Sem categoria admin 10 de novembro de 2014 (0) (203)

A força da mente na corrida: para o bem ou para o mal

Você certamente já ouviu muita gente falar que a mente comanda o corpo, que antes de treinar o corpo é preciso treinar a mente, ou que as provas de longa distância devem ser feitas com a cabeça. Mas na prática você já teve sua corrida travada por sua cabeça? Já ouviu alguém reclamar disso? O fato é que a verdade tem pesos diferentes, quando dita por um corredor ou quando vem de um especialista no assunto.
Segundo a presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte, Simone Sanches, os seres humanos são movidos pela mente, e as situações que vivenciam geram sentimentos que se refletem em seu comportamento. Dessa forma, se algo faz com que os pensamentos sejam negativos, relacionados com a falta de confiança, insegurança sobre o processo de treinamento, falta de motivação, medo de sofrer, intolerância perante a perspectiva de um resultado negativo (quando o atleta, por exemplo, sabe que não terminará a corrida com uma boa marca), ou até mesmo medo do sucesso (por conta das cobranças posteriores), o corpo irá corresponder negativamente, podendo levar à queda do rendimento ou até mesmo à interrupção da corrida. O que fazer nesses casos?

"Na prática esportiva, o foco da intervenção psicológica normalmente está direcionado à manutenção da motivação. O indivíduo está inserido dentro de outros contextos (trabalho, família, amigos, etc.) que podem concorrer pela sua atenção. Se ele estiver se dedicando mais a estes outros campos, sua motivação ou mesmo sua capacidade de concentração no treino podem ficar abaladas. Ele pode até ter o desejo de se dedicar mais aos treinos e competições, mas ao mesmo tempo não tem a tranquilidade necessária para isso", explica a psicóloga.

Para Aline Arias Wolff, mestra em Psicologia do Esporte, é fato que os aspectos psicológicos interferem, e muito, no treinamento e no desempenho de corredores. Segundo ela, a adesão aos treinamentos se relaciona com motivação e metas. E muitas vezes os corredores não sabem delimitar estas metas de forma correta, o que pode impactar na adesão e na motivação.
"Com relação ao desempenho, sobretudo em corridas longas, em que é preciso suportar a dor e enfrentar a ‘tentação' de parar, o treinamento de habilidades psicológicas é muito importante. Esse treinamento ensina, entre tantas coisas, a controlar os pensamentos negativos que podem atrapalhar o rendimento. Mas é importante entender as dificuldades individuais de cada um e o que exatamente está travando o seu desempenho. A Psicologia do Esporte conta com recursos para treinar essas habilidades. Ao contrário do que muitos pensam, os atletas, amadores ou profissionais, não nascem com essas habilidades. Assim como treinam o corpo, precisam treinar a mente", afirma Aline.
Simone Sanches vai além e diz que ao estabelecer metas para sua vida esportiva, a pessoa deve também estabelecê-las para a vida pessoal e profissional, conciliando as três. "O atleta deve assumir um compromisso consigo mesmo para os momentos de dedicação em cada uma dessas áreas, tendo em vista que o equilíbrio entre elas é essencial para uma boa qualidade de vida. O amador, que não se dedica exclusivamente à prática esportiva, muitas vezes tem que avaliar o que é prioridade naquele momento, sabendo que existem situações que demandam uma abdicação dos outros contextos, mas que isso poderá ser compensado futuramente", diz a psicóloga, lembrando que é fundamental que o corredor consiga transitar entre esses contextos de uma forma saudável, e quanto menos conflitos houver entre eles melhor.
"Assim, é importante que a vida profissional deste corredor favoreça que ele tenha os seus momentos de treinos e de competições, assim como é importante que a família e os amigos apoiem e compreendam a importância do esporte para aquele indivíduo", completa.

NA ELITE – O médico Henrique Viana, treinador da Pé de Vento, uma das principais equipes de alto rendimento do país, vê o tema com objetividade. A equipe tem um profissional especializado para lidar com o lado psicológico dos atletas, mas é o próprio treinador que acaba orientando-os e buscando soluções no dia a dia dos atletas.
"Nosso cérebro comanda nossas ações. Como dizia Einstein, existe uma força maior do que a de uma bomba atômica: a nossa vontade. Qualquer problema pessoal pode interferir em nossa vontade de treinar; depende de nossa maneira de encarar os fatos. O que devemos fazer é encarar tudo de uma maneira racional. Isso é uma filosofia de vida. Fazer com que o que está indo mal não interfira no que está indo bem. Devemos sempre pensar que dentro de nós existem dois cérebros, cada um agindo de uma maneira: um dizendo ‘você pode' e o outro dizendo que ‘é muito difícil'. O que vai vencer é aquele que você alimentar", diz Henrique Viana.

ILUSÃO – Mas o que faz o corredor quando o problema não é exatamente a conciliação do tempo dedicado à família, aos treinos e ao trabalho? Muitas vezes a cabeça prega peça nos corredores exatamente nos treinos e nas competições. Analista de sistemas, Carlos André Fróes, de 42 anos, garante ter passado por algumas situações assim.
"Já aconteceu diversas vezes antes e durante treinos. O sentimento de que eu não seria capaz de cumprir a planilha fazia com que eu fosse para uma zona de conforto, levando a uma redução de distância ou de ritmo."
Embora tenha apenas cinco anos de corrida, Fróes tem grande experiência em provas de média e longa distância. No ano passado fez a Comrades e cravou 2h59 na Maratona de Santiago. Do ponto de vista do corredor, ele confirma a teoria dos psicólogos do esporte. "A cabeça pode lhe enganar. Você pode achar que está muito bem, forçar no início da prova por excesso de confiança e não conseguir sustentar o ritmo. Aí quando aparece alguma dificuldade, aqueles que não estão mentalmente preparados começam a arrumar desculpas. O sol, o cansaço, a perna, o vento… O impacto da cabeça na corrida está diretamente ligado à superação. É preciso estar preparado para se superar sempre e isso está diretamente ligado à motivação. É preciso estar motivado para encarar o desafio de treinar e de competir. Caso contrário, qualquer subidinha passa a ser uma parede."
Para Fróes tudo é questão de treino. Treinar o corpo e treinar a mente. O corredor faz coro com o treinador Henrique Viana de que preciso saber separar o que vai bem do que vai mal. Mesmo durante uma prova.
"Posso estar enganado, mas treinar a cabeça para isso é treinar para ter confiança de que é possível atingir um objetivo. A motivação e o foco fazem com que você consiga separar as coisas e se superar. Tive uma experiência assim na Comrades em 2012. Estava bem preparado, com pulmão de sobra para a prova, mas no início tive problemas com meu joelho e tive muito enjoo. Fui administrando os problemas sem deixar que impactassem na minha vontade de terminar a prova e me levei até a linha de chegada", completa.

SEM CONTROLE – A engenheira de produção Aline Carvalho, de 34 anos, tem em seu currículo 12 maratonas, três ultras e um Ironman. Segundo ela, "estar com a cabeça boa" é essencial para atletas de longa distância.
"Sou triatleta e sem dúvida a modalidade que mais sofre influência de meu estado mental é a corrida. Mas isso não é algo tão matemático e explicável. Nossa cabeça pode ser afetada por problemas e ansiedades do dia a dia de uma pessoa comum, mas também pelo próprio treino. Isso já aconteceu comigo ao voltar de uma lesão. Meus tempos estavam piores e é muito ruim piorar. Para lidar com essas fases tem que ser muito forte. Minha ajuda sempre vem de mim mesma. Busco entender o que está acontecendo e como posso mudar. Normalmente demora uns meses para as coisas voltarem aos eixos", confessa Aline.
Mas nem sempre é fácil esperar tanto tempo. "O que costuma acontecer é ter mais dificuldade para treinar, para sair de casa, para encarar um treino mais puxado. É difícil quando há impacto na alegria de treinar. Quanto ao que vai mal não interferir no que vai bem, é muito bacana ter isso em mente, mas não temos pleno controle da nossa cabeça. Buscamos estar centrados, focados. Mas mesmo as pessoas mais esclarecidas e conscientes, por vezes, são atropeladas pela mente. O importante é reduzir a cobrança e deixar o tempo se encarregar de colocar as coisas de volta aos trilhos", completa Aline.
Sobre a redução da cobrança, Simone Sanches faz coro com a atleta e lembra que é preciso investigar diversas variáveis. Nem sempre as causas da demora na recuperação da performance são psicológicas, por isso é necessário também um acompanhamento médico
"Quando o corpo passa a não reagir, o indivíduo pode se desmotivar por sentir que o treinamento não está dando os resultados esperados. Principalmente aqueles que possuem um nível alto de cobrança ou pouca tolerância à frustração podem acabar se desmotivando mais rapidamente, pois se baseiam em metas muito altas de treinamento. Por isso é tão importante ter um acompanhamento médico e nutricional, para verificar se o corpo está em equilíbrio e pronto para ser mais exigido nos treinos e competições."

 

Como treinar a cabeça para não perder a disciplina nos treinos
– Estabeleça pequenas metas para serem alcançadas a cada treino;
– Organize a sua agenda para que haja um horário específico para cada atividade (porém, é importante ter flexibilidade para avaliar cada situação de forma a respeitar as exigências e prioridades do momento);
– Tenha como foco o seu rendimento (não se compare com os outros) e busque valorizar as pequenas evoluções do dia a dia;
– Tenha objetivos a curto, médio e longo prazo, que vão lhe auxiliar a ter disciplina e motivação para enfrentar os momentos mais árduos do treinamento cotidiano, tendo em vista as metas mais importantes.

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