. Embora a Maratona de Chicago tenha uma história que pode ser remontada ao ano de 1905, com um percurso semelhante aos dias atuais e que durou até o início dos anos 1920, nosso foco é com a “era moderna” da competição, que surgiu em 1977. Inspirados pelo boom da corrida de rua nos EUA e, sobretudo, pelo sucesso do novo percurso da Maratona de Nova York, que, agora, englobava seus cinco distritos, um grupo de atletas interessou-se em fazer uma “maratona popular” passando pelos principais pontos de Chicago.
Foi duplamente difícil: primeiro, pelo próprio desinteresse dos governantes locais, que não autorizaram que o seu percurso passasse nos parques da cidade ou mesmo ao longo do Lago Michigan. Isso só foi resolvido quando um dos fundadores da prova, o empresário Lee Flaherty reuniu-se diretamente com o prefeito da cidade, Richard Daley, que, assim como sua esposa, eram entusiastas do jogging. O então prefeito morreu antes da primeira edição da prova, em setembro de 1977, e que, por isso, passou a ter o nome de “Major Daley Marathon” (“Maratona do Prefeito Daley”).
A segunda dificuldade era a questão financeira. O idealismo de uma “maratona popular”, sem custos aos participantes, feita por eles e para eles, logo cedeu à necessidade de ser tratada como um negócio. E, enquanto tal, precisava de patrocinadores, já que a número de inscritos crescia e os recursos das empresas de Lee Flaherty já não eram mais suficientes para dar a qualidade necessária ao evento.
Em 1979, a prova, que reunia pouco menos de 2 mil corredores, ganharia o impulso necessário para crescer: o patrocínio da empresa de alimentos “Beatrice Foods”, que forneceu dinheiro necessário para garantir a estabilidade financeira da corrida. Na política, o novo prefeito eleito tinha planos para usar a prova como uma forma de mostrar Chicago como uma cidade tão cosmopolita e atraente quanto Nova York.
Assim, com um sólido apoio corporativo e uma ambiciosa administração municipal, a “Maratona do Prefeito Daley” não se tornou a “Maratona de Chicago”, mas foi além, nomeando-se “Maratona da América”. Entretanto, mesmo com o nome pomposo, Chicago simplesmente não era ainda uma “maratona de classe mundial” e isso só seria mudado se houvesse a participação de atletas de alto nível, de “classe-mundial”.
ELITE MUNDIAL. Isso veio a acontecer a partir de 1982, quando as portas foram abertas com o anuncio da participação do americano Greg Meyer. No ano seguinte, contando com mais de 7 mil participantes, a prova assistiu a primeira vitória de um queniano, Joseph Nzau. Mas, nesse ano, o principal nome estava na prova feminina, com a portuguesa Rosa Mota (que, meses depois, viria ao Brasil ganhar o terceiro dos seis títulos da São Silvestre).
Nzau e Mota bateram o recorde do percurso, o que impulsionou a principal patrocinadora a dobrar, em 1984, o valor da premiação total para U$ 250 mil, ultrapassando a premiação de Nova York em U$ 50 mil. Boa parte desse cachê foi para o até então mecânico de avião britânico, Steve Jones, que não somente venceu a prova como superou o recorde mundial.
Assim, no início de 1980, a “American’s Marathon” já havia alcançado a proeminência como uma das maratonas mais importantes do mundo e marcava a crescente rivalidade entre Nova York e Chicago. Com datas muito próximas, elas passaram a disputar os melhores corredores. Como em 1985, quando a organização de Chicago anunciava o retorno de Steve Jones – que, por dois segundos não recuperou o recorde mundial perdido em abril – e da icônica vencedora da primeira Maratona Feminina dos Jogos Olímpicos, ocorrido um ano antes, a americana Joan Benoit Samuelson. A mesma estabeleceu o recorde do percurso, com 2:21:21, marca que permaneceu até 2001 e até 2003 como recorde feminino americano.
SEM PATROCÍNIO. Contudo, em 1986, as más notícias surgiram no horizonte: a “Beatrice Foods” fez o que toda empresa faz quando se vê em crise: retira seu dinheiro daquilo que não é essencial para o seu funcionamento. De um dia para o outro, a maratona em Chicago viu-se sem apoio financeiro algum. A ponto de não ter recursos para organizar a edição de 1987, substituindo-a por uma meia-maratona de baixo orçamento, mas que contou com a presença de Steve Jones, retribuindo à cidade que o fez um herói nacional.
A saída da principal patrocinadora e as consequências imediatas à prova de Chicago expõem algo que parece óbvio hoje em dia, mas era uma novidade ao longo dos anos 1970/80: simplesmente uma corrida não poderia se tornar de classe mundial sem a infusão de capital de um patrocinador poderoso. Era, para além de motivos logísticos, uma mudança no paradigma na corrida de rua: simultaneamente, a maratona surgia como um esporte de participação em massa e como esporte profissional.
Logo, consequentemente, os grandes nomes da maratona poderiam pensar em ganhar a vida com sua performance – algo em grande parte impensável antes disso. Uma classe de atletas internacional florescia em busca dos melhores cachês, numa mentalidade que vigora até hoje: os corredores mais rápidos do mundo, em grande parte, são atraídos por quem melhor pode pagar. E não há nada de chocante sobre isso: tal espírito espelha todos os outros esportes profissionais.
As principais maratonas de nível mundial foram afetadas com essa mudança de paradigma. A tradicional e orgulhosa Boston precisou aliar-se com mais patrocinadores para aumentar seus prêmios em dinheiro. A de Paris saiu da tutela estatal para se tornar propriedade de empresas privadas, com forte dependência de patrocinadores. E a de Nova York confiou na parceria com a empresa “Avon”, que tinha a corrida no seu DNA, para crescer seu status de classe mundial.
E até aqui no Brasil, a Maratona do Rio, a mais representativa prova do país, tinha como principal patrocinador uma seguradora/banco, conseguindo atrair grandes nomes do atletismo mundial nos primeiros anos, mas logo vendo os cachês inflacionarem, passou a investir em atletas internacionais, mas de segundo escalão.
NOME E PERCURSO ALTERADOS. Depois do ano sabático, a prova retornava ao calendário, agora com o nome de “Maratona de Chicago”. E com um percurso mudado, mais próximo da ideia inicial – mas longe do ideal – de apresentar toda cidade nos 42.195 metros que começam e terminam no Grant Park. E se a prova não contava com grandes verbas para atrair os principais nomes da modalidade, por outro lado, ela investia em ser uma prova atraente para os amadores.
Sobretudo, inspirada no modelo de Boston: ser uma prova obrigatória e essencial para os cidadãos de Chicago. Daí veio o sucesso da gestão do novo diretor da prova, o americano Carey Pinkowski. Ele se aliou com a Associação de Corredores de Chicago, e isso conseguiu envolver ainda mais os corredores locais e os clubes de corrida, seja como participantes da prova ou, principalmente, como voluntários.
Outro feito de Pinkowski, hoje diretor executivo da prova, era saber recrutar atletas de elite que dessem à prova certo status internacional e que fossem de baixo orçamento, porém que não comprometessem o convite, a ponto de serem surpreendidos por um amador. Nem sempre o plano A dava certo. Foi assim que, em 1991, o diretor da prova resolveu apostar na fama de Greg Meyer, já com 36 anos e que estava há oito anos sem vencer uma prova de expressão.
PRIMEIRA VITÓRIA BRASILEIRA. A competição tinha acabado de sofrer mais um baque, perdendo novamente sua principal patrocinadora e tendo que pagar a ninharia de U$ 7.500 ao vencedor masculino e feminino, apenas 25% do que tinha sido pago no ano anterior. Apostava-se no nome do último americano nativo a ganhar uma maratona hoje considerada “Major” desde 1983, quando Greg Meyer venceu Boston e Chicago.
O jejum não foi quebrado: mesmo com condições ótimas, Greg Meyer fez uma péssima prova e chegou na 10ª colocação, cinco minutos depois do vencedor, o brasileiro Joseíldo Rocha da Silva, que completou em 2:14:33. O alagoano vencedor comentou que poderia ter corrido mais rápido, se tivesse tido concorrência.
Para se ter uma ideia da queda no desempenho desse ano, o tempo do primeiro brasileiro a conquistar um título internacional em corrida de longa distância nos EUA era dois minutos mais lento que a do primeiro brasileiro a participar da prova em Chicago. Um ano antes, Osmiro da Silva tinha sido o oitavo colocado, mas com o tempo de 2:12:17.
A própria imprensa brasileira parecia que pouco se interessava pelo resultado de Joseildo Silva (que teve outro brasileiro, José Cesar de Souza, fechando o pódio na terceira colocação), dando ênfase ao resultado de um dos principais nomes da modalidade do período, Diamantino dos Santos, que tinha vencido a minúscula maratona de Carpi, na Itália.
Joseildo Silva, a despeito do tempo mediano, foi muito mais que um azarão: tem, segundo o ranking da CBAt, o 18º melhor tempo em maratona, com 2:11:53, conquistado em Boston em 1992, mesmo ano em que fez parte da equipe que disputou a maratona olímpica em Barcelona.
Se em 1991 havia ainda a sombra de Greg Meyer para tentar atrair um grupo de elite razoável, em 1992, sem ainda um grande patrocínio, o diretor da prova pouco teve a fazer além de buscar vencedores de maratonas de praças pouco conhecidas por sua tradição em maratonas, como Kiev, Dublin, além de trazer os nomes que se destacaram da edição anterior e que não tinham participado dos Jogos Olímpicos.
Assim, da noite para o dia, o brasileiro José Cesar de Souza, terceiro colocado no ano anterior, aceitou de última hora o convite de Pinkowsky. E logo veio a se tornar o principal nome daquela Maratona de Chicago, que voltava a aumentar de tamanho em participantes, com 8.214 concluintes. Fez jus ao favoritismo, sim, e venceu a prova. Todavia, o morno tempo de 2:16:14 tornou-se o pior resultado desde 1981. Sequer foi lembrado pelos jornais brasileiros nos dias seguintes à sua vitória, mostrando tanto o desconhecimento aos nossos maratonistas – José Carlos era o então vencedor da maratona Pan-Americana, realizada em Havana, e, em 1990, conquistado a maratona de Madri – bem como provando que Chicago ainda estava longe de ter o status que possui hoje.
NOVO DONO E PATROCINADOR. O ano de 1993 foi o de virada para os rumos desta competição. Os fundadores do evento em Chicago, liderados por Lee Flaherty, decidiram vender a maratona para o grupo “Major Events Inc.”, que tinha como dono Chris Devine, também maratonista. O principal mérito do novo dono da prova foi não fazer grandes mudanças. No entanto, seus contatos levaram a fechar um acordo com um novo patrocinador que poderia render bons frutos: o Banco americano LaSalle – que mais tarde se tornaria, ela própria, proprietária majoritária da corrida.
De início, o banco não quis ousar e, junto com uma coalizão de patrocinadores minoritários, disponibilizaram a premiação de apenas U$ 20 mil para os vencedores. Premiação bem distante das principais provas americanas, e não estamos falando de Boston ou Nova York, mas de maratonas como a de Mineapólis e de Columbus, que pagavam dez vezes mais. Porém, era uma verba bem maior que os U$ 7.500 aos campeões nos últimos anos. Havia um bônus de U$ 500 caso os vencedores masculinos e femininos completassem a prova abaixo das 2h14 e 2h30, respectivamente, com intuito de incentivar a busca de resultados mais rápidos que os alcançados desde 1991.
E quase não aconteceu. Primeiro, porque as condições climáticas estavam longe de serem ideais: foi uma semana com neve intermitente. A prova aconteceu com 1º C e ventos que davam a sensação térmica de -12º C . Centenas de atletas, amadores e de elite, abandonaram a prova por hiportemia, dando jus ao dia em que foi realizada: 31 de outubro, dia das bruxas nos EUA.
Havia mais um problema: a organização não conseguiu trazer atletas do primeiro escalão e apostou em dois nomes conhecidos da prova: o belga Eddy Hellebuyck, que no ano anterior, tinha surpreendido ao ser um “coelho” que chegou na terceira colocação. E, sobretudo, as atenções estavam no polonês Antoni Niemczak, vice-campeão em 1990, mas único que tinha completado o percurso abaixo de 2h10. Embora não dito de forma oficial, já havia certa tradição de chamar brasileiros e mexicanos, e Carey Pinkowsky convidou o fluminense da cidade de Volta Redonda, Luiz Antônio dos Santos.
LUIZ ANTONIO BICAMPEÃO. Sua história com o atletismo é tardia, começando a treinar profissionalmente aos 25 anos e, agora, aos 29 anos completava seus primeiros 42.195 metros, vencendo a Maratona de Blumenau, três meses antes da prova americana. Ele era treinado pelo médico Henrique Viana, que continua firme com seus atletas da equipe Pé de Vento. O primeiro “Dos Santos” que a imprensa americana conheceria venceu com facilidade e ainda garantiu o bônus, com o tempo de 2:13:14.
No feminino, também participação brasileira no pódio, com Silvana Pereira, na terceira colocação. Na imprensa brasileira, com exceção da recém-lançada revista Contra-Relógio, em sua terceira edição, a única nota dada à corrida de rua foi sobre a segunda colocação de Carmem de Oliveira numa competição de 15 km na cidade americana de Tulsa.
Enfim, em 1994, a LaSalle entregou à organização de Chicago o que ela precisava para voltar aos tempos áureos de meados dos anos 1980: um contrato de três anos como patrocinador principal e uma verba de quase U$ 200 mil para premiar os vencedores. (Em 2008, o banco foi comprado pelo “Bank of America”, que batiza o nome da maratona ainda hoje).
Isso possibilitou que Pinkowski pudesse recrutar atletas de elite. Enquanto o grande nome anunciado no feminino era ainda de uma Joan Benoit Samuelson já em final de carreira (chegou apenas na sexta colocação), no masculino, o grande nome era do queniano Cosmas Ndeti. Então bicampeão da Maratona de Boston (ele ganharia o tricampeonato no ano seguinte), ele flertava com o recorde mundial, após correr para 2:07:15 em abril daquele ano.
Porém, quem portaria o número de peito “1” da prova seria Luiz Antônio dos Santos, que retornava a Chicago em busca de se tornar o segundo homem a ser bicampeão da prova (o primeiro foi o britânico Steve Jones). A presença de Cosma Ndeti tirou “Dos Santos” dos holofotes, o que foi fundamental para quando o brasileiro percebeu, durante a prova, que o queniano estava tendo uma performance medíocre, não terminando sequer nas 10 primeiras colocações.
Sem a neve e o frio do ano anterior, Luiz Antônio dos Santos tornou-se bicampeão, com o tempo de 2:11:16 da agora intitulada “LaSalle Bank Chicago Marathon”, que contava com um crescimento substancial em números de participantes: 12 mil inscritos, quase quatro mil a mais do que em 1993. Nesse momento ganhava a prova um reforço midiático, sendo transmitida pela TV na íntegra. Em 2002, na icônica edição de 25 anos, antes do mundo assistir a britânica Paula Radcliffe bater o recorde mundial em 2:17:18, assistiu a uma homenagem aos grandes nomes da competição e lá estava Luiz Antônio dos Santos.
E enquanto a imprensa brasileira se rendia e abria espaço para estampar a foto e o resultado de Luiz Antonio, Chicago, enfim, via seus números crescendo a ponto de se tornarem grandiosos. Depois de muito esforço, oscilações e a participação de brasileiros, que enxergaram Chicago mais como uma forma de se projetar no mercado internacional e menos no valor do cachê pago, Chicago tinha reconquistado seu status de prova mundial.