Sempre que algo novo surge no campo do treinamento, seja uma nova ferramenta de treinos, uma forma de correr, um suplemento ou mesmo um equipamento de corrida, a mesma pergunta paira no ar, pouca vezes respondida: será que funciona de verdade? Será que os corredores realmente estão se beneficiando da novidade, ou melhoram simplesmente porque acreditam que estão fazendo uso de algo benéfico.
Talvez um dos melhores exemplos mais recentes tenham sido as tais pulseiras do equilíbrio, que prometiam maravilhas pelo holograma, que auxiliaria a equilibrar as energias do corpo (?!). O produto virou mania nas academias, e não faltavam usuários gritando aos quatro ventos os milagrosos efeitos das pulseiras – curiosamente ninguém mais as usa, fato talvez ligado ao pedido de desculpas público que a companhia teve que fazer em alguns países por não ter, de fato, qualquer embasamento sobre os benefícios do uso do produto.
As pulseiras, no entanto, são um exemplo extremo, do tipo que a cada porção de anos aparece um. Mas o mundo do treinamento possui uma lista bem mais sutil de itens consagrados que podem simplesmente não funcionar. É o chamado efeito placebo, quando uma intervenção funciona (ou parcialmente funciona) simplesmente porque alguém acredita que vai funcionar, e não porque ela efetivamente possui algum efeito positivo.
No "escândalo" mais recente, a próxima vítima do efeito placebo pode ser o treinamento em altitude, que faz com que centenas ou milhares de atletas viagem todos os anos para centros de treinamento nos mais diversos países atrás daquela sobrecarga a mais de treinamento que poderá render a tão sonhada medalha. Para entender sobre os questionamentos que têm sido levantados acerca da utilidade do treinamento em altitude, cabem algumas explicações sobre o que se espera deste método, e onde podem estar os problemas.
O GANHO NA ALTITUDE. Quanto mais se sobe em relação ao nível do mar, mais rarefeito o ar se torna. Não que exista menos oxigênio no ar, a proporção é sempre a mesma, em torno de 21%. O que acontece é que existe uma "coluna" de ar sobre nossas cabeças, que vai da nossa cabeça até o topo da atmosfera e o peso desta coluna é responsável por comprimir o ar, estabelecendo sua pressão. Quanto mais alto se estiver, menor será a altura dessa coluna, por consequência menor seu peso e menor a pressão do ar. Se o ar está sob menos pressão, ele fica mais disperso, e menos propenso a passar dos pulmões para o sangue, gerando o que se chama de desaturação arterial. Que é o fenômeno no qual o sangue transporta menos oxigênio do que é capaz, um indicador de que a troca de gases nos pulmões está de certa forma inadequada.
Até aqui tudo bem, pois a desaturação em decorrência da altitude é um fenômeno estabelecido e confirmado. O que cientistas e treinadores buscam é fazer com que este estresse a mais sobre o sistema cardiorrespiratório se transforme em melhor performance, e é aqui que a situação se torna cinzenta.
O processo teórico é relativamente simples: o organismo é exposto à altitude, o que gera a desaturação arterial. Se o sangue não está conseguindo transportar oxigênio adequadamente com a sua capacidade atual, ele faz a única coisa que pode para tentar reverter a situação: elevar sua própria capacidade de transportar oxigênio, através do aumento da quantidade de glóbulos vermelhos (estruturas responsáveis pelo transporte de oxigênio no sangue, e por isso altamente relacionadas com o nível de treinamento de uma pessoa). Com isso, espera-se que a capacidade de transporte de oxigênio permaneça aumentada por algum tempo após o atleta retornar ao nível do mar, e consequentemente melhore sua performance.
Os efeitos do treino em altitude sempre foram dados como promissores, pelo menos. Atletas de ponta migram todos os anos para centros de treinamento em cidades de altitudes variadas, sempre algumas semanas antes de sua competição principal. A única discussão era em torno de qual a melhor forma de adquirir os efeitos da altitude para otimizar a performance no nível do mar. Alguns treinadores diziam que treinar em altitudes muito altas prejudicava demais a performance, então qualquer efeito positivo da altitude na capacidade de transportar oxigênio era contraposto pelas cargas muito baixas do treinamento em si. Os atletas voltavam para o nível do mar sem velocidades nas pernas, lentos.
EM CIMA, EMBAIXO. A solução encontrada para o problema foi o sistema Live High, Train Low, ou "more em cima, treine embaixo", em tradução livre. Quando a técnica começou a ser difundida, apenas alguns locais no mundo possuíam uma geografia que possibilitava tal feito: os atletas "moravam" em altitude e lá fazia rodagem, mas em uma curta viagem de carro desciam várias centenas de metros para treinar velocidade. Mais recentemente, surgiram as tendas hipobáricas, que possibilitam que qualquer um com saldo suficiente no cartão de crédito durma em altitude, em busca do aumento dos glóbulos vermelhos.
A última invenção, no entanto, são os hotéis em altitudes criados por alguns centros de treinamento. O hotel possui quartos normais, que são "selados" para o ambiente externo, de forma que a concentração de oxigênio no ar dentro do quarto pode ser manipulada. Assim, é possível "morar" em altitude mesmo estando no nível do mar, com muito mais conforto e tempo em altitude do que nas tendas.
E é justamente aqui que voltamos ao ponto de partida da matéria. O transporte de oxigênio sempre foi um tema tido como fundamental para a melhoria da performance, e por consequência a permanência e treinamento em altitude sempre gerou muito interesse pelo potencial de adaptação que apresenta. Desde o início, no entanto, se observou que, por alguma razão, nem todos os atletas respondem ao treino de altitude da mesma forma, no que diz respeito ao aumento dos glóbulos vermelhos.
DUAS CONTESTAÇÕES. Hoje em dia se aceita que alguns atletas são "adaptáveis" e outros são "não adaptáveis", mas os motivos para tal ainda não são claros. Ainda assim, o treinamento em altitude é considerado o ponto máximo da preparação, e em tempos de jogos olímpicos o tema está mais uma vez na mídia. Eis que entram em cena dois trabalhos publicados nos últimos meses por renomados centros de pesquisa no esporte, envolvidos inclusive com a preparação de atletas de seleções nacionais.
Publicado em janeiro de 2012 em um dos principais periódicos sobre fisiologia humana, um estudo fruto de uma colaboração de grupos suíços e dinamarqueses testou algo até então nunca feito, pelo menos não com o mesmo nível e controle: a possibilidade da ocorrência de efeito placebo durante o treinamento em altitude. Um grupo de 16 ciclistas de elite foi dividido entre atletas que permaneceram em um hotel com altitude simulada de 3.000 m e outros que permaneceram no mesmo hotel, mas com a concentração de oxigênio equivalente ao nível do mar, sem que eles soubessem quem estava em que tipo de quarto. Os atletas permaneceram no hotel durante 4 semanas, passando pelo menos dezesseis horas do dia em seus quartos, e treinando no nível do mar.
O surpreendente foi que ao final do período não havia diferenças entre os grupos, seja em termos de consumo máximo de oxigênio, performance ou conteúdo de células vermelhas no sangue. Como esperado, alguns atletas "responderam" à altitude e outros não, mas a proporção foi a mesma no grupo de aletas que pensava estar em altitude, mas na verdade estava no nível do mar.
Vale ressaltar que este estudo utilizou atletas de altíssimo nível, enquanto boa parte dos trabalhos que apontam melhorias com treinamento em altitude utiliza atletas de qualidade um pouco inferior, teoricamente com mais "margem" para melhoras. Mas um estudo não muda o mundo, apesar de ter sido um trabalho muito bem desenhado e controlado. Existe, porém, pelo menos mais uma segunda forte linha de evidência recente que vai na mesma direção.
A Austrália é um dos países com a mais completa estrutura centralizada de apoio a atletas de altíssimo desempenho. O Australian Institute of Sports é um centro renomadíssimo e de lá saem atletas como o campeão do Tour de France de 2011. Além de trabalhar ativamente na preparação de seus atletas, o centro também publica uma grande quantidade de trabalhos sobre seus métodos de treinamento.
COM NADADORES. Também em janeiro deste ano, o grupo publicou um trabalho sobre o treinamento em altitude com atletas de elite, desta vez nadadores. Apesar de não testar o efeito placebo, metade dos 26 nadadores permaneceu no nível do mar, e a outra metade participou de um protocolo Live High, Train Low. Ambos os grupos tiveram um aumento similar na massa de glóbulos vermelhos, da ordem de 4%. No entanto, isso não se traduziu em aumento do consumo máximo do oxigênio e tampouco da performance em testes específicos de natação. Na verdade, o grupo que permaneceu treinando e morando no nível do mar teve tempos ligeiramente melhores que o de altitude.
O treinamento em altitude não é, definitivamente, uma pulseira do equilíbrio. Existe um grande corpo de literatura apontando para alterações em variáveis sanguíneas, e uma quantidade ligeiramente menor indicando mudanças significativas de performance. No entanto, como revelado numa revisão das últimas publicações, muitos destes estudos não possuem um desenho sólido o bastante para excluir a possibilidade de um efeito placebo explicar, pelo menos parcialmente, os efeitos do treinamento em altitude.
Além disso, a dificuldade de se incluirem atletas de nível realmente alto nestes estudos torna ainda mais difícil expandir as conclusões de estudos feitos com participantes menos treinados. A boa notícia é que se você não passa o mês antes da sua maratona em algum canto remoto da Bolívia, ou em algum centro de performance em Colorado, não se preocupe, você pode estar perdendo bem menos do que imagina.
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Gostei muito da matéria, tem dados especificos e com grande embasamento, é obvio que quanto mais treinado menos treinavel, o que pode mascarar um pouco parte dos resultados encontrados com grupos menos seletos de atletas, parabéns pela materia é disso que nós prefessores precisamos para evoluir nossos atletas.